Literatura

Confira uma lista com dicas de oito livros para ler nas férias

Confira uma seleção de livros recém-lançados de conteúdos variados para uma leitura no período de recesso

Escritor Bernardo Carvalho -  (crédito: Pablo Saborido.)
Escritor Bernardo Carvalho - (crédito: Pablo Saborido.)

Paternidade, memória e pátria

A complexidade da relação entre um pai e um filho é o ponto de partida de Os substitutos, 12º romance de Bernardo Carvalho. No Brasil da ditadura, um menino de 11 anos acompanha o pai em uma viagem em um monomotor às terras recentemente adquiridas na Amazônia. A fazenda será destinada ao gado e o novo proprietário, também negociador de madeira, não poupará esforços para se livrar dos indígenas que eventualmente se instalam no local. Durante a viagem, o menino se concentra na leitura de uma ficção científica sobre crianças enviadas a um planeta distante da Terra como cobaias. O protagonista é o único que não carrega memórias. Todos os personagens trazem lembranças de uma vida pregressa e a certeza de terem sido especialmente escolhidos para a missão.

A relação entre memória e realidade é importante para a sustentação da própria perspectiva do filho. Da lembrança — ou não — de um episódio ocorrido durante a viagem depende a possibilidade da relação construída ao longo dos anos. Mas não é apenas da dificuldade de diálogo entre o pai naturalmente fora da lei em uma sociedade insuportavelmente tolerante e o garoto circunspecto que Carvalho quer jogar luz. O Brasil de ontem e de hoje também está ali. "Comecei a pensar nesse pai quando percebi a iminência de o Bolsonaro ser eleito. Eles estão totalmente imbricados", explica Carvalho. "É uma relação de pai e filho, mas essa relação não sei se é uma metáfora do Brasil, mas reproduz uma relação da gente brasileira com essa autoridade que é o contrário da lei, que é o que destrói a lei, que corrompe a lei."

Escritora Karin Hueck, autora de A segunda mãe
Escritora Karin Hueck, autora de A segunda mãe (foto: Renato Parada)

E se?

O mundo imaginado por Karin Hueck não se revela de imediato. Aparentemente (e também) um romance sobre uma crise conjugal, A segunda mãe é protagonizado por um casal de mulheres com uma filha e um bebê a caminho. Uma das personagens trabalha para o governo, a outra vive para manter o lar em ordem e a vida da filha organizada, mas não está contente com isso. Nas primeiras páginas, a autora parece inclinada a tratar da relação entre gênero e papéis sociais, mas nem tudo é o que parece no romance de Karin.

Lá pelas tantas, o leitor se apercebe estar imerso em uma sociedade exclusivamente feminina e o livro se transforma em uma distopia na qual os homens foram confinados após uma revolução que concluiu ser este gênero excessivamente violento. A segunda mãe se transforma então em outro romance. A narrativa propõe uma série de perguntas e uma reflexão sobre opressão e sexualidade, independentemente de gênero. Não se trata de um manifesto nem de defender a sociedade esboçada no romance, mas de pensar em soluções. "O livro pode ser visto como de uma feminista raivosa que quer eliminar os homens porque são o grande mal do mundo. E também pode ser visto por homens de outra forma. Para mim interessava muito essas zonas cinzentas e sobretudo ser contra o maniqueísmo, contra os estereótipos. Nem os homens são totalmente bons, nem as mulheres são totalmente boas. Exclusividades de comportamento não cabem para ninguém", explica Karin.

Na sociedade feminina criada pela autora, pode haver menos violência e zero feminicídio, mas há opressão, dominação entre classes sociais e até um certo autoritarismo estatal. Karin escreveu o livro em dois meses, durante uma estadia em Berlim, em 2020, para estudar políticas públicas, interseccionalidade e questões de gênero. "Era esse o tema sobre o qual eu queria escrever. Acho que não existem comportamentos exclusivos de um gênero ou de outro, nem que eliminar os homens resolveria os problemas do mundo. Lena (protagonista) oprime a babá, mulheres oprimem homens. Eles realmente são mais violentos, mas isso é uma estrutura, não o indivíduo. Gênero não é tudo, as opressões continuam acontecendo", acredita a autora.

Três perguntas para: Bernardo Carvalho

O livro é sobre a relação entre um pai e um filho, mas também sobre o Brasil?

Acho que tudo gira em torno dessa ideia de um amor na violência, no confronto, de todas as consequências que isso acarreta tanto na formação de um filho como para entender uma sociedade. Talvez seja redutor falar isso mas, para mim, tem muito a ver com essa figura desse pai que nem representa a lei, é o filho que dá a lei para ele, um pai que está livre na sua criminalidade. Essa figura do pai é a gênese do mundo brasileiro, desse mundo em que o pai que deveria representar a lei representa o contrário da lei, o crime. Isso ficou claríssimo com o Bolsonaro: uma sociedade sem culpa que, quando confrontada com a culpa, enlouquece. A figura de pai e filho me interessa por isso e por outras coisas. Sobretudo depois dos quatro anos do governo Bolsonaro e da inércia imoral que esse governo deixou, porque abriu uma porta para uma espécie de convívio social em que a lei não existe.

Qual a relação entre pai e pátria no livro?

Acho que é um pai muito específico, muito estrutural da sociedade brasileira, esse pai que representa o crime, e isso ficou muito claro com o governo Bolsonaro, esse pai moleque. O Bolsonaro é o pai bandidinho, o pai que faz o negócio na surdina, que ri, que sacaneia os outros, que faz bullying e que é covarde. Ele não tem culpa, não tem responsabilidade e não assume os próprios atos. Tenta desarmar a lei mas, se por acaso vier a ser confrontado pela lei e pela culpa, ele foge. Isso virou um modelo para o homem brasileiro, para a sociedade brasileira. Do motoboy que não pára no sinal ao milionário que é estelionatário, dá golpe e consegue escapar. A novidade é que isso se expandiu para todas as classes.

Qual o lugar da memória no romance?

Acredito que a memória salva. Não faço elogio da perda da memória, acho que é fundamental para a inteligência, para a narrativa, para a lógica. A falta de memória é a demência. Mas nesse livro de ficção científica que o menino lê tem uma tentativa de explorar os paradoxos. Ele narra uma situação contraintuitiva, mas que é uma espécie de silogismo. Será que existe uma situação em que a falta de memória salva? Em que é melhor não ter memória? Essa falta de memória permite a ele não cair numa armadilha, uma espécie de impostura. E tem a coincidência de o garoto estar lendo esse livro em que a falta de memória salva. Ele faz um esforço imenso para se lembrar de uma situação que vai ilustrar uma situação afetiva com o pai, mas se ele quiser manter essa idealização, ele não pode lembrar, porque vai ser impossível defender o pai. A questão da memória é fundamental, não existe mundo sem memória, não existe possibilidade de vida sem memória. É melhor morrer. E por ser tão fulcral, me interessa provocar reflexões sobre a memória e a falta dela.

Biografias e memórias 

Últimos escritos organizados por Nélida Piñon antes de morrer, em dezembro de 2022, Os rostos que tenho é uma espécie de diário da autora. Recém-lançado pela Record, traz textos nos quais relembra a família, as origens, a condição de imigrantes dos antepassados vindos da Galícia e a própria cultura galega, ao lado de outros escritos nos quais reflete sobre a condição de escritora, a literatura e as soluções narrativas para as próprias obras. O Brasil, a música, os amigos, as leituras e até a condição humana aparecem nos textos que, como explica Rodrigo Lacerda no prefácio, são fragmentários tais quais as entradas de um diário.

O último livro de Nélida foi pensado dentro de um projeto literário que sempre acompanhou a autora, seja na escrita, seja na organização e preservação da memória material da autora. "Nélida tratou de preparar seu testamento literário, Os rostos que tenho. Enquanto escrevia o último romance, ela já tomava notas e fazia curtas gravações sobre temas a serem abordados no futuro", revela Lacerda.

Depois de esmiuçar a vida do pintor Alberto da Veiga Guignard em uma biografia detalhada que preenche diversas lacunas, o jornalista Marcelo Bortoloti lança agora Di Cavalcanti — Modernista popular, trabalho de fôlego sobre um dos nomes mais importantes da arte moderna brasileira. É com a cena apoteótica de Glauber Rocha invadindo o velório do pintor e dirigindo cenas que se tornaram o polêmica curta Di-Glauber que Bortoloti começa o livro. A biografia é fruto de pesquisa alimentada por muitas entrevistas e registros em arquivos públicos e pessoais Segundo o autor, foram fundamentais as contribuições de Neila Tavares e de Elizabeth Di Cavalcanti, respectivamente ex-secretária e filha do artista.

Bortoloti pesquisa a vida do modernista desde 2011 e conta que uma das maiores dificuldades foi a ausência de um arquivo pessoal com material que ajudasse a desvelar a vida de Di. "Ele jogou fora suas cartas, documentos, deixou dispersar tudo que pudesse haver de documentação e isso foi uma dificuldade porque era preciso recorrer a arquivos de terceiros, amigos com quem se correspondeu. As pessoas que conviveram com ele e com boa memória praticamente não existem mais, não havia muita fonte oral", conta. Entre as lacunas preenchidas pela biografia, a primeira dedicada a Di Cavalcanti, estão histórias referentes às prisões do pintor e à militância comunista. "Ele foi preso três vezes, inclusive naquele pavilhão dos primários onde o Graciliano Ramos escreveu Memórias do cárcere e onde esteve presa a Olga Benário", conta Bortoloti. "A militância comunista era muito pouco sabida porque ele tinha fama de boêmio e indisciplinado, mas foi uma militância muito aguerrida."

Para os leitores que gostam de embarcar nos meandros da vida de personalidades brasileiras, o escritor Fernando Morais assina Montenegro, biografia de um engenheiro aeronáutico que sonhava em transformar o Brasil em uma potência da aviação. Casimiro Montenegro ajudou a fundar o serviço postal militar e a propor a criação de um centro tecnológico de pesquisa e formação aeronáutica, além de ser nome que aparece nos bastidores de conturbados momentos políticos do país.

Serviço

A segunda mãe

De Karin Hueck. Todavia, 176 páginas. R$ 69,90

Os substitutos

De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 228 páginas. R$ 69,90

Os rostos que tenho

De Nélida Piñon. Record, 266 páginas.R$ 47,92

Di Cavalcanti — Modernista popular

De Marcelo Bortoloti. Companhia das Letras, 536 páginas.
R$ 134,90

Montenegro

De Fernando Morais. Companhia das Letras, 360 páginas. R$ 109,90

ESTANTE

Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90
Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90 (foto: Ubu)

Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta

De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90

O museu ocidental é um repositório estranho, avisa a historiadora e ativista francesa logo no início do livro. Se lá é possível encontrar a produção cultural de toda uma sociedade e de uma época, é também possível se deparar com ossos, crânios, cabelos e objetos que denunciam opressões e domínios de povos sobre outros povos. "O museu realizou uma formidável inversão retórica, dissimulando aspectos conflituosos e criminosos de sua história e apresentando a si mesmo como um depósito do universal, um guardião do patrimônio da humanidade", escreve Vergès, que propõe repensar esses espaços a partir das noções de descolonização.

Dysphoria mundo —O som do mundo desmoronando De Paul B. Preciado. Zahar, 568 páginas. R$ 83,22
Dysphoria mundo —O som do mundo desmoronando De Paul B. Preciado. Zahar, 568 páginas. R$ 83,22 (foto: Zahar)

Dysphoria mundo —O som do mundo desmoronando

De Paul B. Preciado. Zahar, 568 páginas. R$ 83,22

Um dos maiores pensadores das questões que relacionam gênero, política e sexualidade na contemporaneidade, o espanhol Paul B. Preciado parte da própria trajetória para refletir sobre disforia de gênero neste livro que vai bem além do conteúdo autobiográfico. "Tive que declarar que minha mente estava em guerra com meu corpo, que minha mente era masculina e meu corpo feminino. A bem da verdade, não sentia distância alguma entre o que chamavam de mente e o que identificavam como corpo. Queria mudar, isso é tudo", escreve Preciado, em um texto que se desdobra pelas implicações políticas, emocionais e sociais do reconhecimento das várias dimensões da sexualidade.

A próxima onda De Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar. Tradução: Alessandra Bonrruquer. Record, 420 páginas. R$ 79,90
A próxima onda De Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar. Tradução: Alessandra Bonrruquer. Record, 420 páginas. R$ 79,90 (foto: Record)

A próxima onda

De Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar. Tradução: Alessandra Bonrruquer. Record, 420 páginas. R$ 79,90

Como a inteligência artificial pode mudar os rumos da humanidade? Será necessário algum tipo de contenção? Há perigo nessa onda que se apresenta? Quais os caminhos possíveis? Mustafa Suleyman, cofundador da DeepMind, e Michael Bhaskar, escritor e editor, refletem o que chamam de "problema da contenção", ou a necessidade de controle rigoroso de tecnologias que podem mudar a história da humanidade.

 


  • A próxima onda
De Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar. Tradução: Alessandra Bonrruquer. Record, 420 páginas. R$ 79,90
    A próxima onda De Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar. Tradução: Alessandra Bonrruquer. Record, 420 páginas. R$ 79,90 Foto: Record
  • A segunda mãe
De Karin Hueck. Todavia, 176 páginas. R$ 69,90
    A segunda mãe De Karin Hueck. Todavia, 176 páginas. R$ 69,90 Foto: Rodavia
  • Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta
De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90
    Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90 Foto: Ubu
  • Di Cavalcanti — Modernista popular,
De Marcelo Bortoloti. Companhia das Letras, 536 páginas. R$ 134,90
    Di Cavalcanti — Modernista popular, De Marcelo Bortoloti. Companhia das Letras, 536 páginas. R$ 134,90 Foto: Companhia das Letras
  • Escritora Karin Hueck, autora de A segunda mãe
    Escritora Karin Hueck, autora de A segunda mãe Foto: Renato Parada
  • Montenegro
De Fernando Morais. Companhia das Letras, 360 páginas. R$ 109,90
    Montenegro De Fernando Morais. Companhia das Letras, 360 páginas. R$ 109,90 Foto: Companhia das Letras
  • Dysphoria mundo —O som do mundo desmoronando
De Paul B. Preciado. Zahar, 568 páginas. R$ 83,22
    Dysphoria mundo —O som do mundo desmoronando De Paul B. Preciado. Zahar, 568 páginas. R$ 83,22 Foto: Zahar
  • Os rostos que tenho
De Nélida Piñon. Record, 266 páginas .R$ 47,92
    Os rostos que tenho De Nélida Piñon. Record, 266 páginas .R$ 47,92 Foto: Record
  • Os substitutos
De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 228 páginas. R$ 69,90
    Os substitutos De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 228 páginas. R$ 69,90 Foto: Companhia das Letras
  • Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta
De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90
    Descolonizar o museu - Programa de desordem absoluta De Françoise Vergès. Tradução: Mariana Echalar.Ubu, 270 páginas. R$ 69,90 Foto: Ubu
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postado em 10/01/2024 10:14 / atualizado em 10/01/2024 12:02
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