O Dia da Consciência Negra é apenas um no calendário nacional, mas isso não impede que a data seja comemorada ao longo do ano. É, aliás, uma das reivindicações dos movimentos que os temas relacionados a racismo, segregação e escravidão sejam discutidos diariamente, no cotidiano. Por isso o Correio conversou com destaques de Brasília em diversas áreas da cultura para saber o que pensam da presença preta na cena brasiliense e como as portas estão abertas, ou não, para a negritude passar.
Na música
Com mais de 16 anos de experiência criativa em música, design, eventos, publicidade e cinema, Aloizio Lows é um nome bastante conhecido na capital federal por ser o vocalista do bloco de carnaval Divinas Tetas. Ativo na carreira musical desde 2007, Aloizio afirma que a cena ainda se mantém restrita para os artistas negros. "Na minha experiência com o indierock, era comum eu ser o único negro em grande parte desses ambientes", relata o cantor. "Recentemente, o Hodari [indicado ao Grammy Latino 2024] compartilhou que me considera uma de suas inspirações desde o início de sua carreira, destacando a singularidade de ter um líder e vocalista negro em uma banda na cidade."
De acordo com Aloizio, essa exclusão de pessoas pretas e pardas da cena musical é um reflexo da divisão social marcante em Brasília. "A maioria das pessoas negras reside fora do Plano Piloto, mas é nessa região que ocorrem os festivais e eventos mais expressivos", relembra o cantor, que também atua como produtor sob o pseudônimo de LOWS. "Para a cultura prosperar, é essencial contar com recursos financeiros, e, infelizmente, um indivíduo negro das periferias muitas vezes não dispõe dos meios para financiar gravações, fotos ou clipes, enquanto um artista branco de classe média alta pode formar uma banda e, em questão de meses, já estar presente em diversos espaços."
Aloizio ressalta que "é crucial que o público desenvolva uma consciência sobre a importância de apoiar os artistas periféricos da cidade, que estão produzindo trabalhos notáveis". Ultimamente, o produtor vem se notabilizando por abrir portas aos artistas emergentes, algo que, segundo ele, é tão difícil quanto consolidar uma carreira. "Eu compartilho dos meus privilégios, porque é meu dever. Continuarei a amplificar estas vozes e histórias."
Um dos talentos citados por Aloizio Lows são as irmãs Margaridas, que, diferentemente da nova geração de artistas negros brasilienses, não adotou o hip hop e o trap como estilo musical primário. Sabrina e Maria Paula, desde crianças, convivem com a música preta brasileira: Elza Soares, Jorge Ben e Gilberto Gil são apenas alguns exemplos de influências apresentadas pelo pai, que também vive de música. No entanto, elas não negam que o hip hop abre muitas portas para quem deseja seguir carreira na arte: "O hip hop, para mim e para a Maria Paula, não é só um estilo de música. Ele é bem mais do que isso. É um estilo de vida, é ideologia, é vivência. Ele é algo que a gente acredita e que a gente vive, nas nossas músicas, no nosso dia a dia", afirma Sabrina.
Como se não bastasse sofrer discriminação por causa da classe e da cor, Sabrina entende que, para as mulheres pretas, a situação é mais complicada. "Já fomos boicotadas várias vezes. Falaram que íamos tocar em vários festivais e isso nunca aconteceu porque colocaram homens no nosso lugar ou apenas não quiseram colocar a gente", relata a cantora. Ela explica que um dos maiores entraves para a ascensão de mulheres negras na música é a cúpula da indústria musical: "Ela é majoritariamente comandada por homens e muitos deles são brancos, então, no final, queremos conquistar algo que já é dominado por pessoas que são contra as mulheres".
Mesmo assim, as irmãs Sabrina e Maria Paula tentam quebrar essas barreiras. Diretamente de Taguatinga, o duo está em ascensão nacional, realizando colaborações com grupos como Menos é Mais, também de Brasília, e fazendo parte do lineup do Favela Sounds, o maior festival de música e arte urbana do DF. "A barreira é muito gigante, mas a gente faz valer. Nós vamos atrás e quebramos tudo porque novas histórias começam e novas mulheres estão vindo para fortalecer as que estão até hoje na luta contra o sistema e a indústria da música", garante Sabrina.
Em cena
De estrelas em ascensão para uma mulher que já está consolidada, Mariana Nunes é talvez uma das atrizes mais produtivas da atualidade a ter saído da capital. No ar com a novela Todas as flores, também sucesso no streaming Globoplay, e com a série Amar é para os fortes, adaptação do álbum homônimo de Marcelo D2, a artista entende que é natural estar em alta. "Acho que faz parte da eterna construção que é a carreira de uma atriz. A televisão é um veículo que expõe muito o seu trabalho e, como tenho feito bastante tevê, é natural que a visibilidade aconteça", analisa. Representar Brasília nas telas é o que move a atriz, mesmo que queira tratar do fato com modéstia. "Representar Brasília é algo muito grande, não sei se acredito nessa ideia. Sinto que é mais sobre orgulho da minha origem. Eu amo a minha história em Brasília, minha formação, o início da minha carreira. Acho que tenho uma base artística sólida e ela foi construída em Brasília", afirma.
A perspectiva que tem como mulher negra tem sido mostrada nos palcos, visto que ela está em cartaz com a peça Amor e outras revoluções, no Teatro Ruth de Souza, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. A peça é escrita por Tati Vilela, que contracena com Mariana. "Ela traz na própria escrita a perspectiva de amor entre duas mulheres negras", conta. "A peça fala de amor, porém o ponto de partida não é a perspectiva branca sobre o amor. É sobre nós. Fico muito feliz de estar no palco Ruth de Souza com Tati Villela. Me sinto fortalecida, não me sinto sozinha", complementa.
Nas artes plásticas
A artista plástica, Rayza de Mina, se destaca no movimento cultural do afrofuturismo, que explora, a partir das diversas manifestações artísticas (música, cinema, literatura, artes visuais), temáticas referentes à negritude sob uma perspectiva futurista. "Eu comecei a pintar eu mesma, eu queria me sentir representada em um cenário cultural elitista, então comecei a me inspirar na minha realidade no mundo a minha volta e na cultura dessa cor de onde eu vim a cultura da periferia, a cultura africana, essa é a minha arte", explica Rayza.
Para ela, a representatividade dos negros no cenário das artes plásticas da capital federal ainda é escassa. "A gente é literalmente guetificado e acaba que temos que ficar nos concentrando apenas nas nossas periferias, senão a gente não existiria em coletivo. Sempre esperam que façamos bem mais e que tenhamos mais recursos, que apresentemos algo brilhante, enquanto muitas vezes aplaudem artistas brancos com obras medianas", comenta a artista.
Rayza diz que, apesar dos avanços no reconhecimento, ainda há um longo caminho a ser percorrido e que é preciso dar mais visibilidade à cena artística preta na cidade. "A gente ainda está muito no lugar de estereótipos. Eu vejo caminhos para a mudança, e é importante reforçar nossa identidade nacional negra na arte, para assim podermos buscar nas nossas raízes respostas do nosso passado para construir o nosso futuro", finaliza.
A pintora Leni Vasconcellos fez da negritude um tema importante em sua produção. Na exposição Tesouro, em cartaz na Casa Thomas Jefferson, a artista apresenta 24 pinturas a óleo inspiradas em período em que morou na África. Foram 13 anos entre Togo, Camarões e Benin. "Todos os museus do Brasil têm que mostrar a cultura que nos originou, a nossa cultura é muito forte, não pode fechar essa porta para os negros para abrir para algo que vem de países europeus ou Estados Unidos", diz a artista.
A falta de presença negra nos museus, tanto de artistas quanto de frequentadores, é criticada pela pintora. "Isso já deveria ter sido resolvido há muito tempo. Na cultura brasileira, temos dois lados muito fortes, o indígena e o negro. Eles influenciaram o Brasil inteiro", comenta. Para ela, passou da hora de tomar o protagonismo da arte local. "A presença do negro foi renegada na cultura brasileira durante séculos e está na hora de ocupar esses espaços", acredita.
Na literatura
Simão de Miranda é maranhense, mas reside na capital federal há 50 anos. É escritor e se destaca especialmente no cenário da literatura infantil. Algumas das obras literárias para crianças escritas por ele trazem personagens negros como protagonistas, mas que nem sempre carregam um texto forte por trás. É a forma de o autor não colocar temas muito difíceis e apenas divertir as crianças. "Às vezes eu não tenho um texto pronto e forte para a personagem negra. Eu não preciso dizer muito, ele está ali, está representando", pontua Simão. "Eu trago mensagens sim, principalmente que protagonizem personagens negros, valores humanos, mas, acima de tudo, a ideia é fazer algo descontraído que divirta as crianças. A intenção é que elas curtam e deem muitas risadas", complementa.
Sobre a cena dos escritores pretos na capital federal, ele diz que há pouca representatividade, principalmente dentro das grandes editoras. "É um espaço ainda muito aquém do desejado e, mesmo que haja um celeiro de grandes autores negros aqui na capital, há ainda a dificuldade do destaque em grandes editoras nacionais e isso às vezes contribui para o baixo acesso de obras de autores pretos", explica.
O autor ainda destaca a importância dos coletivos literários para a divulgação da literatura negra. "Ter esses coletivos é importante, porque se chegar às grandes editoras é um caminho difícil, eu entendo que os autores e autoras pretas têm uma dificuldade muito maior até mesmo em função do racismo. Acima de tudo, esses coletivos são importantes para o nosso reconhecimento e para levar cada vez mais a cultura dos negros através da literatura, para além do DF, mas para o mundo", finaliza.
*Estagiários sob a supervisão de Nahima Maciel