Foi depois de um transplante de coração, em 1994, que o célebre humorista carioca Antônio Carlos Bernardes Gomes, aos 53 anos, morreu. "A sensação nossa era como se tivéssemos todos perdido um parente, perdido um amigo", relembra Ailton Graça, ator que encarou o desafio de revivê-lo nas telas, em Mussum, o filmis, nos cinemas. Mais de 10 anos, se passaram, enquanto Graça esperava pela chance de rodar, ao lado do diretor Silvio Guindane, o longa. "Eu, como uma pessoa do axé, sei que esse foi um momento de rodar: o filme foi feito no finalzinho da pandemia. Houve um processo muito grande de pesquisa, de imersão, nas informações para compor o Mussum. Além do retrato de duas mães (Cacau Protásio e Neusa Borges, na tela), tivemos três atores para evocar a vida dele: Yuri Marçal, Thawan Lucas Bandeira e eu", conta Graça, em entrevista ao Correio.
"O resultado (do filme) é tão emocionante: ver as pessoas se divertindo, rindo, gargalhando, relembrando ou conhecendo o Mussum. Se deliciam, revendo, os que já o conheciam, e a geração que não teve a oportunidade de conhecê-lo de uma forma mais profunda. Apresentamos o lado humano e interno do Antônio Carlos, como músico, como filho, como pai e como um artista preto, brasileiro, e que teve tanta importância para nossa dramaturgia, e para nossa música", complementa o diretor do filme, Silvio Guindane.
Um dos pontos altos na fita é a caracterização perfeccionista, a cargo de cinco profissionais, entre os quais Mari Pin. "Detectamos que havia a ligação do olhar entre o Ailton e o Antônio Carlos. Daí ter havido a introdução da particularidade da estética orofacial, como obra do Fábio Barros. Fomos responsáveis e certeiros no que queríamos, com intervenções muito pequenas, mas valiosas. Optamos por pontos de botox, para o olhar do ator ficar mais aberto, e para que houvesse maior tranquilidade, na hora dele atuar. Nos baseamos em pesquisa, e na sutileza da memória afetiva que todos trazem. Houve construção diária de figuras muito importantes da cultura nacional, e a disponibilidade dos atores foi muito gratificante", conta Mari Pin.
No camarim, caracterizar 10, 12 atores em 90 minutos, testou a máxima de Mari de que, "tempo é luxo, no cinema". Visar 12 horas de durabilidade para a maquiagem, na jornada diária, foi meta para a profissional que trabalhou com luz e sombra, escurecendo pontos no rosto de Ailton, valendo-se de três, quatro tons de cores, para o ator que usou prótese de peruca, e dedicava 45 minutos para as sessões de caracterização, que valeu a menção honrosa no 51º Festival de Gramado. No evento, o longa ganhou os troféus de melhor filme, ator, ator coadjuvante (Yuri Marçal), trilha sonora e atriz coadjuvante (Neusa Borges), vencendo ainda pelo júri popular.
O cineasta destaca que o longa foi todo focado no Antônio Carlos, sem ignorar episódios como o da briga momentânea entre os integrantes de Os Trapalhões. "Em paralelo a esse momento, se demarca um acontecimento muito sério na vida do Mussum, algo sério e transformador na vida dele, e do qual não falo por ser um grande spoiler", comenta Guindane. "Na tela, tudo é muito mais para dentro da vida do protagonista", enfatiza.
Entrevista // Silvio Guindane, diretor
O humor era mais livre, na época de reinado do Mussum?
Livre não é a palavra correta que a gente deve usar para o humor de antigamente, que não tinha uma responsabilidade com as diferenças. Ele era engraçado. O humor que a gente faz hoje nos obrigou a ter um maior cuidado. Temos que fugir da piada fácil, pejorativa, que diminua o outro. Seja o autor, o diretor ou o ator pode buscar algo mais respeitoso, sem perder a graça. Fomos treinando para reaprender a entender o humor com responsabilidade social, o que já não era sem tempo. Acho que o filme é um resultado disso: validamos o humor do Antônio Carlos, do próprio Mussum. Contar inclusive a história de um comediante que fazia um humor para outra geração que não tinha os balizadores que nós temos hoje. Acho que, nisso, o cinema só ganha e o espectador só ganha.
Como você trata da afirmação da negritude no filme?
A representatividade da negritude é algo muito falado, muito colocado, ainda que tardiamente. Há ainda grandes espaços para caminhar, numa longa estrada para conseguirmos essa representatividade real e merecida. Caminhamos, colocando na tela esse protagonismo, esse prê-tagonista, como diz o Ailton Graça, onde na verdade, colocamos um corpo preto, se assumindo no protagonismo de uma história. Isso num Brasil onde a gente tem uma população com desigualdade social gigantesca — a gente pega a classe média e a classe pobre, classes - unitariamente preta. Essa classe que consome o nosso cinema e o nosso entretenimento, e não se vê na tela. Quando conseguimos colocar isso na tela, geramos uma identificação muito maior com o espectador. Fico muito feliz de poder contribuir com esse movimento que acho que tem que ser levado muito a sério. Precisamos disso, e sim, precisamos dos negros em grandes cargos, tendo esse protagonismo na vida, tomando decisões e tendo opiniões com lugares de fala.
Vocês tratam da separação operante entre Os Trapalhões?
Não era o foco do filme. O filme é sobre o Mussum mesmo e o Antônio Carlos é a gente queria a gente queria falar do preto do homem que naquele momento tava com uma questão muito mais séria com uma mulher preta com filhos pretos com então a gente focou nessa família preta e que essa era uma das questões que estava passando pela cabeça desse protagonista preto.
Brasileiro gosta mais de rir ou chorar? E sabe fazer as duas coisas, juntas, não?
Eu acho que uma das grandes virtudes do brasileiro é a de rir, chorando, e de chorar, sorrindo. Eu como realizador brasileiro preto, vindo do subúrbio não posso de forma alguma enganar ou deixar esse meu público órfão. Acho que a palavra mais forte não é um melodrama em si, mas sim uma dramaturgia humana. O brasileiro tem muita força em se apegar e se identificar com qualquer tipo de dramaturgia que parte do princípio do humanismo. Acho que isso é o que a torna a universal. Isso é mundial, universal. Porém, nós somos latinos, somos intensos. Isso torna automaticamente impossível fazer qualquer tipo de obra que não tenha o mínimo de generosidade, de se pensar em nosso público.
O fato de ser ator te ajuda a dirigir?
Sem dúvida me facilita na direção. Acredito muito nas personagens e na dramaturgia e sempre, como ator, construí e me dediquei para os personagens sempre tentando olhar lá de dentro para fora e tentando, sensivelmente, de uma forma sensorial, achá-los, me emprestando como ator, com meu corpo, minha voz, minha respiração — seja qual for a personagem. Isso me facilita na hora de recriar e de montar cenas e de marcar os atores.
Entrevista // Ailton Graça, ator
Em que medida o Mussum foi dos pioneiros combatentes de preconceitos?
Há vários aspectos. Primeiro ele é um corpo preto em movimento — isso já é uma ferramenta poderosíssima: um corpo preto dentro da tevê brasileira, ocupando os lares com Os Trapalhões. O fato de ele responder a toda todas as agressão que ele sofria, dentro do programa, usando humor para dar resposta — tipo quando ele diz: "Negão é teu passadis...". Isso já potencializa e auxilia no combate frente ao racismo recreativo, e que é o pior de todos.
Qual a maior emoção até o momento com o personagem?
A maior é ver a trajetória desse cara gigante, um ícone que foi o Mussum, na tela. E mais ainda, a emoção mesmo é ver a relação afetiva com a mãe (dele). Isso tem em todos os momentos e todos os lugares. São pouquíssimas vezes que a mãe sinaliza alguma alguma frase para ele, e elas batem dentro da cabecinha dele como grandes provérbios que o direcionam na vida. Há esta relação importantíssima mostrada.
Como você se relaciona com a música, nos bastidores e nas cenas do filme?
Olha, tocar, até toquei de verdade, mas para cantar é óbvio que eu me escondi muitas vezes atrás dos meus amigos que são cantores, exímios. Morro de medo de cantar sozinho e foi legal estar junto com eles, interpretar Os Originais do Samba ou, quando a gente se encontrava no corredor, com Os Modernos do Samba. Era uma cantoria pura. Fiquei feliz de estar do lado deles.
O Mussum tinha defeitos? E quais as maiores qualidades dele?
Como todo ser humano, ele era carregado de defeitos, de equívocos. Era um outro mundo, outro Brasil, onde as pautas pretas estavam começando a ser trabalhadas. Elas ganharam maior adesão, maior conhecimento, a partir da internet, então a gente compartilha informações, numa escala global, com relação ao racismo estrutural, a criminalização da nossa cor. Então, hoje a gente tem bastante ferramenta. Na época do Mussum, do Antônio Carlos. Era um pouco difícil de tudo ser trabalhado porque havia um racismo e um preconceito recreativo, e que era muito forte. Saíamos do período da ditadura e era complicado. Defeitos?! Eles tinha um monte, mas, no trabalho do filme, a gente limou coisas. Dentro desse processo de racismo estrutural, a branquitude já faz muito bem (destacar), ela invisibiliza, ela esconde, ela não permite a nós, negros, fazermos parte dessa questão do privilégio. Existe uma estrutura já pronta. Daí, a gente fazer questão de diminuir toda essa problematização, para poder realmente fazer uma homenagem para o humorista.
Pela composição, quando acreditou que poderia ser ele no cinema?
Venho de uma família de circo, então, gosto das máscaras, da maquiagem; gosto de me arriscar. Por vezes, há necessidade de composição. O Daniel Filho já me falou que eu era um ator de composição, e ele gostava disso. Foi assim com a Xana Summer (personagem de Império), quando se demorava quase duas horas para fazer a composição. Agora, não abri mão dos recursos mais modernos de maquiagem para poder compor o Mussum. Fui atrás, junto com a Mary Kay, nossa grande maquiadora, atrás dos recurso mais modernos. Fui fazer harmonização, fazer um botox, também coloquei cabelo da roupa. Há ainda os palpites do diretor, vem o palpite do diretor de fotografia. Cinema é coletivo. Todas as informações foram repassadas para mim, para o Yuri, para o Taiwan. A gente fez leitura conjunta. Houve laboratório de canto, de clown, de dança. Então buscaram ferramentas para compor o personagem de forma digna e, assim, homenageá-lo com um lado mais nobre do nosso coração.