É na satisfação da maioria das pessoas que se debruça a quase utópica meta retratada no longa Nós somos o amanhã, musical estrelado por Claudia Ohana, Silvero Pereira e o também diretor Lufe Steffen, que é atração na noite de hoje do Festival de Cinema. Apoiado numa safra peculiar dos vinis dos anos de 1980, o longa trata de jovens estudantes e de evolução em sociedade. "Para melhorar tem que, quase, começar tudo de novo. Numa das músicas até se demarca: 'diz que é pra reinventar!'. O filme parte exatamente de mim, da minha vida pessoal, minhas lembranças, memórias e experiências no período escolar. Grande parte do que aparece no longa aconteceu comigo, em diferentes dimensões, mas está ali. Ou então foram situações que eu testemunhei. Todos os personagens são inspirados em figuras que conheci, alguns são misturas de várias pessoas com as quais convivi. É um filme bastante pessoal e autobiográfico", explica Lufe, em entrevista ao Correio.
"Exorcizar coisas da minha infância, num processo psicanalítico, quase de psicodrama", como destaca, levou Steffen a atuar no filme, interpretando a si mesmo. "Ao final dos anos 1990, me formei. Trabalhei muito tempo como ator, e depois passei a cantar profissionalmente. Mas, aos poucos, meu trabalho como cineasta foi se impondo", conta, ao falar da retomada na interpretação no longa que trata de bullying, de preconceitos e de marcantes perseguições. "Sobre polêmicas, acredito que cada vez mais filmes têm discutido temas, e essa freqüência busca, justamente, desmistificar polêmicas. Digo isso, a partir de quanto mais temas forem assimilados, no bom sentido, pela sociedade", observa.
Aos 48 anos, o realizador paulista investiu R$ 500 mil no filme, via editais e diferentes fontes, sendo decisiva a finalização advindas do ProAC Expresso e SpCine. Ladrilhos de impulsos econômicos que desmobilizam preconceitos. "Acredito que o mundo todo está num retrocesso terrível. É até clichê falar isso, porque vem de tempo. A pandemia foi o auge dessa percepção: esclareceu que a humanidade está maniqueísta, com progressistas e retrógrados. A questão da vacina foi simbólica. Mas a pandemia passou, e a coisa continuou: vieram as novas guerras, novas síndromes, novos desastres naturais, e a tendência me parece que é piorar. Para evoluir, precisamos avançar para um mundo melhor para todos", conclui.
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Entrevista // Lufe Steffen, diretor
Nós somos o amanhã trata de lugares de fala?
Posso comentar lugar de fala dentro da história do filme, ou seja, existem personagens no filme que representam algumas identidades. Então ao inserir tais personagens na trama, o filme está tratando do assunto lugar de fala. E podemos falar dos bastidores da obra, ou seja, as vidas pessoais de cada integrante da equipe. Foi um objetivo para o filme contar com profissionais que se colocassem também na vida com suas identidades, e assim tivemos elenco e equipes diversos, buscando a representatividade dentro e fora da tela. Os exemplos mais diretos nesse sentido são a atriz Alìcia Anjos, que interpreta a personagem da garota trans; e o ator Bernardo de Assis, que interpreta o personagem do garoto trans.
Há necessidade de autoridade para falar de sexualidade e questões raciais, ao explorar temas polêmicos?
Acho que cada caso é um caso, e cada filme é um filme. Então posso falar apenas do meu. O ponto de partida do roteiro é a saga do menino cis gay branco, que é o que eu sou. A partir dali, vão surgindo os outros personagens, e busquei criá-los baseado nas minhas próprias lembranças, pois testemunhei coisas que aconteciam com as outras identidades, com colegas da minha época de escola. Também tive conversas com amigos e amigas que me contaram um pouco de suas memórias e vivências. Há a questão do preconceito, junto com outras discriminações. O filme busca retratar algumas identidades que sempre sofreram discriminação na escola, e ainda sofrem, sem dúvida; e que sofrem também na vida adulta, já que a escola é a preparação para “o mundo adulto lá fora”, esperando pra te mastigar. E a questão étnica sempre foi um dos alvos preferidos dos praticantes de bullying, então naturalmente esse tema tinha de estar no roteiro também.
Estar na direção e atuação trouxe que resultado?
Na prática e desafio foi um processo árduo, porque era o meu primeiro empreendimento de grande porte — eu já tinha dirigido 10 curtas e dois longas, mas foram documentais. Então era meu primeiro longa de ficção, era um filme de época, um musical, com roteiro meu, e ainda estava produzindo, dirigindo e atuando. Foi um turbilhão, uma coisa meio kamikaze, e muito difícil de fazer, apesar de eu contar com o apoio dos dois preparadores de elenco do filme. Durante muito tempo achei que tinha sido um suicídio artístico. Mas hoje, com o filme pronto, estou muito satisfeito com o resultado. Não faria de novo algo parecido, mas não me arrependo de ter feito.
Me conte das músicas e das regravações, por favor...
Pincei canções que considerei mais emblemáticas do período, e que se encaixavam na história que queria contar. E assim cheguei nesse set list que tem Xuxa, Turma do Balão Mágico, Trem da Alegria, além de dois clássicos absolutos compostos pelo Guilherme Arantes na época. E também desde sempre queria que fosse um musical verdadeiro, ou seja: o elenco tinha de cantar mesmo. Então o casting buscou atores que cantassem, que já haviam cantado em trabalhos anteriores. Assim, todas as canções foram regravadas pelo nosso elenco, são nossas vozes mesmo. A única música que, no filme, aparece em sua gravação original é uma de Rita Lee.
O colorido que está no filme traz cores berrantes?
O colorido do filme é berrante de propósito, claro, isso sempre fez parte da concepção do filme, por vários fatores: é um filme que busca a chave da fantasia, do mágico, do fantástico, do onírico, portanto não me interessava uma estética realista, com cores neutras ou cotidianas, tinha de ser especial, artificial, fora da casinha mesmo; além disso, o filme faz citação e homenageia diversos filmes que marcaram essa geração dos anos 80, então o visual tinha de remeter a essas obras, como Super Xuxa contra o baixo astral, Labirinto, A história sem fim”, Os garotos perdidos, e até mesmo desenhos animados do período, como Caverna do dragão; também existe a referência a videoclipes e programas de TV dos anos 1980, e aí as cores vivas novamente se impõem, já que a década de 1980 primou pelo excesso de cores.
O que é mais trabalhoso: infantilizar adultos (em cena) ou adultecer crianças no dia a dia?
Eu diria que infantilizar adultos em cena não é uma boa coisa, e não foi isso que eu busquei no filme. Acho que quando vemos peças ou filmes com atores adultos interpretando personagens mirins, como é o caso do Nós somos o amanhã, o interessante é quando as interpretações não são infantilizadas. Ou seja: o ator não deve buscar ser infantil, pois o risco de resultar infantiloide é grande. Então eu evitei isso ao máximo ao dirigir o elenco. A preparação de elenco que tivemos, inclusive, também buscou se afastar desse caminho e tentou uma representação sensível desses personagens. Apesar de trabalhar com arquétipos, não queria estereótipos. Já o lance de “adultecer” crianças na vida real, não sei se percebo isso atualmente. Pensando bem, acho que está acontecendo o contrário disso tudo: a sociedade atual está se infantilizando cada vez mais, não só as crianças como principalmente os adultos.
56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
No Cine Brasília (EQS 106/107), nesta terça (12/12), às 21h, o longa Nós somos o amanhã, será antecedido pelos curtas Remendo (de Roger Ghil), que apresenta Zé, personagem capaz persistir a situações complexas, e Helena de Guaratiba (de Karen Black), centrado no fictício amor entre os personagens de Helena Ignez e Cauã Reymond. Ingressos, 20. No Complexo Cultural de Samambaia, a mesma programação, às 20h, é em caráter gratuito.
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