Com a mesma virtuosidade e presença física da alemã Simone Signoret (ganhadora do Oscar por Almas em leilão), a atriz Sandra Hüller, protagonista de Anatomia de uma queda, domina toda e qualquer cena do novo longa dirigido por Justine Triet (apenas a terceira mulher a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, depois de Jane Campion e Julia Ducournau). Em temporada de Oscar, Justine e Sandra estão nos holofotes dadas as indicações para a lista dos 10 melhores do ano, no filme lembrado pela melhor edição e pelo roteiro original (que Triet coescreveu, ao lado do marido Arthur Harari).
Num jogo de luzes e sombras, mais do que um crime, um casamento é publicamente posto a julgamento diante da opinião pública. A dinâmica aprofunda um filão em que os franceses são escolados: o dos filmes de tribunal — vide os longas de Yvan Attal (A acusação e O orgulho) e o recente Culpa e desejo, de Catherine Breillat. O novo drama de Justine traz para o teatro do julgamento o crime supostamente cometido pela escritora Sandra Voyter (Hüller). Numa residência afastada, em meio à neve, ela teria muitos motivos para assassinar o marido Samuel (Samuel Theis). O filme traz as pegadas do longa Custódia (de Xavier Legrand), ao examinar, à exaustão, sentimentos e ações bem recônditas que qualquer casal trancafia entre quatro paredes. Pouco a pouco, o espectador entende que o lar não seria seguro até mesmo para o menino Daniel (Milo Machado Graner), o filho deficiente do casal.
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Depois de inúmeras indicações francesas na categoria melhor filme internacional no Oscar (entre as quais as recentes Os miseráveis e Cinco graças, esse também detido em temática feminista), Anatomia de uma queda está candidato (a exemplo de Parasita, no passado) a melhor filme do ano. Bem diferente do calvário de Bjork, em Dançando no escuro (2000), Sandra Hüller traz para a tela o retrato de uma mulher egoísta, autocentrada e meticulosa. Enquanto todos os escândalos estampam as manchetes dos noticiários (no enredo), o miolo (e as verdades) da trama está na memória dos personagens (que, volta e meia, escapam e ficam imprecisas), nas idas e vindas de tempo e na arte (dos textos da escritora que sugestionam até premeditação de crime). Defesa e acusação (respectivamente, sintetizadas nas presenças dos ótimos Swann Arlaud e Antonine Reinartz) lançam mão de artimanhas admiráveis, no garimpo da verdade. Um dado importante é que o filme mescla muitos diálogos em francês e outros tantos em inglês.
Além do exemplar uso de som no filme, que gera gatilho a cada retomada da provocativa música, a presença da atriz central faz ecoar a protagonista australiana de Meryl Streep (em Um grito no escuro), dúbia, fria e manobrista, que cabe à luva aos anseios da mídia, no caso de incriminação na morte de um parente (naquele caso, um bebê). Num grupo de raras atrizes de filmes franceses candidatas ao Oscar, e que contempla Emmanuelle Riva, Anouk Aimee, Valentina Cortese, Isabelle Adjani, Marie-Christine Barrault, Catherine Deneuve, Isabelle Huppert e a (vencedora) Marion Cotillard, estaria a sensacional Sandra Hüller apta a quebrar barreiras?
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