Cinema

Uma saga bem americana está na nova obra-prima de Scorsese

Com quase 30 longas de ficção, além de profundas pesquisas de cinema, o diretor Martin Scorsese traz o impacto de Assassinos da lua das flores às telas, num título estrelado por Robert De Niro e Leonardo DiCaprio

Um misto entre a temática do feminicídio e a invalidação da cultura indígena confere o peso de atualidade imantado na mais recente joia cinematográfica criada pelo diretor Martin Scorsese, aos 80 anos: Assassinos da lua da flores. À imprensa estrangeira, sobre o filme que estreia hoje, Scorsese admitiu uma mudança de foco na narrativa, diante de opinião do ator e produtor Leonardo DiCaprio. "Passados anos trabalhando no roteiro, Leo me perguntou sobre o cerne da história. Tive muitos encontros com representantes da nação (indígena) osage e percebi que o núcleo da história era ali. Era uma trama interna, a vida de Oklahoma (estado cuja riqueza vem de atividades rudimentares)", explicou o cineasta de clássicos como Taxi driver e Touro indomável.

Numa assumida cruzada contra a marginalização da linguagem cinematográfica e dos excessos de filmes norteados por oca aventura, Scorsese aposta numa trama extraída da realidade (saída de um livro de 2017 escrito por David Grann). Tradição e herança, ao lado da exposição de repulsiva ganância — uma vez que há personagens brancos obcecados pela aquisição dos títulos de exploração petrolífera dos primeiros habitantes da América —, norteiam o que se vê na tela. Em escala épica, tateando o retrato de progresso material, o filme enquadra o amor entre o forasteiro (e mulherengo) Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e a legítima osage Mollie Kyle (a excelente atriz Lily Gladstone, vista em filmes como First cow e Certas mulheres). Com a solenidade de uma obra como Oppenheimer (de Christopher Nolan, um dos diretores que ele admira), Scorsese se vale da capacidade criativa do diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto, presente na equipe de Barbie e ainda em Abraços partidos, assinado por Pedro Almodóvar. Ao todo, são quase três horas e meia de filme, dada a destemida ação da editora Thema Schoonmaker.

Assassinos da lua das flores transcorre nos anos de 1920, no rastro da era da Depressão. Aos moldes da corrida pelo ouro narrada por Walter Houston em O tesouro de Sierra Madre (1948), o filme revela bastidores do agitado cenário de locomotivas, profusão de empresas petrolíferas e a lacuna de interesse nas investigações de crimes que circundam terras indígenas, ou seja, fora do âmbito federal. Nas raízes da ambição, que desemboca em mortes e no azedume de crises domésticas, está a paternal figura de William Hale (papel do octogenário Robert De Niro). O espírito aventureiro de personagens de filmes como O regresso e O aviador, junto com o caráter exploratório (de fitas como Diamantes de sangue), se materializam no personagem de DiCaprio.

Num dado momento do novo longa-metragem, o ator que já se disse "o rei do mundo" (na ida para a América, à reboque de Titanic), escuta de um anônimo: "Você pode ficar rico!". Não demora, ele vê implantada a maldade corporificada em Hale (o parente e assessor do xerife local), que dispensa o tratamento de "senhor", mas reclamando o título de "tio ou rei" (à mera escolha de Ernest). Junto com o enterro de parte da dignidade dos indígenas e da adoção de novos modos (brancos), os chorosos nativos viverão um destino que acolhe quebra de confiança, fuga de responsabilidade, avanço da maçonaria, multiplicação de criminosos e a perda de patrimônios. Manipulações e difusão de preconceitos (a Ku Klux Klan é citada, junto ao ódio por "judeus" e "crioulos") se alastram, na ação à sombra de Hale que arranja o casamento do sobrinho (com a indígena rica), enquanto é taxativo: "Você tolera a raça dela?".

Somando 10 indicações ao prêmio Oscar, além de outras três estatuetas douradas conquistadas, a dupla DiCaprio e De Niro (reunida nos elencos de fitas como O despertar de um homem e As filhas de Marvin) não se vê solitária, em termos de talento. Junto com as coadjuvantes Anna (Cara Jade Myers) e a idosa Lizzy (a veterana Tantoo Cardinal, de A educação de Pequena Árvore), no painel diferenciado, que traz elementos dos referenciados O pequeno grande homem e Dança com lobos, a atriz Lily Gladstone defende uma melancólica personagem com sistemáticas idas ao cemitério Grey Horse, a fim de enterrar parentes.

Com a saúde fraca, Mollie é dona do coração confuso (em relação ao amor de Ernest), e irmã da destemperada Anna. A protagonista é exemplar num dos grandes efeitos do cinema comandado por Scorsese: envolve o espectador com um personagem atacado em várias frentes psicológicas. Exorcizar a história de quase 30 casos de mortes não é pouco para Mollie, num novo clássico de Martin Scorsese, que, ao devolver as cores da vida para os osage, ainda aparece em cena, para integrar uma inesperada e criativa sequência em torno de obituários. De quebra, Robbie Robertson, habitual colaborador de Scosese (em longas como Ilha do medo, Gangues de Nova York e Cassino), ainda que pouco valorizado (em premiações), desponta como autor de trilha sonora inspiradíssima.

 

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