Cinema

Diretor de filmes de Roberto Carlos, Roberto Farias ganha documentário

Um dos pioneiros do modelo de produção independente no país, Roberto Farias é celebrado em filme dirigido pela filha Marise Farias, que estreia nesta quinta (7/12)

Num histórico Festival de Cannes, em 1960, A doce vida (de Federico Fellini) venceu obras de Bergman, Antonioni, Buñuel e Saura. Ainda na disputa, o nacional Cidade ameaçada, de Roberto Farias, demarcava o espaço verde-e-amarelo na disputa. Naquele mesmo começo de década, a chanchada Um candango na Belacap (1960) partia de Brasília, cidade tão cara ao diretor Farias, para assentar graça. Mas, num tom grave, a capital trouxe respaldo político para o cineasta que, por anos, comandou a Embrafilme e instituiu novos patamares para os filmes nacionais e criou entidades como o importante Conselho Nacional de Cinema. Morto aos 86 anos, em 2018, é por meio da filha Marise Farias, à frente do documentário Roberto Farias — Memórias de um cineasta, que muito da carreira do diretor de Rico ri à toa (1957), Pra frente, Brasil (1982) e Os Trapalhões no auto da compadecida (1987) é revisado.

"Na minha opinião, ele se orgulhava de tudo o que fez, das chanchadas, dos filmes de cunho social e político, das comédias, dos musicais, dos trabalhos na televisão. Acho que ele se sentiu realizado com O assalto ao trem pagador, com Pra frente, Brasil, Selva trágica, com os anos de sucesso da produtora e seu trabalho à frente da Embrafilme. Mas ele não ficava revirando o passado. A não ser para suas memórias afetivas", observa, ao Correio, Marise, irmã dos também diretores Mauro, Maurício e Lui.

Com títulos diversificados, Roberto foi formado na esteira da atuação do sistema de grandes estúdios como Atlântida e Maristela, despontando no meio independente. "Em 1964, quando Selva trágica não deu o resultado esperado, ele foi trabalhar na TV Globo no programa Câmara indiscreta para pagar ao banco o dinheiro que tinha pego emprestado. Quando houve a crise econômica nos anos de 1990, ele também foi trabalhar na televisão. Meu pai tinha um olhar apurado para negócios, e o negócio dele era o audiovisual, onde ele trabalhou desde os 18 anos de idade até o final da vida", conta Marise, relembra bons momentos da tevê, com as séries As noivas de Copacabana (1992), Memorial de Maria Moura (1994) e Contos de verão (1993).

Entre tantas vitórias, há um registro de breve pesar. "Acho que ele sofreu quando teve seu mandato (na Embrafilme) interrompido e com a divisão entre os cineastas para que Gustavo Dahl o substituísse no cargo. Para ele, aquele momento era único, e dificilmente se repetiria. Dahl não ocupou o cargo e aquela maré positiva (do cinema brasileiro) começou a recuar", registra Marise Farias. 

Entrevista // Marise Farias, diretora

Você vê seu pai como precursor do Cinema Novo?

Meu pai não se considerava nem precursor nem integrante do Cinema Novo. Ele dizia que era filho da chanchada, irmão do Cinema Novo e primo da tevê. Pelas ideias do movimento, ele se aproximou do Cinema Novo, além de ser amigo dos cineastas do grupo. Acho que, do ponto de vista social e político, eles tinham muito em comum. Meu pai via que o Cinema Novo trazia uma renovação necessária para que o cinema nacional fosse mais diversificado e se tornasse uma atividade viável economicamente. Era preciso, naquela época, aumentar a quantidade e a qualidade dos filmes. Por isso, em 1965, eles se uniram para fundar a Difilm, uma distribuidora independente que tinha por objetivo fazer com que seus sócios, que eram produtores, pudessem ter acesso direto à renda dos seus filmes para produzir novos filmes. Esse grupo era formado por 11 integrantes, que eram Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Roberto Farias, Riva Farias, Rex Engels, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Paulo César Sarraceni e Luiz Carlos Barreto. Naquela época, era preciso conquistar o mercado e o cinema dependia exclusivamente do resultado da bilheteria. Meu pai considerava que essa experiência tinha uma importância histórica e que foi fundamental para consolidar o Cinema Novo.

Houve muito risco financeiro no cinema empreendido pelo seu pai?

Ele sabia que cinema era uma atividade de risco. O primeiro filme dele, em 1957, foi feito com dinheiro emprestado de agiota, com a casa do meu avô como garantia. Logo de cara, ele entendeu que mesmo que um filme fizesse sucesso nas bilheterias, seu espaço no mercado não estava assegurado e que havia pressões de todos os lados, dos exibidores, das distribuidoras estrangeiras que dificultavam e ainda dificultam o acesso dos filmes brasileiros ao público. Quando meu pai e meus tios fundaram a A R.F. Farias, em 1963, não havia mecanismos de incentivo fiscal, editais, que conhecemos hoje.

A empresa produzia com recursos próprios e o retorno financeiro vinha da venda de ingressos. Mas ele tinha muita confiança na sua capacidade de diálogo com o público e de levá-lo ao cinema. Como diretor e produtor, ele fez diversos sucessos de bilheteria: a trilogia com Roberto Carlos dirigida por ele, Os paqueras, Toda nudez será castigada, que ganhou o Urso de Prata do Festival de Berlim, A rainha diaba, O casamento, O casal, Em família, a trilogia Tio Maneco, dirigida por Flávio Migliaccio, Pra frente Brasil, Com licença eu vou à luta. Os filmes da produtora fizeram mais de 32 milhões de espectadores.

A Embrafilme ganhou que dimensão no dia a dia de Roberto Farias, depois de implodida?

A entrada dele na Embrafilme mudou os rumos da história do cinema brasileiro. Foi uma época de ouro. A empresa passou a coproduzir e distribuir filmes brasileiros, se tornou a maior distribuidora da América Latina. Isso rompeu os preconceitos do público contra o filme nacional. Naquele período, foi produzido o fenômeno de bilheteria Dona Flor e seus dois maridos, e grandes sucessos como Xica da Silva, A Dama do Lotação e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. Ao fim da gestão dele, que acabou em 1979, a lei de obrigatoriedade chegou a 140 dias por ano e os filmes brasileiros chegaram a ocupar 40% das salas de cinema por ano. Essa e outras medidas como a Lei do Curta, que destinava 5% da bilheteria de filmes estrangeiros para produção de curtas brasileiros, despertaram a oposição da poderosa Motion Pictures que enviou seu representante Jack Valenti para tentar mudar as leis brasileiras aprovadas no Congresso e atacar a política de cinema feita no Brasil naquela época.

Houve algum ressentimento entre o Roberto Farias e a classe cinematográfica?

Meu pai não era de cultivar ressentimentos e não tinha desafetos. Ele sofreu muitas críticas quando foi diretor da Embrafilme. De uma forma geral, ele lidava bem com o contraditório porque era um homem de diálogo. Havia muitas pressões naquele período por parte de cineastas que não conseguiam financiamento para seus filmes ou que queriam um financiamento acima do limite estabelecido. O Glauber Rocha que o criticava muito, certa vez falou "gosto de você porque você não foge da polêmica". Pelas declarações que ouvi de Cacá Diegues, Barretão, Zelito Vianna e Walter Lima Jr., minha impressão é a de que os cineastas de uma forma geral consideram a gestão do Roberto muito positiva para a consolidação do cinema brasileiro, no enfrentamento da censura, contra a perseguição da ditadura militar a cineastas e de setores da imprensa que criavam factóides para desestabilizar a política do cinema brasileiro daquele período, e ainda na luta contra a dominação do mercado pelo cinema norte-americano.

Roberto Carlos foi grato ao mestre; eles se tornaram amigos?

Meu pai tinha uma admiração enorme pelo Roberto Carlos e acho que surgiu uma amizade muito forte entre os dois. Foram os momentos mais felizes da vida do meu pai. Eles viajaram pelo mundo. Filmaram em Nova York, Cabo Canaveral, Tóquio, Cesareia, Jerusalém, na Pedra da Gávea, na Ilha Rasa. Eles tinham um projeto de fazer cinco filmes e acabaram fazendo três. Ele se divertia contando as histórias da produção desses filmes com Roberto Carlos. Eram filmes essencialmente musicais, que falavam com a cultura pop da época. Por isso, os filmes buscam uma ousadia, especialmente Roberto Carlos em ritmo de aventura (1967), que faz uma brincadeira de metalinguagem. Para eles, foi uma verdadeira aventura produzir o filme.

De qual aventura de bastidor teu pai mais se gabava?

A cena mais ousada foi a do helicóptero atravessando o Túnel do Pasmado (Botafogo). E o piloto resolveu ser ainda mais ousado, para surpresa de todos. Em vez de passar em baixo do viaduto para entrar no túnel, como o combinado, ele desceu o helicóptero entre o viaduto e o morro da entrada do túnel. Como eles tinham somente uma câmera, tiveram que passar o helicóptero diversas vezes por dentro do túnel. Mas a cena mais perigosa foi a do avião da esquadrilha da fumaça que quase explode por 1/24 avos de segundo, que é o tempo de um fotograma. Como não havia computação gráfica naquela época, as explosões tinham que ser de verdade. Quando o avião dá um rasante, 400 litros de gasolina enterrados na areia são explodidos e quase que tudo vai pelos ares, inclusive meu pai, que estava dentro do avião.

Perseguir a viabilidade do que fosse complexo foi marca do seu pai?

Na experiência da Embrafilme, houve um aprendizado riquíssimo para meu pai, que passou a vida buscando provar a viabilidade do cinema brasileiro. Ele dizia que não era suficiente se preocupar com fazer filmes, era necessário conquistar o mercado. Por isso, ele também exercia uma atividade política a favor da regulação do Estado para garantir a existência da atividade audiovisual. No entanto, a reação contrária do cinema estrangeiro, dos exibidores, a perseguição de parte da imprensa alinhada com o cinema americano através de jornais como Tribuna da Imprensa foi muito grande e as fontes de receita da Embrafilme, que vinham do mercado, secaram com a extinção dos postos de fiscalização de bilheterias. O final foi melancólico com a extinção da Embrafilme pelo governo Collor, e o cinema brasileiro quase desapareceu.

Qual a maior descoberta sua, no processo, ao lidar com alguém tão reservado?

Depois que meu pai faleceu, encontrei no computador dele textos que ele estava organizando para colocar em um livro de memórias, que eu pretendo publicar. Isso foi revelador para mim, porque pude entender com mais clareza traços que definiam sua personalidade desde criança. Achei muito interessante conhecer histórias que ele nunca tinha me contado ou que eu sabia vagamente. Por outro lado, seus textos me mostraram sua lucidez sobre a importância da sociedade poder se expressar, de ter seu ponto de vista. E ele também tinha consciência da sua capacidade de lutar por isso.

 

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Fotos: Reprodução - O diretor Roberto Farias: filho da chanchada, irmão do Cinema Novo e primo da tevê
Divulgação - Cena de Roberto Farias — Memórias de um cineasta