Cinema

Karim Aïnouz lança dois longas para retratar uma jornada de amor e fúria

O diretor Karim Aïnouz lança os filmes Marinheiro das Montanhas e Nardjes A. e discute o próprio passado, política e revolução em dois longas filmados na Argélia

Um dos principais nomes do cinema brasileiro na atualidade, Karim Aïnouz tem uma filmografia premiada e uma produtividade invejável. Apenas em 2023, o cineasta lançou três filmes em três línguas diferentes. Os documentários Marinheiro das Montanhas e Nardjes A., respectivamente em português e francês, se juntaram a Firebrand, falado em inglês, para o já extenso ano de Karim no cinema. Os dois longas chegaram aos cinemas na última quinta e têm em comum um assunto: a Argélia.

O diretor é filho de argelino e, apesar de não ter muito contato com o pai, que só conheceu aos 19 anos, quis fazer uma viagem ao país. Dessa jornada, feita em 2019, do contato com o povo argelino e das noções de que há algo de importante ali, surgiram as duas estreias do cinema brasileiro.

A primeira produção, Marinheiro das Montanhas, é um longa pessoal e autobiográfico que mescla imagens gravadas em diversas cidades da Argélia com entrevistas de pessoas argelinas. Por cima há uma narração especial. Karim conversa, imaginariamente, com a própria mãe, Iracema, que morreu quatro anos antes da viagem, em 2015. Ele conta da viagem e dos insights que teve neste processo de autoconhecimento, mas também de empatia com um país que muitos brasileiros nem sabem apontar no mapa.

O segundo filme, Nardjes A., acompanha um dia completo de manifestações na Argélia sob a ótica de Nardjes, uma líder de um movimento em prol da libertação do país do governo de Abdelaziz Bouteflika, ex-presidente da nação que em 2019 tentava o quinto mandato. É um filme sobre a devoção à causa da revolução e sobre a união da Argélia como um só povo.

Ao Correio, Aïnouz fala sobre os filmes, mas, principalmente, sobre os momentos que viveu no país onde tem raízes, sobre os sentimentos envolvidos e noções de mundo. Karim passeia pela política, sociedade, arte e revolução e chega ao lançamento de dois dos longas mais pessoais da carreira.

Entrevista // Karim Aïnouz

A Argélia é um país que muita gente, por exemplo, no Brasil conhece por conta da Copa do Mundo, por conta do futebol. Como é poder mostrar essa outra Argélia em dois filmes? Como a Argélia mudou para você também?

Eu passei a minha vida sabendo que tinha um pai argelino, o qual não tinha conhecido. Só conheci meu pai com 19 anos. E sempre tive dificuldade de entender. Eu nasci em Fortaleza, você lembra que nessa época não tinha internet, não tinha um monte de coisa. Então, era sempre uma espécie de ponto cego. Sabia que era um lugar que tinha futebol, sabia que era um lugar onde alguns brasileiros se exilaram na época da ditadura. Eu sou formado em arquitetura na UnB, então sabia que era um país onde o Oscar Niemeyer construiu alguns projetos muito loucos, mas também não sabia onde era a Argélia direito. Acho que essa viagem é não só de descoberta de um país, mas também da descoberta de um povo que dele faz parte. Então, primeiro foi uma espécie de educação para mim mesmo, de descobrir onde era esse país, um país que é um pouco isolado, um país onde parece que está num outro tempo. Então é um lugar em que não tem cartão de crédito, por exemplo. Para mim, uma das grandes revelações foi descobrir que lugar é esse, que era tão misterioso.

O que foi mais interessante?

O mais legal de tudo, além de descobrir o país, é descobrir um país emancipado. E isso, para mim, especificamente no momento que fiz esse filme, sentia que a gente estava num país aprisionado com a eleição da extrema-direita. O que aconteceu no Brasil foi uma tragédia que a gente nunca viu antes, talvez só na época dos militares mesmo. Todo mundo sabe onde é a Tunísia, mas ninguém sabe onde é a Argélia, um dos países mais ricos da África. No entanto, acho que é de propósito, o que aconteceu no decorrer dos anos e da história foi um país muito rebelde, um lugar que realmente botou os franceses para correr. Esse era um país de 10 milhões de habitantes, dos quais 1 milhão e meio morreram durante a guerra de revolução, mas que se emanciparam. Não é à toa que histórias de liberdade, às vezes, são invisibilizadas.

E por quê?

Tem uma coisa curiosa: a história do mundo, realmente, é contada pelos grandes impérios. O mais legal de fazer esses filmes, é primeiro jogar luz numa história importante. Eu acho que aconteceram tantas coisas grandes no mundo, a gente fica aprendendo quem é Sartre, mas a gente não sabe o motivo de uma guerra de emancipação colonial como essa. Então, isso para mim foi o mais interessante, poder dividir com o mundo um país que a gente conhece pouco, mas é um país que é de uma riqueza cultural, de um senso de humor e de uma vitalidade. Em alguns momentos, entendo porque meus pais se apaixonaram. Pois, tem algo muito em comum com a gente no Brasil, são países que têm sangue no olho.

O que há de pessoal e o que há de exercício de empatia com um povo que, por mais que faça parte das suas raízes, não tinha nada a ver com você até sua viagem?

Esse é um filme mais pessoal porque me desnudo no sentido de falar da história dos meus pais, de coisas que a gente não divide com todo mundo e, de repente, estou dividindo com uma sala de cinema e com gente que nunca vi. É um exercício pessoal, sim, mas essa parte é pequena, porque quando conto a minha história, eu estou, de fato, aproximando o espectador. Eu me vejo como uma espécie de veículo de aproximação do espectador e de uma história da qual ele não saberia nada. Me questionava sobre fazer um documentário sobre a Argélia: ‘quem vai ver um documentário sobre a Argélia?’ Ninguém sabe nem onde é, é um país tão misterioso. Imaginei, se eu fizesse um documentário sobre a Argélia, através da minha experiência pessoal, eu conseguiria criar uma espécie de cordão umbilical entre o filme e o espectador. Então, o que você chama de empatia, eu estou acostumado a chamar de cordão umbilical. Eu tinha uma necessidade muito grande de poder compartilhar com o público, brasileiro e mundial, essa história de emancipação. A gente vive num momento histórico, especificamente quando esse filme foi feito, o Trump era presidente dos Estados Unidos, ainda existe uma ameaça gigante da extrema-direita em vários países do mundo, e principalmente no Brasil, com a eleição do fascismo no Brasil, era muito importante eu aproximar o público e dizer assim: ‘olha, existem outras experiências libertadoras. A gente não precisa ficar aprisionado por uma plataforma política absolutamente necrófila e tóxica’. Na hora que falo, na primeira pessoa, seduzo o espectador para estar mais perto não só da história que estou contando, mas do mundo que estou desvendando através do documentário.

O longa Marinheiro das montanhas apresenta uma relação sua com suas raízes, mas muito mais por você conhecer um novo povo do que pelo seu pai ser argelino. Como foi o processo de transmitir esse sentimento para o público que assiste?

A grande razão de ter feito esse filme foi exatamente para falar disso. Eu primeiro queria falar de violência, acho que não há emancipação sem violência. Violento é o estado que a gente vive, violento é o estado colonial, violento é o jeito como a gente é oprimido. Não existe emancipação de uma situação de opressão sem violência, o grande tema do filme é esse. Por outro lado, quando a gente olha para alguns movimentos de independência individual e coletivo, de rompimento, existe sempre um embate. O que no Brasil sempre me pareceu frustrante é que existiram embates, mas a maneira como a gente conta a nossa história. Parece que elas não existiram, parece que chegou um cara chamado Pedro I, decidiu mudar de casa, veio para cá, ligou para o pai dele e falou: ‘agora minha casa é essa’. Parece que não houve nenhum sangue derramado, quando na verdade houve. Então, uma das grandes razões de fazer esse filme é para mostrar que em alguns países foi derramado muito sangue para a gente estar livre, para a gente estar aqui, para a gente ser dono do nosso destino. Vamos tentar agora pensar um pouco sobre a nossa trajetória. De um lado é para falar de como a história que a gente conta sobre a nossa emancipação não tem sangue derramado, ao mesmo tempo que isso é uma mentira, porque teve muito. Eu me lembro de que quando eu estava crescendo, na época dos militares, e tinha uma visão do Brasil como um país pacífico. Via os países europeus, os países africanos tendo muita guerra, e a gente não, quando na verdade a gente vive num estado de guerra profundo até hoje no Brasil. Então, eu quis com esse longa jogar a luz numa experiência que não é necessariamente minha.

Existem pontos em comum com a experiência brasileira?

Foi engraçado, quando eu cheguei na Argélia percebi que não temos nada a ver, é um choque cultural gigantesco, um país predominantemente muçulmano, um país bastante conservador. Contudo, há uma luta em comum, que é humana, quando a gente vem de um lugar de opressão, temos em comum uma coisa de raiva, de vontade de um lugar mais justo. Eu encontrei isso aqui, então nesse sentido foi uma conexão muito forte, apesar de em alguns momentos não ter conexão nenhuma. Eu não falo a língua, e na verdade é muito distante, é quase como o DNA de vontades de mudança radical, de vontades revolucionárias, como se esse gene tivesse impresso no nosso DNA. Foi esse encontro que me deixou muito cheio de esperança. O que a gente está falando em última instância é isso, essas mudanças revolucionárias de fato trazem grandes mudanças, e geralmente são para lugares mais justos e mais plenos de esperança e de alegria. A Argélia, apesar de ser um país rico, está mergulhada num problema gigante de distribuição de renda, existe uma sensação de alegria e raiva, não é só uma alegria ingênua e leve, é uma alegria e raiva. Eu acho que é uma mistura linda, é amor e fúria, foi isso que eu encontrei aqui. É do estar vivo, exatamente, estar vivo, você precisa ao mesmo tempo brigar pela vida, mas concomitantemente celebrar a vida com muita intensidade.

Os dois filmes que você está lançando tem em comum dar palco para histórias invisibilizadas, como você fez em Vida invisível em 2019. Qual a importância para você dar o holofote para pessoas invisibilizadas, um padrão no seu trabalho?

Fazer cinema é jogar a luz na tela, né? Você sai de casa, precisa entrar num lugar onde você é transportado, você joga a luz naquela tela e você está dentro daquela tela, é transportado para um lugar, às vezes, do impossível, da fantasia, do sonho, da realidade e geralmente misturando tudo isso. É inexplicável essa magia que o cinema tem, sem querer ser piegas. Politicamente, uma das grandes razões que me fazem continuar fazendo cinema é exatamente isso. Eu acho que o cinema é capaz de jogar a luz para quem está na sombra. Quem conta no mundo geralmente está na sombra, então eu acho que é importante que o cinema procure realmente tirar da sombra e dar protagonismo. Sempre que tenho escolhido fazer um filme, tento pensar num personagem, ou personagens, que precisa ser mais visto. Isso é dividir uma plataforma de poder, quando você está dirigindo, você tá numa situação de privilégio. Então, que esse lugar seja um lugar que eu possa dividir com personagens e comunidades e tradições que são apagados. No caso do Vida invisível, uma das grandes razões de fazer o longa foi que olhava para uma geração de mulheres da minha avó e da minha mãe que viveram uma guerra. Que viveram uma situação machista, que você está o tempo inteiro em pé de guerra para você poder estar viva. Essas pessoas que tinham feito uma guerra, que eram sobreviventes de uma guerra, precisavam ser celebradas. No caso desses dois é a mesma coisa. Um país que de fato passou por uma guerra gigante. Que a gente celebre quem venceu. E não os coloque num lugar de antagonismo e num lugar de invisibilidade.

Em Marinheiro das montanhas, você conversa com a sua mãe que já não está mais viva, um processo doloroso, mas de cura. Como foi esse seu processo de botar na tela a forma como você também lida com a sua perda, como você vive o seu luto?

Eu sempre falo que esse filme foi feito na época que a gente estava aprisionado. E esse é um filme que fala de liberdade, no sentido, de que falo de gente que está emancipada. Aprisionado no sentido do fascismo, da eleição, da escolha, da gente estar em um regime fascista, que foi o que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos. No entanto, eu não tinha me dado conta, mas esse filme é inteiro montado durante o ano de 2020, que é um dos anos mais trágicos da história recente do mundo. Eu comecei a fazer em 2012 e em 2015 minha mãe faleceu. Eu fiquei com vontade demais de fazer essa viagem, contar para ela e sempre achava que era uma ideia meio maluca. Ficar contando um negócio para a pessoa que já morreu, vê se pode?. Porém, por meio dessa pergunta, percebi que fui contaminado por essa sensação de um luto coletivo. Porque minha mãe morreu em 2015, acredito que eu já tinha feito o luto dela, mas na pandemia realmente foi um negócio muito trágico, uma sensação de perda que era cotidiana. Quando a gente estava ali, a sensação de finitude era um negócio muito violento, acho que a gente até esqueceu rápido demais. Pelo menos alguns esqueceram rápido demais. Talvez a ideia de falar para minha mãe estava lá atrás, mas eu nunca achei que fosse dar conta. O fato de que fiquei montando esse filme durante 2020 inteiro, é como se tivesse escorregado essa ideia para dentro do filme. Essa ideia de luto que é pessoal, mas também coletiva.

É uma maneira de desenterrar fantasmas?

E eu acho que o luto é isso, né? Um pouco de desenterrar. Você desenterrar umas coisas que você precisa... Você precisa dar conta de falar. Então, acho que o cinema também permite isso. Uma outra coisa que aconteceu nesse filme que foi muito maluco, que eu não contava, foi se adentrar no mundo do inconsciente, do sonho. Sempre tive medo. Entretanto, quando você está falando com alguém que já foi embora, você pode falar disso, você pode falar de um monte de coisa. Coisas não necessariamente reais, mas sentidas. É também tentar não aceitar a perda completamente. É muito saudável também. Eu chamo de DDD invisível. Você tem horas que você quer ligar para pessoa e dizer assim: ‘você acredita que isso aconteceu?’ e você não pode, mas eu acho que é legal dizer. É legal falar, mesmo que a pessoa não escute. Eu acho que faz parte desse processo que é mais importante para gente do que para o outro, provavelmente. Eu não acredito em vida depois da morte. Eu acho que a vida acaba quando ela acaba. Porém existem resquícios. Existem traços e coisas que ficam. Quando você ativa isso, de você lidar com a ausência de maneira um pouquinho menos tóxica. Porque é muito duro. Eu nunca aceito que uma pessoa vá embora e não volte, e é isso que é a morte. Você nem acha que a pessoa vai voltar, mas você mantém, de alguma maneira, viva essa relação que você tem com quem foi.


Três filmes que você dirigiu foram lançados em 2023, os três em línguas diferentes. Gostaria de entender sobre o seu processo de internacionalização, de levar o valor do Brasil para fora, mas também olhar para dentro, tão para dentro que fez um filme pessoal. Como tem sido esse seu processo de estar em todos esses lugares ao mesmo tempo?

Eu nunca tinha pensado nisso. É muito doido. Realmente, no mesmo ano estar fazendo tanta coisa. No fim das contas, eu saí do Brasil muito cedo. Eu fugi muito cedo do Brasil. E eu acho que eu vivi mais tempo fora do Brasil do que no Brasil, mas não adianta. Foram os anos formativos que eu passei no país. Então tem essa mistura. O que aconteceu em 2023 foi eu me dar conta de que eu posso ser um monte de coisa. Que eu sou o Karim que saiu do Brasil para encontrar um outro mundo. Eu sou o Karim que viveu 15 anos da minha vida nos Estados Unidos. Então, por mais que eu tente apagar isso, às vezes é inapagável.

Há uma sensação de liberdade. Não tem uma língua só. Talvez tenha uma língua mátria que informe as outras, né? Porque em todas as outras eu falo com o sotaque da língua portuguesa. Mas que, ao mesmo tempo, me permitia ter empatia com personagens que têm histórias tão distintas. Imagina fazer um filme sobre uma rainha no século 15. Um negócio assim e ver que essa rainha tinha um monte de coisa que me lembra um monte das mulheres que me criaram. Foi um momento de grande liberdade e de dizer que, sim, eu posso fazer tudo. É como se eu estivesse em uma pista de dança em que eu pudesse dançar qualquer música, que eu tivesse a ginga para dançar qualquer música. Contudo, em todas as músicas, vai ter um negocinho ali. Um balanço muito específico de um lugar. Mais do que o Brasil, que é o Ceará, que é o Nordeste. Então, acho que é uma sensação grande de leveza. De que eu posso falar um monte de coisa, mas sempre serei eu falando. É muito bom. Me dá tesão de seguir em frente. Deu até uma certa vontade de fazer um filme em uma língua que nem estou entendendo, mas que sinto a emoção do ator e entendo a história. É engraçado lembrar dessas três línguas, porque, de fato, foi uma espécie de portal que me abriu a liberdade. O que importa são os personagens e o que eles têm a dizer. E o tema dos filmes é mais do que a língua.

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