Cinema

No cinema, pesa a visão de uma guerra civil: é irmão contra irmão

Em onda crescente, o cinema norte-americano abraça a temática das guerras civis: o inimigo está ao lado

Um caos implantado, em O mundo depois de nós -  (crédito: Fotos: Netflix/Divulgação; Arquivo pessoal; A24/Divulgação; United Artists/Divulgação; Dilvulgação e United Artists/Divulgação)
Um caos implantado, em O mundo depois de nós - (crédito: Fotos: Netflix/Divulgação; Arquivo pessoal; A24/Divulgação; United Artists/Divulgação; Dilvulgação e United Artists/Divulgação)

Com alvos definidos, no passado, em que Josef Stalin e Mao Tsé-Tung defendiam o estandarte comunista, os Estados Unidos, na meca do cinema, centraram fogo nas mensagens de filmes que louvassem o capitalismo e apresentassem divergentes como vilões. E, atualmente, como explicar a onda crescente de filmes que colocam, em cena, americanos contra americanos, como numa autofagia? "A nova onda de distopias no cinema tem a ver com uma percepção meio apocalíptica da nossa realidade, num
mundo que tem pelo menos dois conflitos bélicos enormes acontecendo, e na qual prepondera a lógica antagônica que remonta alguns princípios da Guerra Fria, especialmente, por conta da natureza política e ideológica que cria uma sensação de 'nós contra eles'", aposta o editor do site Papo de Cinema, Marcelo Müller.

Numa conjuntura de instabilidade, a realidade praticamente anula o impacto de um roteiro hollywoodiano de reviravoltas. A cada dia, há soma de absurdidade. Há pouco mais de uma semana, a invasão do Capitólio completou três anos (num episódio associado a pelo menos nove mortes) e levou o presidente Joe Biden a ressaltar, em discurso, a disposição do oponente Donald Trump de "sacrificar a nossa democracia para se colocar no poder". O democrata Biden ainda sublinhou a retórica nazista na ponta da língua do republicano: "Trump e seus apoiadores não apenas abraçam a violência política, mas também riem dela".

Incitador da invasão à edificação do Congresso, Trump, atualmente indiciado pela justiça americana, redefiniu aqueles "criminosos" como "patriotas". Examinado por fraude civil, interferência eleitoral e conspiração contra os direitos dos norte-americanos, Trump , enquadrado pelo judiciário, tem por temor o pagamento de US$ 370 milhões em multa. Ameaçando engrenar discursos de campanha (com vistas à recaptura do poder, em 2025), Trump mesmo, indiretamente, irradia conflito: há menos de 10 dias, um juiz sofreu ameaça de bomba e, puxado do passado, veio a informação de um comissário europeu: o ex-presidente disse que os Estados Unidos "nunca" amparariam a Europa, "na (hipotética) situação em que estivesse sob ataque".

Marcelo Müller atenta para o fato de os Estados Unidos serem nação que conduzida pela narrativa do medo, especialmente depois do 11 de setembro. "O medo é utilizado como argumento político, como plataforma política e instrumento de de controle social. Isso influencia na produção hollywoodiana de filmes que colocam um grande mal no horizonte, e essa questão de americanos contra americanos tem a ver com o antagonismo político do 'nós contra eles", de uma de uma sociedade que não se reconhece mais enquanto um grande grupo coeso, estando bipartida, com cada qual em busca de um ideal", pontua.

Nesse cenário, a futura projeção do longa Guerra civil (em 26 de abril), estrelado por Wagner Moura e Kristen Dunst, parece assinalar um norte. No trailer, o filme do diretor Alex Garland (Ex machina) focaliza pessoas baleadas no Capitólio e demarca a cisão em 19 estados do EUA. "A América equilibrada no fio da navalha" é o chamamento impregnado na fita que mostra ataques aéreos do governo, focos alternativos de resistência e a ação desmedida de militares norte-americanos, truculentos, em frente a núcleo de combativos jornalistas. Depois de Aniquilação (2018), longa feito a partir da literatura de Jeff VanderMeer e que analisava a apocalíptica batalha de cientistas militares contra criaturas mutantes, será a vez de mais realismo com presenças na tela de Caille Spaeny (de Priscilla) e de Nick Offerman como o presidente americano.

"Esse tipo de filme reflete muito um momento da sociedade contemporânea e que a arte ecoa. Existe hoje uma divisão muito grande entre americanos, então é natural que surjam novos filmes distópicos que implantem clima de guerra civil. Na época da Guerra do Vietnã existia muito, tudo refletido em ficções científicas ou filmes como Cannonball — A corrida do século (1976, com Stallone) — ele já colocava disputas entre americanos, de modo mais lúdico: retratava uma competição para ver quem quem morreria primeiro, numa numa corrida arriscada; é a mesma pegada que a gente vê em Rollerball — Os gladiadores do futuro (1975) que que coloca a diversão como como elemento catártico para poder aliviar tensões sociais", observa o crítico de cinema Roberto Sadovski.

Tornada telefilme de Leslie Libman e Larry Williams, a literatura de Aldous Huxley migou para o audiovisual, com Admirável mundo novo estrelado por Leonard Nimoy e Peter Gallagher, em 1998. A visão era, claro, de uma sociedade regida por restrições. "Também existe isso de colocar americano contra americano, no meio de um futuro totalitário, em O sobrevivente (1987), com Schwarzenegger inserido num mortal game show. São elementos que aparecem nos momentos em que a direita pega mais pesado e os direitos civis parecem mais deixados de lado", defende Sadovski.

Com participação no longa Rustin, detido na validação de maiores direitos civis, por parte de Bayard Rustin, que há 60 anos, lutou contra racismo e homofobia, a produtora Higher Ground Productions (ao lado da Netflix) impulsionou o imersivo longa O mundo depois de nós, que alinha talentos como os de Julia Roberts e do escritor Rumaan Alam, do livro em que o diretor Sam Esmail extraiu a temática. Num crescente de desastres, que cercam familiares de (Roberts) e de G.H. (Mahershala Ali), o cenário costura uma situação belicista entre personagens ianques. A falta de domínio de informações, um apagão nos meios de comunicação, cortes energéticos, desorientação da fauna, agressões raciais e o egoísmo visto numa instância inumana, aos arredores de Nova York, formulam o caos da trama, em que um panfleto (em cena) estampa: "morte aos americanos". Vale ressaltar que a Higher Ground Productions, não ao acaso, tem como produtor executivo Barack Obama, e foi responsável pela animação Lições de cidadania dos Estados Unidos e ainda Adam Conover: Política se Discute?, que revela atitudes de funcionários americanos que amplificam os tentáculos da presença de Trump na fundação de uma América para lá de alienada.

Sem se arriscar numa leitura da assimilação do público a estes filmes hollywoodianos, o crítico Marcelo Müller crê que quanto maiores forem as aspirações comerciais dos filmes, "a partir de mais compromisso com o mercado, menos diretas, ou até subliminares, serão as mensagens", no empacotamento para um público "cada vez mais heterogêneo". Um exemplo da diversidade de caminhos está gritante no longa de Wim Wenders, Medo e obsessão (2004). No enredo, um caçador de terroristas, vivido por John Diehl, como veterano de guerra paranóico, devassa as ruas de Los Angeles, atrás de suspeitos.

Visão clássica

Incertezas e violência também se instalam nas duas versões em cinema ( Sob o domínio do mal) para o livro The manchurian candidate, de Richard Condon. Ainda à sombra dos comunistas chineses, uma trama de lavagem cerebral e de controle mental, cercou o longa de John Frankenheimer, de 1962, em que o personagem de Lawrence Harvey se afundava num thriller recheado por paranoia. Recriado para atender ao cenário da Guerra do Golfo, Jonathan Demme (de O silêncio dos inocentes) trouxe sua versão que mesclou ciência e ramificações de uma poderosa corporação, no filme de 2004 que trouxe no elenco Liev Schreiber, Dezel Washington e Meryl Streep.

Streep, aliás, conecta ainda com mais um filme que entrechoca norte-americanos: Não olhe para cima (2021), no qual interpreta uma fútil presidente americana que desacredita de uma catástrofe predita pelo par de tipos interpretados por Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio. Conduzido pelo debochado Adam McKay, o filme trata de relativização da ciência e de teorias conspiratórias, além de alienação. Numa vertente similar, em 2022, David O. Russell já havia realinhado dados da Primeira Guerra Mundial, na elaboração do longa Amsterdam (2022).

"Não podemos ignorar o fato de que, há pouco tempo, tivemos uma crise sanitária que vitimou milhões de pessoas e alastrou cicatrizes sociais. É um ambiente propício para que os criadores elaborem em cima de um cataclismo e riscos para a raça humana. Historicamente, especialmente no auge da Guerra Fria, o cinema captou alegorias sobre o antagonismo global", pontua Müller. Sensação no último festival de Cannes, o documentário Cidade ocupada (que parte de obra da historiadora e cineasta Bianca
Stigter) demarcou risco na carreira do diretor britânico Steve McQueen (de 12 anos de escravidão). Sem cenas de arquivo, ele recorreu ao registro de reclusão, na era da Covid-19, para ilustrar o filme que pretende debater o despontar do nacionalismo de extrema-direita.

Segundo McQueen contou em reportagem da BBC, quase 80% dos estimados 80 mil judeus de Amsterdã — a partir da ação nazista — foram deportados ou foram confinados em campos de concentração, expurgados do convívio social, a partir de restrições cada vez mais severas. Para a imprensa inglesa McQueen defendeu o tom de alerta: "De certa forma, (o filme) serve de chamado às armas para sermos ativos em nosso cotidiano, a fim de mudar as coisas”. Ao que completou: "Às vezes o presente apaga o passado, e às vezes é como bater na porta um no outro — com a fusão de ambos".

 Roberto Sadovski- Jornalista Critico de Cinema
Roberto Sadovski: critico de cinema (foto: linkedin/reprodução)

Palavra de especialista

"A série Uma noite de crime já tem cinco filmes falando sobre isso: desobediência civil e medidas extremas do sistema para tentar controlar as pessoas, colocando umas contra as outras — o que é bizarro. É a mesma premissa de Jogos vorazes, que tem uma pegada mais juvenil e usa o entretenimento. Nessa mesma pegada, há Divergente, com um futuro distópico, em que o sistema quer acabar com rebeldes. Tudo está num mesmo balaio, com Elysium (2013) tem essa pegada de americanos contra os americanos, somado à luta de classes. Tem ainda o Robocop (do José Padilha) — é uma coisa geracional que depende muito do movimento social contemporâneo e a arte traz a sua obrigação que á a de refletir em filmes"

Roberto Sadovski, crítico de cinema

 

 

  •  Marcelo Müller: cinema reflete as relações de hoje
    Marcelo Müller: cinema reflete as relações de hoje Foto: Arquivo Pessoal
  • Guerra Civil terá 
Wagner Moura no elenco
    Guerra Civil terá Wagner Moura no elenco Foto: A24/Divulgação
  • O clássico das manipulações psicológicas Sob o domínio do mal
    O clássico das manipulações psicológicas Sob o domínio do mal Foto: United Artists/Divulgação
  •  Steve McQueen tem apoio da história em Cidade ocupada
    Steve McQueen tem apoio da história em Cidade ocupada Foto: Dilvulgação
  •  Roberto Sadovski: critico de cinema
    Roberto Sadovski: critico de cinema Foto: linkedin/reprodução
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postado em 17/01/2024 09:40
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