O cotidiano interrompido pela nebulosa dúvida que acompanha a morte coexistem no enredo da última ficção, completamente pura, na disputa pelos troféus Candango: Cartório das almas, filme a ser exibido no Cine Brasília (EQS 106/107), na noite desta quinta-feira (14/12). Segundo longa de Leo Bello, o filme marca a presença da capital na mostra central do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Cartório das almas traz embutido o fator do ineditismo sem ter composto nenhuma seleção em festival de cinema anterior. "Isso é fundamental, enriquecedor seja para o festival e ainda para um panorama nacional onde sempre mais presenciamos uma vasta produção fílmica de qualidade. Além disso, o ineditismo permite dar luz a filmes ousados que podem começar uma carreira a partir da seleção no evento", observa o cineasta.
Ao Correio, Bello conta que o elenco foi se construindo a partir da protagonista, a Gabriela Correa: "Notei o apelo minimalista de sua atuação e não tive nenhuma duvida sobre propor para ela o protagonismo. Desde as primeiras conversas, ainda na construção da personagem da Laura, ressaltaram as habilidades artísticas da Gabriela além da interpretação, o canto e a dança, que também foram entregadas no filme. Estou muito contente com a atuação impecável da Gabi e por ela ter aceitado embarcar nessa aventura e fazer seu primeiro protagonismo. No filme, ela é Laura, uma jovem funcionária de 126 anos, que representa a vontade de viver uma vida plena, digna, e que, apesar das dúvidas, tem a força de seguir e honrar as próprias decisões".
No filme, Leo Bello reforça a parceria com atores que geram a admiração dele como o Wellington Abreu, Chico Sant´Anna, Gabrielle Lopes e Camila Guerra, apostando ainda na consagrada Paula Passos, e buscando, no teatro, novas descobertas para o cinema como Roustang Carrilho, Lohany Kayná, Maria Carolina Machado, Deni Moreira, Kamala Ramers e Victor Cavalcante. "Tenho muito orgulho de ressaltar que todo o elenco é de Brasília; nisso, há a confirmação dos excelentes atores que temos na nossa cidade. Não posso deixar de mencionar o Nego Drama, o pássaro preto, que muito simbolizou no filme", avalia.
Debates sobre vida e morte dão norte à produção. "Até as locações foram escolhidas para conduzir a um ritmo dos opostos. Se transita entre o minimalismo das geometrias urbanas imortais de uma Brasília modernista e futurista, valorizadas por exemplo as linhas do Museu Nacional ou da Torre Digital, em contraposição à natureza viva, mas precária, onde ergue-se o Cartório, no meio de uma plantação de soja no Cerrado do DF. O conceito não convencional do cotidiano, desconstruído que permeia o cenário, é emaranhado à seriedade das personagens que trazem as próprias inquietações existenciais", comenta o cineasta.
Direção fundamtental
Por Maíra Carvalho, diretora de arte do longa
A direção de arte é de fundamental importância no longa, assim como a direção fotografia e toda a composição estética do longa. O filme é fantástico e busca uma atemporalidade, se passa em um sem tempo e um não lugar. A arte mistura sensorialidade, memória, o inconsciente e transita em outras camadas da psique humana e por várias vertentes artísticas. Optamos por uma paleta de cores restrita que transpõe a sensação de frieza que permeia a relação eternidade / vida e morte no filme e por imagens que buscam a estesia.
Entrevista // Leo Bello, cineasta
É difícil transitar numa linha tênue num roteiro que mexe com abstrações, como no caso de Cartório das almas?
Sim, é difícil construir as regras de um mundo abstrato, com um tom fantástico, que seja compreendido no imaginário do espectador. Retratando um tema metafísico e filosófico, como o dualismo vida/morte, achei mais interessante quebrar a barreira da realidade para se apoiar em um mundo próprio onde a construção do tema tinha uma maior liberdade. O que me influenciou bastante nas construções abstratas da narrativa foi a abordagem que pensadores como Nietzsche, Aristóteles e Schopenhauer têm a respeito da morte. Não só o roteiro, mas o conceito da fotografia e da arte contribuíram para trazer elementos que trilham um caminho de abstração, quase surrealista.
Como se policiou para ficar numa esfera verossímil?
A esfera do verossímil no filme é mantida em pé com um dualismo continuo entre o que conhecemos, a realidade da vida e o mistério da morte. São retratados objetos do cotidiano em contraposição à objetos desconstruídos, quase surreais que reconhecemos, mas que percebemos que mudaram, como a simbolizar a falta de controle que temos perante ao se aproximar da morte, algo que sempre será incompreensível. A busca para criar um mundo com uma atmosfera inusitada que seja ao mesmo tempo crível, foi pensada esteticamente, tanto na arte quanto na fotografia. O diretor da fotografia, Pedro Maffei, buscou planos abertos reforçando a vastidão dos cenários de Brasília em contra ponto com planos mais próximos. Uma construção na fotografia foi criar uma atmosfera única em que o espectador sentisse uma suspensão do tempo.
Você já tratou de surto psicótico, de terapia: a que se deve a vontade de explorar a condição feminina como a de Laura?
No novo tinha a intenção de buscar uma leveza para o tema da morte, como uma dança de transformação, como um canto que não vai se calar, como o voo de um pássaro. A condição de Laura não é ligada necessariamente a condição do feminino como necessidade de tratar o tema da morte, pois ele é transversal e ligado a uma condição existencial. Qualquer ser vivente vai passar para morte. Assim como o surto psicótico que já tratei no O espaço infinito é uma condição existencial que precisa de ser conhecida, falada e desmistificada, a morte faz parte da nossa vida e precisamos olhar para ela. Sempre enxerguei a morte como um momento mágico de transição para outro sentido da vida e isso que quis trazer na tela.
A eternidade tem que peso no filme?
A eternidade é colocada em xeque continuamente no filme em contraposição com o direito pessoal à morte. Será que a corrida à eternidade vale mais do que o ciclo natural da vida/morte? Durante o processo de pesquisa para o roteiro do filme, li uma matéria sobre bilionários que tinham investido muito dinheiro em um laboratório de biotecnologia para parar o envelhecimento. Isso me trouxe varias reflexões a respeito do esvaziamento do sentido da morte. As pessoas querem viver para sempre, e a qualquer custo?! Tem casos em que a medicina ocidental trata as pessoas com doenças terminais como corpos que precisam viver a qualquer custo, já vivi de perto essa experiência que me marcou profundamente. Infelizmente, com esse modus operandi, uma parcela da população acaba morrendo, sob cuidados médicos, longe da família. Tem países, que adotam um protocolo medico para doentes terminais, que prevê uma luta pela vida sem enxergar um caminho para uma morte digna, outros que escutam as vontades da pessoa.
Wellington Abreu, ator do filme, trouxe que aprendizado do cinema de Adirley Queirós?
Wellington Abreu para mim é um grande ator, um ator eclético e sagaz no qual acredito para criar junto. Trabalhei também com ele no O espaço infinito, meu primeiro longa de ficção, e começamos uma relação de afinidade, liberdade e confiança. Acho que o Adirley enfatizou ainda mais o engenho do ator e a liberdade criativa do Wellington, considerando-o uma peça fundamental do processo de criação, isso para mim, ainda ressoa na arte do Wellington de entrar e viver a personagem trazendo uma profundidade existencial naturalista.
Qual o risco de tédio para personagens imortais? Aliás, alguns são imortais?
A lida com a imortalidade é representada não diretamente como tédio, mas como perca de sentido da vida. Não sabemos se, entre esses personagens, alguém irá renunciar a prolongar a vida ou irá aceitar o próprio destino, vemos que têm personagens que recusam a imortalidade. Os aspirantes imortais são apresentados sutilmente no filme, através do anseio de não querer desistir da matéria seja própria ou de entes queridos, nem dos prazeres efêmeros dela, não querem lidar com o medo do envelhecer e das consequências psicofísicas, por isso se sujeitam à tratamentos rejuvenescedores, as vezes contra a própria vontade.
Como chegou ao elenco?
A partir do protagonismo da Gabriela, buscamos o elenco para ser o entorno afetivo dela. Para isso, a Guinada Produções, que assina a produção do elenco, foi fundamental na descoberta de novo talentos e novas parcerias. Tudo com a Larissa Mauro, que foi a preparadora do elenco do filme, uma peça essencial para a fita. O trabalho com o elenco foi fundamental para aprimorar os diálogos e trazer um tom naturalista no meio de regras de um mundo fantástico. Retrabalhamos algumas cenas com as atrizes e atores construindo e desconstruindo as personagens, acrescentando novas nuances de acordo com cada atriz e ator. Foi um trabalho intenso de imersão e escuta, muito importante para incorporar o texto de forma natural.
Serviço
Filmes da noite
No Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa do DF Cartório das almas, de Leo Bello. Sessão acompanha os curtas: O nada, filme carioca de André Ladeia, em que Pedro Paulo Rangel interpreta um idoso que recebe a visita do diabo, e Cáustico, filme local de Wesley Gondim que traz o personagem de Sérgio Sartório envolvido em dilema moral atrelado à doença de uma mãe. No Complexo Cultural de Samambaia, às 20h, a mesma programação terá entrada livre.