Não é preciso amar Nelson Ned para se encantar com Tudo Passará, biografia recém-lançada pela Companhia das Letras sobre o cantor mineiro (1947-2014), sucesso estrondoso nos anos 1970 e 1980 e que foi o primeiro artista latino a vender um milhão de discos nos Estados Unidos.
A trajetória extraordinária do Pequeno Gigante da Canção foi detalhada pelo jornalista André Barcinski, notório pesquisador cultural, responsável por destrinchar a vida de nomes como João Gordo, Zé do Caixão e da banda Sepultura, além de conduzir um fascinante trabalho sobre o pop brasileiro, eternizado no livro Pavões Misteriosos e na série documental História Secreta do Pop Brasileiro, do Prime Video.
Agora, Barcinski se propôs a realçar uma das maiores vozes latino-americanas a um patamar merecido na história da música popular do Brasil, que por décadas rejeitou um de seus filhos mais admirados internacionalmente.
Sem a grife da bossa nova ou o balanço da Jovem Guarda, Nelson Ned adquiriu muito mais respeito fora de sua terra natal. Ao emplacar hits românticos, cantados em espanhol, como Déjame Si Estoy Llorando e Quien Eres Tu, consolidou uma base de fãs na América Latina e nos Estados Unidos, onde explodiu com a canção Happy Birthday, My Darling, de 1974, que lhe proporcionou cantar no prestigiado Carnegie Hall, histórico teatro no coração de Nova York.
ESTILO. Sua voz poderosa também ressoava na África. Nelson foi recebido por uma multidão no aeroporto de Luanda, em Angola, e ficou espantando, pois jamais testemunhara tamanha euforia em terras tupiniquins. Na Colômbia, ele se apresentaria, em estádios, para 80 mil pessoas enquanto, no Brasil, cantava em restaurantes, bares ou clubes.
Tal rejeição se devia, majoritariamente, ao preconceito que Ned sofria por parte da imprensa, que se limitava a fazer piadas sobre sua condição física (nanismo), e da elite cultural, que o desprezava por causa de seu estilo musical, classificado como "brega" (tal qual Odair José, Waldick Soriano e Agnaldo Timóteo) - estouro de vendas, mas supostamente menos sofisticado do que a MPB.
Barcinski, apesar de ser jornalista, jamais adota uma postura corporativista. O autor faz questão de expor as discriminações da mídia e bate nessa tecla ao longo de todo o livro, recuperando alguns dos comentários proferidos na época. Millôr Fernandes, por exemplo, escreveu certa vez: "Nelson Ned ganha prêmio em Porto Rico (deve ser porque o país também é pequenininho)".
O cantor de Caprichoso, contudo, não se abalava com os ataques e ficava meses longe do Brasil, enfileirando discos e turnês no exterior. Era reverenciado não apenas pela classe trabalhadora latino-americana, mas também por líderes fora da lei como Pablo Escobar, fundador do Cartel de Medellín; Baby Doc, ditador do Haiti; e o general Arturo Durazo, sanguinário chefe de polícia da Cidade do México.
Também recebia elogios de referências do mundo artístico, como o escritor colombiano Gabriel García Márquez. "Os artistas e intelectuais brasileiros dão risinhos de zombaria ou mudam de assunto quando eu revelo que tenho em casa todos os discos de Nelson Ned", disse o escritor.
SEXO E DROGAS. A ascensão internacional do músico logo se transformaria em uma queda vertiginosa, regada a vícios: álcool, dólares, orgias, cocaína e morfina para amenizar as dores crônicas que enfrentava, causadas por uma displasia óssea. Nelson Ned teve uma morte solitária, decorrente de pneumonia, aos 66 anos, em 2014.
A linguagem informal empregada por Barcinski oferece uma leitura rápida, recheada de histórias saborosas. E a seleção de entrevistas, que inclui o próprio Ned (um ano antes de sua morte), além de familiares e amigos do artista, confere credibilidade ao sólido conteúdo de uma obra fundamental para o cânone bibliográfico da música brasileira.
Tudo Passará sugere que a arte é fruto do sofrimento e faz jus a uma "vida que daria um livro", como bem cantou o Pequeno Gigante da Canção.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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