Há inúmeras relações que se pode fazer entre o novo filme de Martin Scorsese e as mais variadas questões referentes à agenda contemporânea de inclusão e reparação da discriminação étnica. Vale à pena aqui fazer uma pequena analogia do filme com um acontecimento histórico brasileiro. Quando foi criado o Memorial Zumbi, na Serra da Barriga, no município alagoano de União dos Palmares, intelectuais brasileiros os mais variados perceberam aquilo como um marco histórico e simbólico na luta contra a segregação racial no Brasil. Esses intelectuais haviam sido convidados pela Universidade de Alagoas para subir à pé ou, se possível, de carro, até o topo da íngreme elevação onde teria lugar a cerimônia de inauguração do monumento dedicado a Zumbi.
A estrada era precária. Era o início dos anos 1980. Subir não era nada fácil. Entre as personalidades presentes estava o progressista e saudoso bispo Pedro Casaldáliga. No meio do árduo trajeto, sem que ninguém lhe perguntasse, disse em alto e bom som que aquilo que faziam era um ato penitencial. Assassinos da Lua das Flores é também um ato penitencial. Católico, Scorsese quis fazer uma reparação histórica, não em relação aos afro-descendentes norte-americanos, mas aos povos originários do seu país, os indígenas, igualmente segregados. A história contada é baseada em fatos reais e aterrorizantes, isso para dizer o mínimo. Scorsese tomou contato com o livro de David Grann, Killers of the Flower Moon, origem do filme, e correu para comprar os direitos cinematográficos antes que alguém o fizesse. Mas ninguém correu. Aparentemente havia uma inconsciente conspiração para o oblívio de uma memória desonrosa, aviltante na construção histórica da “nobre” colonização norte-americana. Sem sombra de dúvida, Scorsese procura saldar uma dívida com o passado de seu país. A premissa do filme é muito simples e chocante. Seus desdobramentos são ainda mais chocantes. No início o que vemos é quase uma fábula fantasiosa, afinal de contas o que podemos pensar de uma etnia indígena, os Osage, deslocada de seu território original e que, num supremo e assombroso golpe de sorte, encontram petróleo na inóspita terra para onde foram obrigados a se estabelecer.
Os Osage se tornam os mais ricos cidadãos da América. É um fato real. Repetindo: o que vamos ver mais adiante aconteceu de fato! Scorsese nos faz o relato de uma maquiavélica trama de eugenia levada adiante por fazendeiros e tutores brancos da região. Tutores, sim, tutores, porque o governo norte-americano considerava que os indígenas não tinham traquejo para lidar com dinheiro, com muito dinheiro. Até aí tudo bem. Começamos a perceber as minúcias do que se passa de fato a partir do momento em que um homem chamado Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), recém-chegado ao território dos Osage após lutar na Primeira Guerra Mundial, é acolhido pelo influente fazendeiro William Hale (Robert De Niro), que oferece a Ernesto emprego de motorista.
E é assim, nessa função, que ele conhece Mollie (Lily Gladstone), uma Osage com quem vai se casar. O filme tem mais de três horas de duração, duas magníficas, uma non troppo. Há uma clara redundância do enredo no último terço do filme. Antes dele, já sabíamos do ignóbil conluio dos homens brancos para eliminar suas esposas Osage e embolsar o dinheiro do petróleo. Sabíamos também dos métodos utilizados por cada um deles. O velhaco da história é a personagem de De Niro. Ele, pusilânime, com suas citações bíblicas, influencia Ernest e todos os outros para seus atos vis. Ernest, o tolo simplório e servil. Scorsese mantém o controle fino das cenas, elementos dramatúrgicos e diálogos nos primeiros dois terços de Assassinos da Lua das Flores, assim como já havia feito em O Irlandês. Mas acima de todos e de tudo está o brilho fulgurante de Lily Gladstone como Mollie. DiCaprio desafina o coro quando inexplicavelmente tenta fazer uma canhestra caricatura de Marlon Brando no citado último terço do longa. A despeito dos ótimos dois terços iniciais, o final de Assassinos da Lua das Flores caminhava para ser um banal thriller protagonizado por agentes do FBI, não fosse a brilhante última seqüência, uma meta seqüência extemporânea, com a presença em cena do próprio diretor Martin Scorsese.
Para grande parte do público contemporâneo, Martin Scorsese representa a quintessência do cinema hollywoodiano. No entanto, ele começou como sua antítese. Como a coisa nova. Em seu livro Hollywood Renaissance, Diane Jacobs o cita ao lado de Robert Altman, John Cassavetes, Francis Ford Coppola, Paul Mazursky, entre vários outros, como uma nova geração que desponta de forma independente, justamente para se confrontar com o cambaleante Golias de Hollywood. Os novos diretores surgiram numa circunstância muito específica, alguns antes, caso de Altman, que vinha do documentário e da TV desde os anos 50, e de Cassavetes, oriundo do contexto underground, também nos anos 1950. Mas a explosão do “new american film” se daria, também, graças ao retumbante fracasso de Cleópatra (1963), de Joseph L.
Mankiewiscz, superprodução que contava em seu elenco (vejam bem!) com pesos pesados como Elizabeth Taylor, Richard Burton e Rex Harrison. O impulso para este novo cinema norte-americano não se daria apenas pela perda de fé dos executivos das majors pelas grandes produções de massa. A sociedade estava mudando. Instituições começaram a lançar um olhar para além do seu próprio umbigo, para o que vinha de fora do país. Em 1963, o Festival de Cinema de Nova Iorque apresenta uma mostra de filmes da nouvelle vague francesa. O impacto dos filmes de Godard, Truffaut, Chabrol foi enorme sobre jovens estudantes de cinema do país. Gente ligada à atividade cinematográfica começou a se perguntar se não haveria do outro lado do Atlântico gente capaz de promover um cinema mais dinâmico, mais próximo dos corações de uma platéia que buscava algo mais do que o grande espetáculo escapista oferecido pela indústria do novo continente. À época, os produtores fizeram suas apostas em estudantes recém saídos da U.C.L.A. (Universidade da Califórnia de Los Angeles). A reviravolta se daria como conseqüência dos inesperados triunfos comerciais de Bonnie and Clyde, de Arthur Penn – cuja cabeça do mesmo modo havia sido feita pela nouvelle vague francesa -, e de A primeira noite de um homem, de Mike Nichols, este proveniente do teatro.
No final da década surgem então os diplomados Coppola (U.C.L.A), Scorsese e Brian De Palma (New York University — NYU), George Lucas (University of Southern California — USC) e Terrence Malick (American Film Institute). Dentre todos esses mencionados, talvez seja Scorsese aquele que construiu a obra mais pessoal. Muitos dos seus filmes trazem muito da vivência da comunidade ítalo-americana na América,
especialmente da “Little Italy” (bairro novaiorquino de Manhattan), desde os curtas realizados ainda em seu tempo de estudante, passando pelo seu primeiro longa-metragem, Quem bate a minha porta? (1967), por Caminhos perigosos (1973), Taxi driver (1976), Touro indomável (1980), Os bons companheiros (1990), Gangues de Nova Iorque (2002), são alguns outros. A violência de muitos de seus filmes tem muito a ver com o passado de gangsterismo de seus antepassados, com a segregação experimentada pelos imigrantes italianos, “grupo étnico” (eles eram assim definidos pela literatura anglo-saxã) segregado como mafiosos nos EUA, ainda que não tenham sido os primeiros a explorar o comércio ilegal de álcool durante a Lei Seca. Pode ser que venha daí a identificação de Scorsese com os Osage.
*Texto de Sérgio Moriconi, especial para Correio
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