Cinema

Longa que abre a disputa do Festival de Cinema mostra conflito político

No céu da Pátria nesse instante, documentário de Sandra Kogut, que abre a mostra competitiva do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro aborda a perplexidade ante o processo político que desembocou no vandalismo do fatídico 8 de janeiro de 2023

O filme No céu da pátria nesse instante captou as próprias imagens sobre os acontecimentos  -  (crédito: Divulgação)
O filme No céu da pátria nesse instante captou as próprias imagens sobre os acontecimentos - (crédito: Divulgação)
postado em 10/12/2023 09:20

Há algumas décadas, o processo eleitoral do Brasil gerou um meme atemporal, envolvendo uma gigante estrela de tevê, por hora, decadente. Havia a encenação pífia de um medo com o resultado do pleito. Há pouco mais de um ano, a história se repetiu, mas com um temor legítimo, em meio à era de instabilidade: atriz social, a cineasta Sandra Kogut, confessa que, sim, teve medo. Munida de câmera, ela enfrentou a realidade, e criou o documentário No céu da pátria nesse instante. O filme, na noite de hoje, abre a disputa central, na 56ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A sessão será às 21h, no Cine Brasília (EQS 106/107).

"Inicialmente, achava que ia fazer um filme sobre as eleições, mas percebi que estava fazendo um filme sobre o medo, a violência, as fakes news... sobre pessoas que vivem numa realidade paralela, sobre a incomunicabilidade. É sobre como atravessamos um período como esse, no seu momento mais agudo. As eleições estão no coração de tudo, porque eram as mais ameaçadas, e eram também a única porta de saída", conta, em entrevista ao Correio.

Com a dualidade do trânsito entre a periferia (no longa Campo Grande, 2015) e a decadente elite (na ficção de Três verões, de 2019), Sandra, às vésperas, e mesmo durante, os dias de invasões, depredações e vandalismos, se embrenhou no imersiva corpo a corpo das votações — "formaram-se realidades paralelas terríveis: capturaram as pessoas, e as colocaram numa prisão de irracionalidade", pontua a cineasta.

 

Entrevista // Sandra Kogut

Qual o momento mais surreal de tudo que foi tratado, em termos de conteúdo?

Olha, a gente viveu um período muito surreal. Muitas vezes foi difícil de acreditar que aquilo tudo estava acontecendo. Foram muitos os momentos assim. Eles se encadearam, e vários estão no filme. As constantes ameaças que as eleições não se realizassem, as intimidações armadas nas ruas, o medo, as blitzes no dia do segundo turno... Mas acho que se precisar apontar um, escolho a minha conversa com os personagens bolsonaristas durante o 8 de janeiro. Eu tinha um desejo sincero de entender como pensavam. Até que chegamos num limite. É surreal.

O voluntariado esteve no teu filme da pandemia (Voluntário ****1864 — Quem são os anônimos da vacina?). Como é que é essa relação com eles nesse novo filme?

É sensacional ver esse Brasil anônimo que trabalha com tanta dedicação pelo país, pelo bem coletivo. É isso que faz da gente um país e não apenas um bando de gente que calhou de nascer no mesmo lugar. E tem muita gente envolvida, acho isso emocionante. As eleições são o resultado de um esforço coletivo gigante, e o filme mostra isso. O modelo brasileiro é único e realmente exemplar. Não é por acaso que aqueles que não estavam interessados na democracia resolveram atacá-lo. A gente fala tanto em democracia... e ali você vê a democracia sendo construída na prática, viabilizada.

Qual o filtro para chegar às figuras retratadas no filme? Quem são elas, basicamente?

Começamos formando uma rede de personagens, bem diversos. Eram muitas as incertezas. O trabalho foi sendo construído num processo, e muita coisa foi se definindo ao longo do caminho. Isso já é comum em filmes documentários — que, para mim, nunca são confirmações de teses, mas sim experiências, feitas de perguntas e descobertas. Nesse filme foi ainda mais. Era preciso criar uma relação de confiança, sem falar nas incertezas que todos nós vivíamos, individualmente e como país. Foi preciso inventar um dispositivo de filmagem que dialogasse com isso, e traduzisse isso cinematograficamente. Eu estava tão mergulhada no calor do momento quanto os personagens, foi uma situação única.

Antonia Pellegrino, que está no filme, é muito conhecida pelo feminismo. Qual o papel das mulheres no painel proposto pelo filme?

É um filme de muitas mulheres! Isso foi importante para mim. Achei muito bacana ver a força e a energia delas. Adoro ver as mulheres do filme, ativas, destemidas, encarando tudo e todos. A Rute, na ilha de Marajó, comandando um monte de homens, supervisionando tudo de cima de sua moto. A Antonia super corajosa, equilibrando vários pratinhos no ar ao mesmo tempo. A Estela, personagem que vai surpreendendo ao longo do filme. A Neli, incansável, guerreira, a Milena, super articulada, a Edivan, apaixonada pelo trabalho eleitoral... todas maravilhosas. Foram escolhas.

O ineditismo de cenas é algo com que te preocupou? Qual o tempo de filmagens de material e virou o que, ao final?

Claro. Não usamos arquivos jornalísticos, as cenas são todas nossas, feitas para o filme. Um filme é um olhar... Mesmo os momentos que todos vimos na tevê, os momentos históricos, como por exemplo a posse do Lula, a gente vê junto com os personagens. São visões laterais, de longe... As imagens são sempre de onde eles olham. Então vemos a subida da rampa numa imagem bem diferente das imagens oficiais que rodaram o mundo. Vemos do lugar do filme. Não sei te dizer o número exato, mas temos um material bruto muito vasto. Ainda quero fazer outras coisas com ele, é riquíssimo! Acho que esse grande arquivo ainda pode alimentar outros projetos.

Qual é a tua relação com arquivos?

Em alguns momentos fazendo esse filme pensava num outro filme que fiz há muitos anos, chamado Um passaporte húngaro. As imagens das administrações, a papelada, a máquina em funcionamento, os pedaços de papel que carregam tanta importância... Mas quando falo que esse filme agora partiu do desejo de criar um arquivo do presente é porque durante esse período perdemos um pouco a capacidade de enxergar adiante. Ninguém conseguia prever mais nada. Estávamos congelados num eterno presente. As notícias eram tão absurdas que a crise do dia apagava a crise do dia anterior. A gente nem lembrava mais, porque o ritmo era vertiginoso. Quis falar sobre isso, e a estrutura do filme é resultado disso.

É possível ser isenta num filme como este?

Todo filme é um olhar, e eu sou uma cidadã, uma eleitora, e nunca escondi meu lugar nem minha visão. Fiz o filme porque — entre outras coisas — tinha uma curiosidade genuína de acompanhar esses personagens, aprender com eles, e também ouvir quem pensa diferente de mim. Sempre deixei claro que não estava ali para convencer ninguém de nada. Então, diferentemente de uma reportagem, de um produto jornalístico, um filme não busca ser isento, busca expressar um olhar. Mas o próprio filme nasce de uma impossibilidade, de uma desconfiança absoluta do outro lado. Essa impossibilidade, essa incomunicabilidade, é um dos assuntos mais importantes do filme. Acredito sempre que um filme precisa mostrar a complexidade, e cada um que tire suas conclusões. É a diferença entre cinema e propaganda.

E a questão do imediatismo pesa, num filme tão rápido, de uma certa maneira, de realidade vivida dia desses?

Sim. O imediatismo, a miopia, o calor do momento, são parte do assunto, parte do filme. Acho que quanto mais o tempo passa, mais o filme vai ficando atual, vai se confirmando. Porque o que vai acontecendo cria camadas ao que está ali, enriquecendo ainda mais nossa visão sobre aqueles momentos. Será interessante um dia mostrar isso para os filhos, os netos.

Curtas da noite

Cidade by motoboy, de Mariana Vita, revela, no interior paulista, a tentativa de um trabalhador sair da opressão, numa noite de sexta. Pastrana, de Gabriel Motta e Melissa Brogni. Por meio de memórias, a persistente e forte amizade de uma pessoa se afirma, sob os olhos da skatista Melissa.

56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

No Cine Brasília (EQS 106/107), neste domingo (10/12), às 21h, com ingressos a R$ 20. A partir das 20h, nos complexos culturais de Planaltina e de Samambaia, a mesma programação tem entrada franca.

 

  • Cena do filme No céu da pátria nesse instante: a invasão da realidade paralela
    Cena do filme de Sandra Kogut Foto: Divulgacao
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