Um dos conceitos mais importantes do povo tukano, pamuri pati significa transformação e está presente nos registros mais antigos dessa etnia, originária da região do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. É um conceito usado há séculos para explicar a transformação do universo e aparece até mesmo em petroglifos, as inscrições ancestrais em pedras. É dessa região que vem a artista Daiara Tukano, um dos nomes à frente de um movimento recente da arte brasileira de finalmente olhar para a produção artística contemporânea realizada pelos povos originários. Daiara vem ganhando enorme destaque no Brasil e no exterior. Vencedora do Prêmio Pipa 2021, ela foi uma das estrelas nacionais da 34ª Bienal de São Paulo. Agora, realiza em Brasília a primeira individual, exposição que ocupa o Museu Nacional da República e foi batizada de Pamuri Pati — Mundo de transformação.
A artista olha com entusiasmo para a crescente presença indígena na arte contemporânea brasileira. É uma das transformações presentes no título da mostra. "Estamos vivendo um momento de grande transformação, entre elas a emergência climática, que coloca em evidência a importância dos povos indígenas que preservam, em seus territórios, essa grande diversidade de vida do planeta. E também estamos num momento da história da democracia brasileira em que, pela primeira vez, temos um ministério dos povos indígenas e lideranças conduzindo nossas principais instituições, como a Fundação Nacional do Índio", aponta Daiara. Além disso, ela lembra que há pensadores, escritores e profissionais de diversas áreas ocupando espaço na sociedade brasileira. "Os povos indígenas têm sido historicamente invisibilizados no Brasil, fomos o último grupo a ter acesso à plena cidadania e ainda hoje enfrentamos preconceito e violência", lamenta.
Pamuri Pati — Mundo de transformação reúne mais de 70 obras que Daiara elenca como fundamentais para sua trajetória. São trabalhos como Festa no céu, um conjunto de quatro pinturas nas quais comparecem pássaros sagrados da cultura dos povos tukanos. Eles seriam capazes de segurar o céu e impedir que o sol queime a Terra. O sagrado e o luto estão representados na obra. Em Maloca, a artista retoma os pteroglifos, que são reproduzidos em uma lona plástica laranja.
A instalação é uma homenagem aos tukanos, que vivem em região muito remota e precisam viajar durante dias para comprar alimentos e ter acesso a serviços básicos como de saúde e bancários. Quando chegam à cidade, sem meios para hospedagem, montam barracas de lona na beira do rio para se abrigarem. "Da mesma forma que anualmente lideranças indígenas de todo o país vêm para Brasília acampar para poder defender e reclamar o reconhecimento de nossos direitos e denunciar as violências cometidas contra os povos indígenas", explica Daiara. "Quem mora na cidade vê uma pessoa indígena acampada numa lona plástica com preconceito, nos enxergam como pessoas marginalizadas, empobrecidas e não imaginam que, embaixo de uma lona plástica, possa ter a riqueza de uma memória ancestral. Então a Maloca é um convite a poder entrar dentro dessa casa de conhecimento."
Ou ainda Espelho da vida, obra inspirada no manto Tupinambá e costurada com plumas coloridas. Disposta em frente a um espelho que reflete o visitante em tamanho bem menor que o real, a instalação fala da pequenez humana diante da natureza e foi uma das estrelas da 34ª Bienal de São Paulo. "Esse manto faz alusão aos antigos mantos tupinambás, mas é um manto livre dessa prisão dos aquários de vidro, é um manto que caminha, anda e que coloca no reflexo do espelho convexo a nossa pequenez e a grandiosidade do mundo à nossa volta", explica Daiara.
Realizar a exposição em Brasília tem um significado especial para a artista. Ela nasceu em São Paulo, mas veio para a capital federal aos 15 anos, para fazer o então segundo grau. Na Universidade de Brasília (UnB), se formou em artes visuais e fez mestrado em direitos humanos. "É muito importante para mim poder ter oportunidade de mostrar, pela primeira vez em Brasília, esse conjunto de trabalhos que acabaram ganhando visibilidade no eixo de Rio-SP", diz a artista, que tem obras na Pinacoteca e no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, no MAM do Rio de Janeiro e no Masp. "É muito difícil para o artista da cidade encontrar esse espaço de reconhecimento na nossa capital, às vezes por falta de incentivo, espaço e até de recepção da própria comunidade do DF", lamenta Daiara. "Eu vi esse museu ser construído e hoje minha geração é de artistas dessa cidade. É muito importante podermos ocupar esses espaços, para mim é uma honra estar aqui montando essa exposição, com apoio dos meus colegas da UnB, para meus professores e para mostrar, finalmente, para minha família, que nem sempre pode ir às exposições."
Entrevista//Daiara Tukano
Como a ideia de transformação está refletida na sua arte?
Na narrativa do povo tukano tudo fala dessa transformação e, na nossa língua, não temos uma palavra para arte, a palavra mais próxima é hori, a miração da ayahuasca. Somos um dos povos amazônicos que tem essa medicina dentro de sua narrativa de origem. E no início da criação da humanidade, quando surgiu a ayahuasca, todos os seres da natureza, homens e animais, tiveram muitas visões coloridas em movimento, então uma grande parte da exposição é composta por telas mais gráficas que são esses hori. Para nós todos os desenhos são hori, e todos fazem alusão a essa história da transformação. Na nossa região do alto Rio Negro existem desenhos antigos desenhados há milênios nas pedras, beiras dos rios e cachoeiras. Nossas casas, nossas cerâmicas e cestarias, nossos corpos são todos desenhados e cada um desses desenhos carrega essa narrativa da criação do nosso povo.
Você diz que a arte tem que ser vista como uma cosmovisão. Como é isso? Como definir a arte indígena?
A cosmovisão é uma palavra que gosto muito, que é referente à visão de mundo de cada povo, de cada sociedade, de cada civilização. Na visão europeia da cultura ocidental seria aquilo que se chama de epistemologia, a maneira como enxergamos o mundo. Mas cada povo indígena tem suas próprias narrativas e sua compreensão da realidade e de como esse mundo se constrói. E isso traz a nossa relação com o mundo, nosso diálogo com a natureza. Um dos grandes pontos trazidos pela arte indígena é de colocar as nossas visões de mundo. Os povos indígenas preservam a biodiversidade do planeta e temos uma cultura de conviver e permitir que essa vida exista, por isso é importante defender a proteção de territórios indígenas e compreender que nossos territórios, para além de um pedaço de chão, também são territórios de cultura, filosofia, ciência e arte.
Como as figuras femininas marcam o seu trabalho?
Eu sou mulher, nasci mulher, cresci no meio de muitas mulheres fortes e também sou uma das sobreviventes de muitas violências. Na cultura do meu povo, que é um povo patrilinear, as histórias das mulheres são pouco compartilhadas, mas existem as histórias das primeiras mulheres da criação, as mães das medicinas, as mães da humanidade, as mães do Brasil, as mães que são a própria natureza. Então esses corpos femininos se referem à figura da grande mãe do universo, a grande mãe criadora que é a própria natureza, a mãe de todas as lutas. Esse sentimento de ser filho da terra, de lutar por nossa mãe, esse carinho por nosso território, nossa origem, é assim que vejo as figuras femininas no meu trabalho
Serviço
Pamuri Pati — Mundo de transformação
Exposição de Daiara Tukano. Visitação até 26 de novembro, de terça a domingo, das 9h às 18h30h, no Museu Nacional da República (Setor Cultural Sul, lote 2 Esplanada dos Ministérios)