Viajar sem sair do lugar, aprender, embarcar em histórias bem contadas sem precisar enfrentar filas de cinema e descobrir mil mundos só com a imaginação são alguns dos presentes que a leitura pode trazer. E qualquer um deles pode ser bem mais valioso que objetos acumulados em um tempo no qual o consumo desenfreado precisa ser repensado. O Diversão&Arte fez uma lista de livros recém-lançados para você dar de presente de Natal.
Vento de queimada
De André de Leones. Record, 518 páginas. R$ 89,90
André de Leones chama de "pequi noir” esse romance que é, também, um faroeste em pleno Centro-Oeste. Sétimo romance do autor, Vento de queimada se passa na década de 1980 e Isabel, a protagonista, é uma moça formada em história e matadora de aluguel. São muitas as camadas que formam essa personagem, nascida há duas décadas quando Leones escreveu o conto Paz na terra entre os monstros. “A gênese de Isabel e do universo no qual ela se movimenta está ali”, avisa. Salientar os contrastes era um dos objetivos do autor ao criar a personagem. Mergulhada num universo masculino, machista, corrupto, violentíssimo, ela também é uma mulher intelectualizada, que teria outros rumos possíveis na vida, sendo o de matadora o mais improvável. “Achei que esses contrastes ajudariam a suscitar e manter o interesse do leitor pela história”, explica Leones.
Ele escolheu os anos 1980 porque precisava de um tempo no qual desencontros hoje improváveis, por conta de celulares e internet, fossem possíveis. “Além disso, quis traçar um painel dos estertores da ditadura e do nascedouro da Nova República (hoje morta e enterrada)”, explica. Ele traz para Vento de queimada uma ideia que havia explorado em Abaixo do paraíso, publicado em 2016. “É aquela noção de que, no Brasil, mundo e submundo são uma coisa só, de que a diferença entre um senador corrupto e um matador é apenas uma questão de grau (ou de degraus). Afirmo que os vícios que nos trouxeram à situação atual são vícios de origem e sempre estiveram presentes na (de)formação do Brasil.”
Para o autor, o Brasil de Isabel não é muito diferente do de hoje. “Não voltamos à ditadura, é verdade, mas a atmosfera e a retórica ditatoriais estão muito presentes”, afirma. Os personagens também dizem algo sobre como a violência, agora e antes, costuma ser o primeiro recurso, não o último. “Estamos no mesmíssimo lugar, política e animicamente”, lamenta. No livro, Isabel é constantemente empurrada para trabalhos sangrentos enquanto entra em uma espiral inevitavelmente autodestrutiva para lidar com um trauma pessoal.
Onde pastam os minotauros
De Joca Reiners Terron. Todavia, 182 páginas. R$ 69,90
O Crente e o Cão trabalham em um matadouro num Mato Grosso ficcional imaginado pelo escritor Joca Reiners Terron com contornos muito próximos da realidade. O local, inusitadamente, é especializado em abate religioso halal. É Ahmed quem degola os animais enquanto recita orações para Alá. O Crente e o Cão foram rebaixados em suas funções por não serem muçulmanos e trabalham assaltados pelo medo da demissão. Temem acabar como a massa de famintos que se amontoa em frente ao matadouro à espera de restos. Personagens que saíram de um presídio, outros marcados por perdas traumáticas e pela violência de um cotidiano desigual e bruto povoam a narrativa.
Duas histórias pessoais conduziram Joca em direção ao romance. Em meados dos anos 2000, ele recebeu um convite para visitar um matadouro sul-matogrossense e escrever uma reportagem que nunca foi feita. “Sobrou o desejo de escrever sobre o assunto, que me é caro desde sempre, pois meu avô tinha um matadouro às margens do rio Aricá, perto de Cuiabá. Já o personagem nasce da própria escrita”, conta. Nomear os personagens com substantivos e não nomes próprios foi uma escolha representativa das inquietações do autor. “A literatura está em permanente dissidência da realidade. Com isso, algo que é imposto pelo Estado, nosso direito a uma identidade e a um número que designa essa identidade ao lado de um nome próprio, é o alvo dos meus personagens. É o Estado que chancela o personagem que representaremos ao longo da vida. No entanto, um apelido às vezes nos representa mais do que o nosso nome de batismo”, explica.
O Cão e o Crente representam o que Joca chama de desacordo em relação ao estado das coisas. “Cada um de meus personagens é um desdobramento das minhas inquietações. Sou cada um deles, na medida em que todos eles são eu”, avisa. O romance também traz inquietações sociais. O Brasil é um dos maiores produtores de carne do mundo e milhares de pessoas trabalham nessa indústria. “Mas quem são elas e o que sentem por trabalharem com a morte de animais em escala industrial? Qual é a dor moral desse trabalhador que a bandejinha de isopor com dois bifes no supermercado carrega?”, questiona o autor, que se inspirou em “perguntas que ninguém quer pensar, quanto mais fazer”.
As pequenas chances
De Natália Timerman. Todavia, 206 páginas. R$ 69,90
A meio caminho entre a ficção e o relato pessoal, o romance de Natália Timerman é para ser lido como um remédio literário que percorre, de mãos dadas com a narradora, o caminho dolorido do luto. Natália começou o livro dois meses após a morte do pai. Levou oito dias para escrever a primeira parte, a mais dura, aquela que mergulha na ausência de sentido dos fatos mais corriqueiros da vida após a perda de um ente amado. Médica como o pai, a autora viu os papéis se inverterem durante o tratamento do câncer que matou Artur. É de um encontro fictício com Felipe, médico de cuidados paliativos responsável por amenizar os últimos dias o paciente, que Natália parte para escrever As pequenas chances. Num saguão impessoal de um aeroporto, meses após a partida de Artur, ela encontra Felipe, para quem a narradora confessa ter tido vontade de ligar inúmeras vezes enquanto escrevia. O encontro puxa os fios do luto e mergulha a filha em outras camadas. “Tem trechos até meio ensaísticos na primeira parte, o tipo de relato vai se alterando, são respiros dessa dor, dessa escrita que encara a morte”, avisa Natália.
A ancestralidade judaica e os rituais da morte que acompanham essa religião se apresentam como um universo seguro ao qual a narradora se apega e no qual encontra um conforto inédito. Ela nunca havia prestado muita atenção às práticas do judaísmo. “Ir atrás dos significados do ritual me ajudou durante o luto e minha intenção era que ajudasse também o leitor”, diz. “O livro é a história de um luto e é a história do nascimento de um interesse pela ancestralidade. Tem uma descoberta de um interesse pela própria história a partir de uma lacuna grande que se faz da história. O interesse surge da impossibilidade de preencher essas lacunas”, garante.
Crucial dois um
De Paulo Scott. Cobogó, 134 páginas. R$ 50,40
A estreia na dramaturgia do escritor gaúcho traz para o leitor uma distopia na qual a disputa pela água é um centro de tensão. Nesse cenário, dois personagens lutam para manter o mínimo de dignidade em uma sociedade apocalíptica.
Muito além dos salões — Bebê Lima e Castro, musa do Rio em 1900
De Marcelo Fagerlande. 7Letras, 184 páginas. R$ 78
Cravista e professor da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo Fagerlande foi atrás da história de uma das mulheres mais conhecidas dos salões cariocas da Belle Époque. Nascida em Paris e herdeira de uma família rica do Rio de Janeiro, Violeta Lima e Castro, conhecida como Bebê, foi musa de poetas e autores, entre eles João do Rio, e chegou a ter uma breve carreira artística como atriz e cantora lírica. Era em seus salões que a elite carioca se encontrava em reuniões literárias e saraus.
Que por você se lamente o Tigre
De Emilienne Malfatto. Tradução: Raquel Camargo. Nós, 96 páginas. R$ 66
Jornalista e fotógrafa, a autora francesa trouxe do Iraque a história dessa jovem que, após viver um amor proibido pela tradição e pela religião, se vê confrontada à morte, ao isolamento e à violência. Emilienne Malfato cobriu o conflito do Iraque como freelancer em 2015 e 2016. Foi da observação de uma sociedade oprimida por um patriarcado que não tolera a liberdade feminina que a autora deu forma à narrativa. O romance é entremeado pelos lamentos do rio Tigre, berço da cultura mesopotâmica, e ganhou o Prêmio Goncourt de Primeiro Romance.
Cidade da vitória
De Salman Rushdie. Tradução: Paulo Henriques Brito. Companhia das Letras, 382 páginas. R$ 99,90
O novo romance do indiano Salman Rushdie, primeiro a ser lançado após o Nobel de literatura sofrer um atentado em 2022, narra a história de uma menina que adquire poderes divinos após ficar órfã. Imersa em um universo fantástico que incorpora elementos da realidade cruel de guerras e violências, a pequena Pampa Kampana passa a ser a própria voz da deusa Parvati. Dessa confluência nasce a cidade Bisnaga, fortaleza e base para um império onde homens e mulheres são iguais.
Um amor
De Sara Mesa. Tradução: Silvia Massimini Felix. Autêntica Contemporânea,168 páginas. R$ 38,90
Nat é uma tradutora que, após um episódio constrangedor, decide fazer um retiro em uma cidade rural e isolada. No vilarejo de La Escapa, a personagem vai se deparar com habitantes peculiares e com um ambiente que nada tem da normalidade que aparenta. Julgamentos, transgressões e preconceitos são alguns dos embates com os quais Nat precisará lidar. Sara Mesa foi considerada pela crítica uma das revelações da literatura espanhola contemporânea e o romance ganhou os prêmios Cálamo Extraordinário e Andalucía de la Crítica.
Annie John
De Jamaica Kincaid. Tradução: Carolina Cândido. Alfaguara, 134 páginas. R$ 69,90
Primeiro romance de Jamaica Kincaid, Annie John foi publicado em 1985 e narra uma história passada na década de 1960, em uma Antígua que acabara de se tornar independente. A descoberta da identidade, o confronto com o colonizador e as tensões entre mãe e filha fazem parte da narrativa, que acompanha a chegada à idade adulta da jovem Annie John.