Entre as muitas perdas dos brasileiros de várias regiões do país e de diferentes segmentos, provocadas pela covid-19, uma marcante é a de Antônio Carlos Moraes Pires, que se tornou um expoente da música popular brasileira com o nome artístico de Moraes Moreira. Cantor, compositor, violonista e líder dos Novos Baianos, que, posteriormente, assumiu carreira solo, ele morreu no começo da pandemia, em 13 de abril de 2020, aos 72 anos, no Rio de Janeiro. Moraes Moreira está sendo homenageado pela Sony Music com o lançamento no streaming de 11 álbuns.
Em 1964, ainda adolescente, passou a morar em Salvador. Ali se deparou com uma capital efervescente, de grandes novidades: a bossa nova, o trio elétrico e shows no Teatro Vila Velha, que revelaram para a MPB Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia.
No fim da década, ao lado de Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, foi um dos fundadores dos Novos Baianos que, após lançar o LP É ferro na boneca partiu para o Rio de Janeiro. Inicialmente, moraram num apartamento no bairro de Botafogo e, posteriormente, ocuparam um sítio em Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade — uma espécie de comunidade hippie.
Ao deixar o grupo, em 1975, Moraes deu início à carreira individual. No ano seguinte inovou como o primeiro cantor de trio elétrico, ao lado de Osmar Macedo e Armandinho Macedo no carnaval baiano. A partir dali, passou a lançar discos solo e logo emplacou um grande sucesso, o frevo Pombo Correio.
Da sua discografia de Moraes Moreira constam mais de 30 títulos, sendo dois com Pepeu Gomes e um outro, intitulado Nossa parceria, que teve a seu lado o filho Davi Moraes. Parte deles, entre os mais conhecidos da obra, integra o catálogo da Sony Music, que após restauração de tapes analógicos e projetos gráficos originais, acaba de ser disponibilizado nas plataformas digitais. Da lista de 11 discos fazem parte Mancha de dendê não sai, Tocando a vida, Mestiço é isso, Baiano fala cantando e República da música — lançados entre 1985 e 1990. E, nesta entrevista, Ciça Moreira, filha de Moraes Moreira, fala sobre a convivência com o pai e o legado musical que ele deixou.
Entrevista
Ciça, que lembranças guardadas de Moraes Moreira, como pai?
As lembranças que eu guardo dele, como pai, são de uma presença muito forte do nosso lado. E de alguma coisa que ele nos transmitia, nos ensinava, pela própria postura em relação à vida, que foi sempre de muita coragem para enfrentar qualquer adversidade. E essa posição, sempre, de muita entrega ao trabalho. Eu acho que isso ele transmitiu muito para mim e para o meu irmão. Eu atuo em outra área, mas sinto a presença dessa relação tão intensa com o trabalho. É como uma herança do que ele me transmitiu. Era alguém que se mantinha sempre muito fiel ao que ele acreditava, que não fazia concessão à nada que não fossem as coisas que ele realmente tinha como valores. Lembro muito da presença dele, em casa, como alguém que nos dava um eixo, um suporte.
Com que idade você passou a ver o Moraes, músico?
Ele estava sempre ligado à música dele.Isso estava posto desde sempre para nós. Eu me lembro da primeira vez que eu ouvi, ele chegou em casa com o primeiro disco, recém-feito, o primeiro álbum da carreira solo dele e botou na vitrola para a gente ouvir. E, esse momento, eu me lembro, foi um encontro marcante, para mim, porque ele estava do meu lado e o disco tocando na vitrola. Eu pensava "nossa, como é que ele está aqui do meu lado e ali ao mesmo tempo, naquele disco?". Ele cantando era a presença dele também, para mim.
Chegou a assistir a muitos shows dele?
Eu sempre assisti muitos shows dele. Sempre. A gente viajava com ele, nos verões, no período de férias. Ele fazia muitas turnês no Nordeste, às vezes um mês, dois meses de turnê, pelas cidades durante o verão. E, quando a gente estava de férias, ele nos levava junto com a minha mãe. Então, eu estava sempre próxima. Só depois, mais na vida adulta e quando eu já tinha outros compromissos que aí, não. Mas durante a minha infância e adolescência mesmo, a gente estava muito junto e, no carnaval em Salvador, nem se fala. Ele me transmitiu totalmente essa paixão pelo carnaval, eu gosto de ir embaixo do trio, na "pipoca", como se diz. Nunca gostei de ficar muito em cima. Ia meu irmão em cima com ele e eu lá embaixo, caminhando junto. E, no final, sempre tinha as nossas resenhas de carnaval, cada um do seu ponto de vista, trocando muito sobre tudo isso. Era maravilhoso.
Que recordações tem do período em que Moraes integrou os Novos Baianos?
Em relação aos Novos Baianos, sim. A gente morou no sítio dos Novos Baianos. Eu nasci em 1972, no ano de Acabou chorare e estou até na foto, na capa. O Davi nasceu um ano depois, em 1973, no ano de Novos Baianos Futebol Clube, mas em 1974, quando eu tinha dois anos e o Davi um, meu pai já saiu do Novos Baianos. Então a gente não lembra diretamente desse tempo de convivência. A gente sempre ouviu muitas histórias e sempre acompanhou a relação de muita amizade do meu pai, especialmente com o Pepeu, com o Galvão também, com o Paulinho. Os Novos Baianos sempre estiveram presentes para nós nessas histórias, no encontro do meu pai com a minha mãe, que também foi nessa época. E eu, adolescente, como muitos adolescentes, em certo momento descobri os Novos Baianos, também me apaixonei pelo Novos Baianos, já como fã.
Da vasta obra dele, qual é a sua canção preferida e porquê?
Eu não tenho como dizer uma música preferida do meu pai. Eu vou dizer algumas. Eu destaco Desabafo e desafio, que toca nos alto-falantes da entrada da exposição, que a Renata Mota, a cenógrafa, teve a brilhante ideia de incluir, representando os alto-falantes das cidades do interior do meu pai, Ituaçu, onde não tinha televisão na época. Era pelo serviço de alto-falante que ele ouvia as músicas do Luiz Gonzaga, ouvia os jogos de futebol, pois meu pai se tornou um flamenguista, porque lá se transmitiam os jogos do Rio e de São Paulo, e não os jogos de Salvador. Essa música que está no disco de 1975, intitulado Moraes Moreira, o primeiro álbum de carreira dele. Ele escreveu essa música, que fala justamente desse desafio de enfrentar a vida. Ele estava recomeçando depois da saída do Novos Baianos, foi um novo começo e exigiu muita coragem dele, novamente, de desbravar essa estrada da carreira solo. É uma música linda e eu destaco também Coisa acesa, que é do álbum com o mesmo nome, uma música maravilhosa e que, inclusive, Caetano Veloso sempre destaca. Uma parceria do meu pai com o Fausto Nilo, que é um grande parceiro dele. Uma outra que destaco se chama Chão da praça, uma música de carnaval lindíssima. Está no álbum Lá vem o Brasil descendo a ladeira, e fala da Praça Castro Alves, onde, inclusive, proximamente, será inaugurada uma estátua em homenagem a meu pai. Eu acho que é uma homenagem maravilhosa porque sempre cantou a Praça Castro Alves e nessa música ele fala "balança o chão da praça". E isso ficou muito marcado, para mim, que, como já disse, amo o carnaval da Bahia. Destaco essas três para resumir aqui.
Entre os muitos discos lançados por Moraes, qual o que lhe dá mais prazer ao ouvir?
Vou dizer que, nesse momento, o álbum que tem me dado mais prazer de ouvir é o álbum que se chama Mancha de dendê não sai, que é o mesmo nome da exposição. É um álbum maravilhoso do meu pai, feito num momento especial da carreira dele. Esse foi um álbum mixado em Los Angeles. O meu pai fez uma troca muito grande com Larry Williams, que é um produtor muito famoso do daft-punk, um cara muito ligado ao pop americano. E meu pai, que não falava uma palavra de inglês, foi para o estúdio com ele e eles se entenderam perfeitamente por meio da música. Esse álbum eu acho um exemplo maravilhoso e riquíssimo do diálogo entre um artista absolutamente ligado às suas raízes e, que, muitas vezes, recebeu um rótulo redutor. É "regional", mas é regional no sentido de que era absolutamente fiel àquilo que ele trouxe com ele, que aprendeu, mas com um diálogo muito aberto com a música pop, a música universal. E eu acho que esse álbum mostra isso, porque o diálogo é absolutamente rico, absolutamente fluido entre essa música dele tão ligada às raízes e um produtor ligado à cultura pop, à cultura americana, da música americana. É um representante assim, também um expoente disso. Então, merece ser ouvido e eu estou tendo muito prazer de finalmente ter o álbum disponível aqui, na ponta dos dedos, no celular, no computador, em qualquer lugar que eu queira ouvi-lo.
Porque decidiu reunir esse legado e levá-lo ao público?
A gente recebeu essa herança dele, que é o patrimônio maior, a obra de Moraes Moreira para a gente cuidar. E é muito natural, para mim e para o Davi, a gente cuidar disso porque é uma parte enorme da nossa vida, a gente participou muito. Como a gente era muito próximo dele e ele estava sempre com a música colada nele, junto com ele, vivendo tudo junto, isso é uma parte enorme da nossa vida. Então, para a gente, foi muito natural querer cuidar disso, querer disponibilizar isso para o público. O começo foi o desejo de que meus filhos também ouvissem os álbuns mais antigos dele. O meu filho mais velho também é músico. E tudo isso veio naturalmente, após a morte do meu pai, como uma parte da minha vida e da do Davi. Então nós estamos levando a público porque essa obra merece e é o mínimo que a gente pode fazer, cuidar de que isso esteja acessível, disponível para que as pessoas possam descobrir e redescobrir a obra dele por muitas e muitas gerações ainda. Porque é uma obra eterna, muito rica, ela não tem data. É eterna.
Imagina que haverá um grande interesse por essa memória?
O retorno que a gente tem tido é, sim, de muito interesse das pessoas. A gente tem tido um retorno maravilhoso de vários amigos e pessoas que conheciam muito ele, pessoas que não conheciam tanto, da alegria de poder desfrutar, conhecer e mergulhar nesse universo enorme. Meu pai atravessou esse momento pós-tropicalista com os Novos Baianos, depois toda a cultura de carnaval da Bahia fortíssima, a cultura do São João pelo fato dele ser muito ligado ao sertão da Bahia. O primeiro instrumento dele foi o acordeom, ele formado ouvindo Luiz Gonzaga. Então, com a obra dele, o meu pai atravessa a cultura brasileira de uma forma muito intensa.
A exposição será levada a outras cidades brasileiras, inclusive Brasília, onde ele possuía muitos fãs?
Sim, a gente quer que a exposição chegue a outros lugares. Tomara que vá para Brasília, o meu pai tinha muito carinho por Brasília, estava sempre aí no Clube do Choro, entre outros lugares tantos que ele já tocou. Ele tem uma música chamada Asas de Brasília, vou conferir aqui o álbum e, de repente, até mandar aí para vocês. E é isso, a nossa intenção é que essa exposição percorra muitas cidades do Brasil, Brasília, São Paulo, Recife, as cidades do Nordeste. Recife, especialmente, porque o meu pai tinha muita ligação com Pernambuco, ele era conhecido como "o mais pernambucano dentre os baianos". Tomara que chegue aí. Tomara que as Asas de Brasília carreguem essa exposição para aí também.
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