Até mesmo as mais bonitas das relações chegam ao fim. A 56ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro se encerra hoje. Estava prevista a exibição do filme Raoni — Uma amizade improvável, que conta a história do encontro entre dois jovens de mundos completamente diferentes: o cacique Kaiapó e o cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux, mas a organização cancelou a apresentação do filme. A cerimônia de premiação da mostra competitiva fecha essa edição do evento e inclui a mostra competitiva, a mostra Brasília e o troféu Saruê, entregue pela editoria de Cultura do Correio Braziliense. O troféu é produzido pelo artista plástico Francisco Galeno, que nunca repetiu uma estatueta. Para a edição deste ano, o artista fez uma versão estilizada de um estilingue que será entregue ao melhor momento do festival segundo a redação.
Costumeiramente atrás das câmeras, Dutilleux é um renomado cineasta belga com coração brasileiro. O diretor conquistou o reconhecimento internacional quando, em 1978, foi indicado ao Oscar de melhor documentário de longa-metragem com o filme Raoni, uma investigação das complexas questões envolvendo a sobrevivência dos indígenas brasileiros e a preservação da Floresta Amazônica. O documentário foi produzido com a colaboração do diretor de fotografia brasileiro Luiz Carlos Saldanha, e narrado pelo ator Marlon Brando, que posteriormente estrelaria O poderoso chefão.
“Desde 1973, quando fiz a primeira entrevista com Raoni na aldeia Kretire, até 2023, foi um longo caminho”, conta Jean-Pierre Dutilleux. Honrado, o cineasta afirma que nesse período pôde “ver o cacique ser reconhecido como o maior defensor da Floresta Amazônica e representante dos povos indígenas do mundo, lutando pela preservação de suas culturas e territórios”.
A ideia de produzir um longa com o ponto de vista mais pessoal surgiu do roteirista e diretor de cinema brasileiro Marco Altberg. Segundo Altberg, Dutilleux tem uma história particular com o cacique Raoni, a qual ele pôde testemunhar por décadas. “Depois do filme realizado nos anos 1970 fizeram várias ações juntos em campanhas internacionais para chamar atenção sobre a situação dos povos indígenas constantemente ameaçados em seu território e sua cultura”, relembra.
Altberg é conhecido por trabalhar nos filmes Fonte da saudade (1985), Panair do Brasil (2007) e Prova de fogo (1980). Desde a infância, o produtor demonstra interesse pela cultura e a causa indígena, fascínio este que moldou a sua carreira como cineasta. “Antes mesmo de trabalhar com cinema, eu queria de alguma forma trabalhar com os povos indígenas”, afirma Marco Altberg. Nos tempos de estudante, iniciou o curso de sociologia com vistas à antropologia, mas o cinema “me capturou e terminei unindo as duas coisas realizando filmes com temática indígena”.
Os filmes orbitam no mesmo personagem, entretanto, o documentário de 1978 e o de 2023 são situações diferentes. “O filme dos anos 1970 foi uma grande novidade que revelou esse personagem único e poderoso desde jovem”, afirma Altberg. “Uma amizade improvável (2023) tem o valor histórico de mostrar às novas gerações a importância do grande cacique cuja fala desde sempre denuncia a situação dos povos originários brasileiros e a necessidade da preservação do planeta.”
A digitalização do audiovisual possibilitou o acesso dos indígenas a equipamentos para realizarem seus próprios conteúdos. Para o produtor, “isso é maravilhoso porque permite que eles possam registrar e contar as suas histórias”. “É um mundo de extrema riqueza, e ninguém melhor do que os próprios indígenas para fazer isso. O audiovisual é uma arma poderosa e eles estão fazendo um ótimo uso”, afirma.
Marco Altberg também trabalhou com outras personalidades indígenas ao longo da sua carreira. Um dos mais notáveis foi o líder e escritor imortal Ailton Krenak, com quem produziu o documentário O sonho da pedra. “A sabedoria indígena é um patrimônio do nosso país”, afirma o cineasta. “Poucas nações têm a diversidade de culturas originárias como o Brasil, e, felizmente, isso vem sendo cada vez mais reconhecido.”
Desavença entre Raoni e o diretor
Ontem, uma notícia da Associated Press trouxe o filme à tona quando o cacique Raoni acusou Jean-Pierre Dutilleux de reter o dinheiro arrecadado com os filmes para si. A acusação ocorreu após os dois se encontrarem na estreia do filme no Festival de Cannes e posarem para fotos juntos, de mãos dadas. Dutilleux se defendeu alegando que o líder indígena “diz besteiras por causa da idade”.
Na tarde deste sábado, a organização do festiva emitiu nota informando que a exibição que estava prevista para esta tarde foi cancelada. "Tendo em vista os recentes acontecimentos envolvendo o diretor do filme Raoni - Uma Amizade Improvável, a direção do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro decidiu cancelar sua projeção na sessão de encerramento da edição, às 16h deste sábado (16). Às 21h, o Festival de Brasília realiza a tradicional cerimônia de premiação das Mostras Competitiva Nacional e Brasília, no Cine Brasília."
Serviço
Cerimônia de premiação da 56ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Hoje, às 20h no Cine Brasília. Entrada gratuita.
*Estagiário sob supervisão de Severino Francisco
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