'Afronordestina'

Conheça Caetana, primeira cantora trans a gravar frevo no Brasil

A artista nasceu na periferia do Recife e traz consigo a raiz e a resistência das comunidades, sendo uma voz atuante de denúncia, representatividade e liberdade

Caetana nasceu no Coque, na periferia do Recife.  -  (crédito: Caetana / Divulgação )
Caetana nasceu no Coque, na periferia do Recife. - (crédito: Caetana / Divulgação )

A cantora trans pernambucana Caetana vem ganhando destaque na cena cultural brasileira com o deluxe do álbum “Afronordestina”, lançado em dezembro de 2023 e assinado pelos produtores Passarinho e Erami Neto com colaboração dos artistas Deize Trigona, Nilla, La Rubia e Formiga Dub. A obra é composta por músicas autorais e colaborativas que exaltam a cultura popular nordestina, a religiosidade de matriz africana, o combate ao racismo e à transfobia. Nela, os ritmos populares pernambucanos são entrelaçados ao Hip-Hop, Trap music, Rap, Pop, Funk, Jazz, Blues, Reggaeton e Black Music. A multiartista nasceu na periferia do Recife e traz consigo a raiz e a resistência das comunidades, sendo uma voz atuante de denúncia, representatividade e liberdade. Ao Correio, a pernambucana falou um pouco sobre sua história e trabalho.


Até ganhar notoriedade, a cantora revelou que sentiu resistência e falta de espaço quando decidiu seguir os passos da música. "Eu, vindo de uma família empobrecida, sem nenhuma personalidade pública, senti uma barreira enorme para me inserir na cena cultural local e ser respeitada como artista. Vejo como uma questão que envolve diversos jovens periféricos de realidades como a minha. E quando somos pretos e trans, a situação fica mais tensa. Existe um paralelo da gente estar em uma cidade onde se exaltam nomes de famílias brancas e patriarcais. Tudo que é novo ou foge deste padrão gera incômodo. São várias barreiras".

 

A artista é a primeira trans a gravar um frevo do Brasil.
A artista é a primeira trans a gravar um frevo do Brasil. (foto: Divulgação)

História 

Caetana nasceu no Coque, comunidade do Recife com alto índice de vulnerabilidade social. Foi lá que teve o primeiro contato com a arte, ao participar, aos 11 anos, das aulas da Escola Novo Mangue e das atividades do Maracatu Nação de Oxalá. Aos 14 anos, mudou-se para o Ibura, também na periferia do Recife, onde iniciou a trajetória profissional na companhia de dança Pé-Nambuco de Dança. "Passei sete anos colaborando no grupo. Primeiro dançando e depois como intérprete, coreógrafa e colaboradora de produção. Aprendi muito sobre os bastidores da cena", contou.

 

"“Eu não era vista como artista”" Caetana, cantora trans pernambucana

Paralelo à trajetória na Pé-Nambuco, a artista passou pelos grupos populares Boi Chatinho, Afoxé Omo Nilê Ogunjá e maracatus Leão da Campina e Baque Forte. "Para mim é muito importante falar sobre essas raízes. Foi onde aprendi muito. Quem vive da cultura popular sabe do que estou falando. A gente aprende sobre absolutamente tudo. A tocar instrumentos, a cantar, a elaborar figurinos e muito mais. Posso dizer que fiz uma universidade de arte".

  • Ensaio fotográfico na Cia Pé-nambuco de Dança, em 2013.
    Ensaio fotográfico na Cia Pé-nambuco de Dança, em 2013. Adriano Sobral / Divulgação
  • Ensaio aberto com o Afoxé Omo Nilê Ogunjá, em 2014.
    Ensaio aberto com o Afoxé Omo Nilê Ogunjá, em 2014. Material cedido ao Correio
  • Ensaio do Maracatu Baque Forte na sede do Ibura, em 2012.
    Ensaio do Maracatu Baque Forte na sede do Ibura, em 2012. Material cedido ao Correio
  • Confraternização do Maracatu Baque Forte, em 2012.
    Confraternização do Maracatu Baque Forte, em 2012. Material cedido ao Correio
  • Apresentação de Caetana com a Cia Pé-nambuco de Dança, em 2012 como bailarina.
    Apresentação de Caetana com a Cia Pé-nambuco de Dança, em 2012 como bailarina. Material cedido ao Correio
  • Apresentação cultural com o maracatu.
    Apresentação cultural com o maracatu. Material cedido ao Correio
  • Cortejo em Olinda com o Afoxé Omo Nilê Ogunjá, em 2015.
    Cortejo em Olinda com o Afoxé Omo Nilê Ogunjá, em 2015. Material cedido ao Correio
  • Desfile oficial do Afoxé Omo Nilê Ogunjá para o carnaval, em 2016.
    Desfile oficial do Afoxé Omo Nilê Ogunjá para o carnaval, em 2016. Material cedido ao Correio
  • Desfile com o Maracatu Baque Forte, em 2022.
    Desfile com o Maracatu Baque Forte, em 2022. Divulgação / Angola Filmes

Reconhecimento 

Sem perspectiva na cena local, Caetana sentiu que precisava buscar novas oportunidades fora e foi morar em outros estados. "Minha alma sentiu que precisava sair para tentar algo fora e então decidi ir morar no Rio de Janeiro, em 2018, e depois em São Paulo, em 2021. Aproveitei o ID Jovem, programa do governo de transporte, e fui. Ao chegar lá, fui acolhida. Muitas pessoas ficaram impressionadas com minha arte e passaram a colaborar para o crescimento. Lá, tive destaque nas mídias locais e as pessoas finalmente enxergaram o meu trabalho".


 

 

 

Faixa a faixa do Deluxe “Afronordestina”


Em “Odoyá”, a artista exalta a ancestralidade e a religiosidade de matriz africana. “Odoyá” é uma saudação a Yemanjá, divindade ligada aos oceanos, à maternidade e ao mar. “Sem o mar, não temos possibilidade de navegabilidade e enriquecimento, nutrição energética e vida. Contato com o sol e união.”

Na música “Quando tudo se completa”, Caetana fala da força e da beleza dos povos pretos, pardos e também dos povos originários. “Essa mistura que é o encontro desses povos. Fala exatamente do lugar de ser preto em um território brasileiro. Poder que não se cala diante das injustiças.”

Na canção "Eu sei, você", o ouvinte é transportado a um lugar romântico e também reflexivo. “Ao mesmo tempo que se fala de amor, a música traz a perspectiva de abandono nas relações interpessoais, principalmente quando colocada a realidade de corpos travestis, em que não se vê como passível de afeto, de amor e de trocas sociais.”

No remix de “Asa Branca”, Caetana utiliza a canção do saudoso Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, para falar sobre existência e sobrevivência. “Falo também sobre a falta de apoios e pontes. Eu trago trechos da canção para falar dessa judiação. Aos poucos, tenho observado que algumas coisas estão mudando. Percebo que estou sendo enxergada como artista. Finalmente as pessoas do Recife estão me vendo assim.”

Em “Diva”, a música ganha elementos para falar sobre o corpo da mulher sem objetificações. “Falamos sobre todos os corpos femininos, seja Cis, Trans, não-binários e queers.”

“Bicha treme terra” é a última canção do álbum e fala sobre liberdade dos corpos diversos. “É onde dizemos que temos a liberdade, enquanto corpos dissidentes, diferentes dessa realidade cis, a gente além de dançar, vai gritar que não vamos deixar que as imposições nos limitem. Que tirem nosso brilho, que apaguem a nossa beleza.”

Com “Eu gosto da Boa Vista” a artista se firmou como a primeira trans a gravar um frevo no Brasil. A música fala sobre territorialidade, ancestralidade, lazer e pertencimento cultural. “Fala sobre acolhimento, paisagem, passado, alegria e beleza. Tudo o que o centro da Boa Vista consegue imprimir. Eu amo a Boa Vista”.

 

 

Escute o álbum completo 

Projetos e lançamentos


Ao retornar à capital pernambucana, já com álbum gravado, enxergou possibilidades de inserção, sendo convidada pelo cantor e compositor Cannibal, da Banda Devotos, a participar do aniversário do Movimento Mangue Beat, ocorrido no dia 11 de novembro de 2023, no Cais do Alfândega. Também abriu o show da cantora francesa Melissa Lavuex, realizado na Casa Estação da Luz, em Olinda.

Em Pernambuco, a artista projeta lançar um novo álbum com a cara de Pernambuco, com ritmos populares da região. "Pretendo músicas de frevo, brega funk, pisêro, pisadinha, forró e brega romântico. Será o meu trabalho de retorno a Pernambuco".

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postado em 15/01/2024 12:49 / atualizado em 15/01/2024 12:56
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