Para lembrar os 50 anos do hip hop, cultura iniciada em 11 de agosto de 1973 no Bronx, subúrbio de Nova York, durante uma festa organizada pelo DJ jamaicano Clive Campbell, mais conhecido como Kool Herc, o Correio ouviu a antiga e a nova geração de b-boys, b-girls, DJs e grafiteiros do Distrito Federal, que foram impactadas pela cultura entre os anos 1980 e 1990. Desde então, o movimento transformou a vida dos artistas e de pessoas comuns.
Letras marcantes como Brasil com P, do poeta GOG; To só observando, de DJ Jamaika; grafites e livros de Carlos Astro, apresentações do DJ Chokolaty; Carro de Malandro, da Tribo da Periferia; Lembranças, do Hungria Hip Hop, e a chegada da nova geração, como a rapper Saphira e a grafiteira Camz, fizeram do DF uma das cenas mais fortes do hip hop nacional.
Um dos frutos da primeira geração do DF é Carlos Washington Corrêa, 48 anos, mais conhecido como Carlos Astro, nascido e criado nas ruas de Ceilândia Norte. Grafiteiro do grupo 1V2M (Uma vida, Dois Mundos), cresceu inspirado pela arte desde a escola e virou escritor, com os livros Carlos & Astro: Uma Vida, Dois Mundos, e O ressocializado, lançados, respectivamente, em 2003 e 2022.
"O hip hop é o resgate de vidas, de inserção, compartilhamento e ajuda. Na sua essência, onde cada DJ, b-boy, grafiteiro ou rapper faz sua parte social, esse é o verdadeiro hip hop, uma cultura que movimenta a periferia, com mutirão de doação de cesta básica e doação de brinquedos. Tem artistas que vivem da arte de hip hop, e tem militantes que convivem diariamente com o sofrimento das periferias", opina Astro.
Prova de que o movimenta inspira outras pessoas é Michel Williams dos Santos, 20, que foi aluno de Astro no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) do bairro Santa Luzia, da Estrutural, serviço da política pública de assistência social, oferecido pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Ele entrou no projeto em 2017, quando fazia desenhos nas horas vagas, e teve aulas de desenho com Carlos Astro no ano seguinte. Atualmente, o rapaz trabalha como tatuador e grafiteiro também.
"Ele me mostrou o grafite, a cultura nas favelas e que isso poderia trazer uma felicidade para a cidade que, antes, era só barraco. Aí vi a importância que ele teve na minha vida, porque me fez ver a arte com outros olhos, e até hoje estou vivendo dela", emociona-se.
No caso da grafiteira Camila Rosendo, 25, que assina os desenhos como Camz, a entrada no hip hop se deu em 2019 por meio de influência de um amigo. Depois, ela se aventurou em mutirões de grafiteiros e eventos de rap e breakdance. Amante de desenhos animados e cartas, ela conta que exalta personagens femininos, lúdicos e com muita cor para exercitar a imaginação de quem passa perto da arte.
"Gosto de trazer muitas mulheres nos meus desenhos, porque essa representatividade é muito importante para a gente, que sempre esteve presente no movimento, mas de forma invisível", diz. Segundo ela, o grafite pode até mudar a energia de um lugar, principalmente no olhar das crianças. "Quais lembranças a minha arte vai trazer quando elas estiverem mais velhas? Tudo é sobre ressignificar ambientes", questiona Camz.
Se Camz é inspirada nas músicas do rap e festas, ela deve muito da evolução da cultura a pessoas como DJ Chokolaty, 54, morador de Ceilândia Norte. Ele conta que metade dos grupos de rap do DF e Entorno desde a década de 1980 até 2005 tiveram Chokolaty como produtor musical. Não é à toa que o artista tem no currículo títulos como o Campeonato de DJs do Centro-Oeste, em 1995, na categoria performance e scratch.
O DJ, que sempre esteve em rádios com programas direcionados à cultura negra, apresenta há 25 anos o programa Cultura Hip Hop toda sexta-feira, a partir das 21h, na Rádio Cultura FM. Quando chega ao palco para discotecar, Chokolaty costuma olhar para o público antes para sentir a energia do ambiente e escolher a primeira faixa. "Desde os anos 1980 cultivo o ensinamento da arte da discotecagem e do audiovisual, junto com o ensinamento da arte que passo aos alunos", diz.
De pai para filho
Um dos principais nomes do rap do DF que ganhou destaque nacional é Marcos Vinicios de Jesus Morais, popularmente conhecido como Japão, do grupo Viela 17. Ele se orgulha da história criada no movimento e não deixa de citar a coletividade ao lembrar com carinho de 1983, ano em que começou a dançar breaking em Ceilândia.
Anos depois, em 1989, Japão montou o grupo de rap Esquadrão MCs. Em 1992, gravou a primeira participação com o Produto da Rua, de São Paulo, com ajuda do icônico DJ Raffa Santoro, produtor musical de quem é amigo. No ano seguinte, começou a fazer parceria com Gog, que rendeu participação no clássico álbum Dia a dia da periferia, lançado em 1994. Em 2000, Japão montou o grupo Viela 17, do qual faz parte até hoje. "Hoje não sou somente um rapper, porque tenho a responsabilidade de ter atenção à minha comunidade e saber o que é certo e errado", conclui.
Em algumas áreas da vida, o pai costuma ser inspiração para o filho. E com Japão não foi diferente, com o herdeiro DJ Carlos Dutra, 23, que, desde pequeno, ouvia músicas no fone de ouvido por influência do rapper. Após trabalhar na produção artística do Viela 17 e tentar ser jogador de futebol até 2019, o jovem percebeu que precisava tomar uma decisão de seguir o próprio caminho. Foi aí que vieram as aulas de DJ que o ajudaram a tocar nas casas de shows atualmente.
"Aquilo mudou a minha vida. Minha mãe e meu pai passaram essa cultura para mim. Até recebi a menção de louvor na Câmara Legislativa no Dia do Hip Hop. Me senti muito honrado porque nunca imaginei que isso poderia acontecer", emociona-se Carlos.
Com raízes firmes e profundas em Ceilândia, Saphira é outro exemplo do quanto essa cultura inspira gerações. Filha do rapper candango DJ Jamaika, que morreu em março deste ano, vítima de um câncer na coluna, a cantora e compositora relata o significado do hip hop para ela. "Defino como essência, é de onde eu vim", afirma.
Saphira observa as mudanças perceptíveis após 50 anos do movimento. "Acredito que a visão das pessoas em relação à arte evoluiu muito. Antes, o rap, grafite e afins eram coisas de marginais. Hoje em dia, as pessoas entendem que se trata de arte", comenta.
Breakdance que dá autoestima
Se Japão se inspirou no breakdance para entrar na cultura hip hop, Wanderson Sousa dos Santos, 37, vive um dos elementos dessa cultura desde os 12 anos, inspirado por familiares, bailes e festas em Santa Maria, onde nasceu. Com o tempo, ele virou o b-boy Beiço, do grupo Black Spin Break's, um dos mais antigos da capital federal. A crew começou a se apresentar no DF e Entorno em 1992, quando foi criado por Águia, Dimi, Juarez, Roni e Gordinho.
Wanderson concilia a profissão de auxiliar de cozinha e o curso de educação física na faculdade com as apresentações da crew. "A importância do hip hop deu a mim e aos meus amigos os valores de autoestima, educação, profissionalismo e conhecimentos de poder dialogar com pessoas ali que nos veem como referência", comenta.
*Estagiário sob a supervisão de Nahima Maciel
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