Cinema

Cine Brasília exibe filme de Vladimir Carvalho em versão 4K

Vladimir Carvalho relança no Cine Brasília, em versão 4K, o filme 'O país de São Saruê', documentário clássico do cinema brasileiro

Vladimir Carvalho teve a ideia do filme ao evocar a memória de menino nascido no sertão  -  (crédito: Mila Petrillo/Divulgação)
Vladimir Carvalho teve a ideia do filme ao evocar a memória de menino nascido no sertão - (crédito: Mila Petrillo/Divulgação)

A evolução das produções cinematográficas acompanha a evolução da sociedade. Pelo menos é o que parece à distância. Vladimir Carvalho começou as filmagens do documentário sobre as secas dos sertões O país de São Saruê, em 1966, e, como uma peça do destino, as gravações foram interrompidas devido a um temporal. Foram retomadas no ano seguinte, e o filme estava pronto em 1970, no entanto, afetado pela mão de ferro da censura do regime militar, o documentário ficou na geladeira por nove anos.

O país de São Saruê será exibido, a partir desta quinta-feira (25/1), às 20h no Cine Brasília, em nova versão 4K, algo inimaginável em 1966. O filme, em preto e branco, considerado um clássico do cinema brasileiro, está mais rico em detalhes e reflete a imagem idealizada pelo diretor durante a sua concepção. É a preservação e o aprimoramento da memória cinematográfica brasileira, que retrata as desigualdades da sociedade brasileira e o drama do homem nordestino. O filme se move no contraste entre a utopia de um país de terra prometida anunciado pelo folheto de cordel e a realidade crua do sertão assolado pela aridez da seca.  Na última sessão, da próxima quarta-feira (31/1), o cineasta debaterá o filme com os espectadores. E, nesta entrevista, Vladimir fala sobre a gênese, os embates, a trajetória e a atualidade de São Saruê.

Entrevista//Vladimir Carvalho

Qual a origem do filme?

Eu comecei a filmá-lo em 1966. Portanto, apenas dois anos decorriam da ditadura que se implantou no país. Eu vinha de uma experiência muito proveitosa. Acompanhei o movimento das Ligas Camponesas e eu tinha, inclusive, roteiros para fazer um filme sobre elas na época. Eu tinha uma experiência em que o meu avô materno era um artesão de couro. Ele fazia o material para vaqueiros, e eu morava em uma cidade do interior quando era criança. A casa dele vivia cheia de vaqueiros. Às vezes, era numa avenida que passava boiadas para o matadouro, e, muitas vezes, aqueles bois entravam no terraço da casa e ficavam ali entocados, sem querer sair, os vaqueiros puxando eles, futucando com um ferrão para eles saírem. Essas coisas todas me falavam muito de um sertão que eu não conhecia, porque a minha cidade era mais próxima do litoral do que do sertão.

O seu avô é que puxava todo esse fio da memória?

 Meu avô tinha sido um retirante do fim do século 19. Era um homem já de uma certa idade, mas ele procedia desse mundo do sertão, que é um mundo dominado especialmente por aqueles que detêm a posse da terra, os latifundiários, os fazendeiros latifundiários, e aquela massa de gente que vivia, naturalmente, à mercê, hora trabalhando para os fazendeiros e hora sofrendo os flagelos da seca. Enfim, a questão fundiária, a questão da reforma agrária, isso ficou muito vivo na minha cabeça. Então, quando me entendi por gente,  resolvi, em 1966, fazer uma memória do sertão. Eu me desloquei para uma região muito mais a Oeste, ao contrário do litoral, onde não havia muito rumo, onde já tinha se apagado, praticamente, essa questão das ligas camponesas, que foi uma das preocupações da ditadura militar, aliada aos fazendeiros. Então, esse era o plano de fundo, a primeira motivação para fazer esse filme.

Qual a relação do filme com o folheto de cordel?

Eu chamei de O país de São Saruê, tomando de empréstimo uma parte de um folheto de feira, que hoje se chama cordel. Era um cordel, um folhetinho de feira, que se chamava Viagem a São Saruê. Então, eu peguei apenas o São Saruê e chamei de País de São Saruê, que é uma memória ancestral que o homem sempre teve, de uma terra prometida, de um Eldorado, onde ele podia ser feliz, porque ele era dono das suas iniciativas para sobreviver e tudo mais. E essa terra é descrita assim como o céu todo forrado de ouro, o rio emana mel e leite, as árvores, o dinheiro nasce nas árvores. É uma espécie de terra prometida, e é como se eu quisesse dizer ou mostrar que o sertão poderia ser essa terra se não fosse a ação nefasta do homem que quer dominar e escravizar o outro homem, justamente os donos de terra.

Como vê a questão da atualidade de O país de São Saruê, mais de 50 anos depois da primeira exibição?

Hoje, se você for ao sertão, você não encontra mais vaqueiro encourado como eu via na casa do meu avô. Aquele povo encourado dos pés à cabeça, como se fossem uns centauros. Hoje em dia, falando do polígono das secas (Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e o Rio Grande do Norte) o que domina ali é a seca e o latifúndio. Como não se fez jamais a reforma agrária, essa coisa tem um sentido quase que de apelo revolucionário. Naquela época, quando a gente ia com as ligas camponesas, era uma preparação para uma virada total, uma revolução social e política. O filme hoje é uma espécie de memória desse momento. O sertão não é totalmente diferente. Você vai no sertão hoje, as pessoas estão de motocicleta ou montadas em uma bicicleta. Aquilo está completamente descaracterizado. Em alguns lugares, os vaqueiros existem, por acaso, e só quando se faz uma promoção cultural. É quase que uma curiosidade um vaqueiro vestido dos pés ao cabelo. O Nordeste, como você sabe, hoje continua sendo uma região deficitária, uma região que não acompanha o movimento. Hoje, se fala muito no agronegócio. O negócio floresceu e tem movimentado especialmente o Centro-Oeste, um verdadeiro Eldorado. Mas é o Eldorado dos ricos, que têm bota de ouro e que têm casa em Miami e em Paris.

O que essa versão em 4K proporciona em termos de qualidade e recepção de São Saruê?

Há 20 anos, o negativo dele foi restaurado pela Petrobras através dos 100 pesquisadores do cinema brasileiro, que salvaram o filme de desaparecer. O negativo dele estava muito afetado e somente pela restauração desse negativo foi que eu pude ver o filme há poucos anos. Então, agora, com o trabalho digital, eu o tenho em 4K. O cinema que for aparelhado com 4K,  passa certíssimo. Eu já assisti duas vezes para checar essa sessão de quinta-feira e ele realmente ganhou muito em profundidade de foco, em definição da própria fotografia. Ele ficou melhor visto. Qualquer filme, principalmente aquele que se faz com película, é como gente. Ele adoece, se não cuidar bem dele, se não preservar, ele morre. O filme com película tem um tempo de vida que tem uma limitação. Hoje em dia, é diferente, não tem mais filme de película. É tudo digital, mas, antigamente, o filme tinha vírus. E, depois disso, mesmo que você o salvasse, tinha um tempo de vida que ia de 10 em 10 anos, de 20 em 20 anos. Você copiava de novo o filme e ele ficava para toda a vida, mas só se você tivesse esse recurso, para sempre estar copiando em película. Hoje em dia, não. O filme está na nuvem. Você baixa como um santo, mas ele não tem materialidade. O São Saruê é o filme que eu posso chegar na Cinemateca e pegar o negativo dele. Ele está na minha mão. Eu vejo todos os fotogramas.

Como foi o processo de censura que o filme sofreu?

O filme, além de adoecer e se deteriorar, ele também pega cadeia. O meu filme ficou nove anos preso na censura sem poder passar. Foi impedido de ser realizado, porque havia uma ditadura e havia censura. É um fenômeno que hoje não existe mais, praticamente. Você tem outro tipo de coisa, mas, felizmente, vivemos em uma democracia imperfeita. A maior parte dos cineastas de hoje não conhece essa restrição que era a censura. O meu filme foi impedido de ser exibido durante nove anos. De forma que ele agora veio em 4K. A justificativa para a censura era que o filme trabalhava contra os interesses do país. Em 1971, mesmo sabendo que ia ter problema com a censura, eu o inscrevi no Festival de Brasília. E não deu outra. O filme, para a minha surpresa, foi selecionado para o festival. Mas como ele tinha esse problema com a censura, e a antiga Fundação Cultural do Distrito Federal, que era quem promovia, tal como a Secretaria promove o Festival de Cinema, não moveu uma palha, porque havia um costume, naquela época, da promotora do festival trabalhar junto à censura para que ela liberasse os filmes para passar. E eles não fizeram isso em relação ao meu filme. Eu realizei uma verdadeira jornada junto ao comando das Forças Militares do Centro-Oeste, do Planalto Central. Aliás, eu fui acompanhado de um deputado, que era meu amigo, ao Supremo, e depois fui me entender com a própria censura. Nada aconteceu.

E qual o resultado?

Foi uma combinação marota, e o filme não foi exibido. Só voltaria a ser exibido nove anos depois, no Cine Brasília, depois que eu já tinha tido um prejuízo financeiro enorme. Mas teve uma reação muito forte, porque o filme foi tirado do cartaz faltando um dia para a exibição. Então, teve uma celeuma, os estudantes foram vaiar em desespero. E eu fiquei fazendo pressão na censura durante oito, nove anos. Eu levava a petição para ir para os festivais, o cara assinava para abaixo assinado e tudo mais, mas não houve jeito.


Qual a relação com a literatura de cordel que o filme coloca?

É uma relação de reflexo, porque o folheto faz a descrição de um Eldorado. E o sertão que eu filmei tinha riqueza, tanto é que são os três reis da natureza, inclusive o ouro, o minério e tudo mais. Há uma similitude muito grande entre as duas coisas. Só que eu mostrei a face contrária, a face de um sertão que, congenitamente, podia ser outra coisa, porque a natureza dele é uma natureza muito pródiga.

*Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco

 


  • Cartaz do filme O país de 
São Saruê, elaborado por Vladimir Carvalho
    Cartaz do filme O país de São Saruê, elaborado por Vladimir Carvalho Foto: Reprodução
  • Cena de O país de São Saruê: sertanejo colhendo algodão em imagem crua
    Cena de O país de São Saruê: sertanejo colhendo algodão em imagem crua Foto: Reprodução
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postado em 25/01/2024 10:21 / atualizado em 25/01/2024 10:53
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