Com temporada se encerrando neste fim de semana no Rio de Janeiro, após estrear em São Paulo no início do ano, o espetáculo A herança levou o Prêmio Bibi Ferreira de Teatro 2023, se consolida como sucesso de público e crítica e deve entrar no circuito nacional em 2024. Para Brasília, a expectativa é alta, especialmente pelo fato de que há, no elenco encabeçado por Reynaldo Gianechinni e Bruno Fagundes, duas pratas da casa.
Recortes gritantes
Ainda que pouco conhecido do grande público, o ator André Torquato, 29 anos, é um dos maiores nomes do teatro musical no momento. Com mais de 20 peças em 15 anos de carreira, o brasiliense tem no currículo títulos da Broadway e prêmios como Bibi Ferreira de atuação e o Destaque Imprensa Digital.
A honraria de Melhor Ator Coadjuvante, conquistada no ano passado, veio pelo trabalho na montagem do filme Tatuagem, de Hilton Lacerda. "Foram dois anos presos dentro de casa, muita gente morrendo, e a peça é premiada porque celebra a vida, com muita festa, cor, sexo, corpo, suor. Estávamos precisando disso, após esse tempo obscuro", justifica o modesto artista, nascido e criado na Asa Sul.
Estudante de dança, canto e teatro desde criança, aos 15 anos, o menino prodígio foi aprovado para o elenco infantil de A noviça rebelde, em São Paulo, e não parou mais. Nesse intervalo, ficou cinco anos morando em Nova York. "Era para ser seis meses, que se estenderam. Por lá, aperfeiçoei minha formação em teatro, trabalhei em restaurante e passei um bom tempo também vivendo em um navio", conta André, que, aos 18, teve a experiência inesquecível de sentar no sofá do talk show de Jô Soares e ser entrevistado por ele após protagonizar a montagem brasileira de Priscila, a rainha do deserto.
Torquato conta que o convite para A herança veio com sinais de conspiração do Universo. Ele teve a oportunidade de ler o texto da peça original, The Inheritance, de Matthew Lopez, encenada em Londres, e se encantou. Da mesma forma, o ator Bruno Fagundes — com quem atuou no musical Zorro — assistiu à montagem na Broadway e decidiu produzi-la no Brasil, com adaptação e direção por Zé Henrique de Paula, que convidou André para o elenco.
No espetáculo, o brasiliense interpreta dois personagens. Além de Adam, um dos protagonistas da história, um jovem ator de classe média alta de Manhattan, ele também dá corpo a Leo, um garoto de programa que vive à margem da sociedade. "É interessante porque mostra o contraste, um recorte de classes. A mensagem que a gente passa é que a sociedade fala muito sobre igualdade, mas existe uma diferença de tratamento gritante através desses dois rapazes fisicamente semelhantes", explica.
A herança não é uma montagem fácil. Dividida em duas partes, em dias distintos, de três horas de duração cada, o espetáculo é repleto de camadas, alternando entre o romance, o humor, o erótico e o drama, a partir de um enredo que aborda questões profundas ligadas à homoafetividade, como preconceito e tabus em tempos sombrios da aids e também atuais. "Eu nunca tinha feito algo tão complexo tecnicamente. É um grupo de personagens muito humano em suas contradições, então a gente precisa usar todo o nosso arsenal de artista e de pessoa. Mas é o que a gente busca como ator: chegar em lugares que a gente não alcança no dia a dia", conclui.
Potência preta
Wallace Mendes era morador do Cruzeiro e estudante da rede pública de ensino do Distrito Federal quando teve acesso aos cursos de férias do Teatro Mapati. A profissionalização, entretanto, só viria anos mais tarde, já adulto, quando o então lutador profissional — faixa preta de jíu jítsu — se mudou para São Paulo. O objetivo inicial era investir na carreira de modelo, após se desencantar com o esporte.
Na publicidade, o brasiliense encontrou um solo fértil, especialmente por causa da aparência física aliada à cor da pele. Fez uma campanha com pessoas negras para o lançamento de um carro, que ganhou prêmios, e outra, de uma lâmina de barbear, que trouxe, no Dia dos Namorados, dois homens se barbeando — e muita polêmica. Wallace, ainda, contracenou com Gaby Amarantos e Jaloo em um clipe e foi capa da Vogue Portugal, em uma edição sobre música, interpretando ninguém menos que Lenny Kravitz. "A publicidade e a moda me abraçaram. Tenho um bom perfil, então trabalhei bastante, mas é um mercado restrito, que paga bem. porém, nada fácil", confessa.
Wallace comenta que a mudança para São Paulo cobrou uma cabeça mais racializada. "Pude conhecer mais artistas pretos e entender essa potência", revela o ator de 30 anos, que enxerga o mercado artístico mais receptivo à negritude, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Ele cita que, historicamente, o teatro tinha predominância de pessoas de ascendência afro, já que a arte vem desse lugar de resistência. "Compreendi que eu estou me reconectando, porque eu sempre estive aqui, esse lugar sempre foi meu. É natural que meu corpo esteja confortável nesses lugares, foi a vida que me puxou para cá", argumenta.
A hipersexualização do homem preto com o corpo similar ao de Wallace, para ele, é algo que está mudando, mas a partir de uma postura do próprio indivíduo que tem a pele escura. "Está vindo de nós, porque ainda não somos iguais, mas, assim como as mulheres pretas se apropriaram do termo 'dororidade', toda a nossa comunidade se conecta pela dor, e isso fez a gente amadurecer, porque ela nos humaniza", explica o ator, que é o único negro no elenco. "Essa cota não é confortável, mas é um processo rico. Até porque meu personagem, o Jason, é um advogado, casado com um homem que tem o mesmo nome e a mesma profissão, e é gordo (o ator Felipe Hintze). Tem ali a mensagem que precisa ser dada", opina.
Para Wallace, a racialização atravessa a arte, mas ainda falta muito diálogo sobre diversidade. "O teatro, porém, vem para contribuir com o debate. Não resolve, não responde nada, mas enche o público de dúvidas", conclui o ator, que, paralelamente ao espetáculo, tem um filme inédito, ainda sem data de lançamento, para estrear, chamado G de amor.
Assim como o conterrâneo André Torquato, Wallace Mendes deseja muito que A herança chegue a Brasília. De acordo com ambos, é um dos objetivos da produção. Ficaremos na torcida.