"Quanto mais perigoso lá fora (nas ruas); mais efervescente era lá dentro." A definição, para o contraste entre a dura realidade dos anos de chumbo e os esforços internos de artistas reunidos no Solar da Fossa (RJ), durante os anos 1960, é da codiretora do filme (em cartaz) Meu nome é Gal, Lô Politi. "A ditadura e os movimentos no mundo alimentaram a Tropicália, um movimento artístico, estético e político. A ditadura foi importante para a Gal Costa agir e se transformar, numa ruptura que veio com Divino maravilhoso", completa Dandara Ferreira que, depois de conduzir a série O nome dela é Gal (HBO), foi convidada pela baiana para realizar o longa. Veio o frio na barriga, mas tudo à altura da responsabilidade e da "coragem de Gal", de certo modo impulsionada por outros companheiros de viagem (artística) do período, entre 1966 e 1971, mostrado no filme.
Na produção estrelada por Sophie Charlotte, a ditadura vem — por meio de registros de arquivo — como antagonista, frente aos cantores e compositores da época. "É (a ditadura) o que movimenta Gal: é o que ela precisa enfrentar. Gal tem uma timidez muito forte, uma dificuldade de se colocar, e vai sendo pressionada pelo ambiente. Tudo vem de um debate interno dela, muito sofrido e difícil", explica Lô. Desde pequena, familiarizada com Gal Costa, Dandara (filha do ex-ministro Juca Ferreira) observa que o Solar da Fossa, primeira casa da migrante baiana e palco de muito do roteiro do longa, "era uma pensão onde se fermentou o caldo do pop nacional".
No casarão em que a emblemática Alegria, alegria (do Tropicalismo) foi gestada, viveram Tim Maia, Paulo Coelho, Betty Faria, Zé Keti, Antonio Pitanga, Paulinho da Viola, Darlene Glória e Claudio Marzo, além de todos os nomes musicais que desfilam na trama de Meu nome é Gal. "Lá, se descobriu, na juventude, o amor livre, a arte de experimentar. O grupo viveu isso, intensamente, de forma natural e orgânica — descobrir o corpo, o outro e a si mesmo", emenda Dandara.
A seleção das músicas do filme seguiu caminho pensado e preciso. "Elas têm a função narrativa — quisemos usar músicas quase que inteiras: não queríamos um pot-pourri de sucessos. Ao desenvolver o roteiro, foi preciso estar atenta e forte, o tempo todo, estimulada pela Gal. Foram quase seis anos mergulhada no projeto, numa condição profunda e quase solitária", pontua Lô. Segundo ela, o filme trata de personagem interessantíssima, real, mas contada de modo ficcional, sendo muito fiel ao princípio de verdade, com ampla base em pesquisa. "Se não é verdadeiro (algum fato), é pertinente à trajetória de Gal", assegura.
Perseguindo "poesia e respiro", Dandara conta que recorreu à mescla entre linguagem ficcional e documental. Intérpretes de Gal e Caetano Veloso, Sophie Charlotte e Rodrigo Lelis, ainda que tenham trazido "um cantar lindamente próximo" aos dos artistas, tiveram alternância de vozes (com os reais cantores), na montagem do filme. "O timbre de Charlotte, pela Gal, foi notado como próximo ao dela. Mas, com a morte de Gal, pensamos que talvez fosse legal ter a voz dela no fonograma, porque as pessoas têm este registro muito forte dela. A voz dela está na memória de todo mundo, e pensamos que seria uma forma de se matar esta saudade", explica Dandara. Da fase inicial, "joão gilbertiniana" até a virada tropicalista, Gal tem a trilha contada sem muita licença poética.
As canções de todos
"É um filme sobre uma artista popular, e que é trilha sonora de muita gente — como é da minha vida. É importante que as salas de cinema estejam cheias, para reverenciar e celebrar essa pessoa maravilhosa que foi a Gal", avalia o ator Luis Lobianco, que injeta dose de humor, na pele do empresário Guilherme Araújo, do qual tentou "capturar a energia" do brilho no olho contido nos divertidos relatos de amigos sobre Araújo, que morreu em 2007. "A Tropicália era um movimento pela rebeldia, e que tinha muito humor. Quando se olha pra figuras como Caetano e Bethânia, percebemos que são densas, mas muito bem humoradas. O Guilherme tinha esta personalidade, um humor afiado e direto. Ele desconstruía tudo, e nem por isso deixa de ser amoroso e amado", comenta o ator.
Personalidade que ajudou na formação da imagem do tropicalismo, a inspiradora Dedé Gadelha, ex-esposa de Caetano, no cinema é interpretada pela brasiliense Camila Márdila, com figurinos e estilo singulares. "Com Gal, Dedé tinha uma relação anterior à chegada no Rio de Janeiro. Elas conhecem Caetano, juntas, sendo amigas de infância. Dedé é sempre citada como alguém que foi muito estrutural daquele grupo (dos tropicalistas), naquele começo", enfatiza a atriz. Num filme de equipe majoritariamente feminina, Camila conta que o longa trata de muitas questões ligadas ao feminino. "Sou completamente obcecada por Gal Costa. Mesmo sendo muito fã dela, agora, com o filme, tenho conhecimento da vida dela que, antes, eu não tinha", comenta.
Testemunha e vítima dos horrores da ditadura, Dedé tem função agregadora no painel instalado. "A ditadura está sempre costurando momentos e criando uma tensão no filme. Por vezes, o grupo (do Solar) se acha distante daquilo tudo, mas, de repente, somem duas pessoas — Caetano e Gil. Há coisas, sempre, que são melhor não serem subestimadas. Aliás, tudo tem uma associação muito direta com o que vivemos nos últimos anos. Vemos como a coisa explode, e é de uma hora para outra. Afeta a todos", avalia Camila.
Destaque no filme, o ator Rodrigo Lelis, que praticamente mimetiza Caetano Veloso, é puro elogio para as protagonistas da cinebiografia: "Sophie é olhar, é troca, é uma parceiraça presente em cena. Fiquei impressionado de como é atenta ao processo criativo coletivo, ela sabe buscar o outro (que está em cena). Isso soma muito. Já a Gal, vejo como uma figura de amor. Uma força e uma voz que diz tanta coisa, né? Com todos os gestos e tanta coragem". Mas e quanto ao homem que ajuda Gal a se soltar mais, travando o bom combate apelidado de subversão? "(Na pele de Caetano)... eu soltei a voz — cantei, me sentindo parte da atmosfera criada. Busquei ao máximo não imitar. Trouxe pra minha vida e pro meu processo o Caetano. Interpretei o que levava deste dia a dia. Entre tanta coisa difundida dele, olhei para materiais que as pessoas não conhecem tanto. Quis entender o ser humano e não a entidade, de ídolo, com a qual as pessoas se relacionam", sintetiza.
Entrevista // Sophie Charlotte, atriz
Até se tornar efetivamente artista, havia falta de traquejo na naturalidade de Gal Costa?
Nosso filme Meu nome é Gal conta a história da chegada de Maria da Graça, vinda de Salvador, ao Solar da Fossa. Onde seus amigos Dedé, Caetano e Gil já estavam inseridos no cenário cultural carioca. Maria Bethânia já era um sucesso. Seus amigos não estão exatamente como em Salvador, estão mudados. E Gracinha, além de recém-chegada, ainda é bem tímida. Ela tem que absorver muito rapidamente tudo que está acontecendo no momento. Realmente, uma revolução de costumes. E, num processo de libertação, vai assumindo, na voz e no corpo, tudo o que era preciso gritar contra a ditadura militar e pelo direito à liberdade, beleza e alegria! É uma jornada de bossa-novista para Fa-tal.
O que explica a estatura internacional de Gal e qual teu grau de admiração por ela?
Gal Costa é uma das grandes cantoras do mundo de todos os tempos. Sempre fui apaixonada pela sua voz, então, ter a possibilidade de conhecê-la e ter a honra de viver sua história no cinema só me fez amá-la ainda mais. Seus questionamentos e sua coragem me iluminam. Fui muito feliz durante todo o processo do filme. Fizemos do nosso trabalho no filme uma homenagem, uma reverência à grandeza dessa grande artista, tão importante na cultura do nosso país. Ela levou a brasilidade mais bonita para o mundo todo.
Você percebe elementos tropicalistas na atualidade?
Percebo questionamentos tropicalistas, sim. É impressionante como, ainda em 2023, precisamos lutar tanto para a manutenção de diretos à liberdade (já conquistados, mas constantemente questionados politicamente). "É preciso estar atento e forte!".
Gal, em uma cena, desencoraja o avanço de uma jornalista. Havia algo de blasé nessa atitude?
Gal Costa sempre teve clareza quanto ao espaço privado que queria preservar. Seu amor era a música, no sentido de que o que queria colocar no mundo era sua obra. Entendo e compartilho dessa escolha com Gal. E acredito também que não se faz a mesma cobrança sobre artistas homens. Sua voz no mundo, sua obra, era o que queria dizer, comunicar com o público, não sua intimidade. E isso é legítimo também. É a escolha de cada um.
A solidão em que ela mergulha demandou os maiores esforços no filme?
O meu desejo com o filme era uma homenagem que trouxesse o olhar doce e agudo que capturava tudo que acontecia ao redor. O vulcão interno de tudo que está sendo mastigado internamente e que volta como jorro de voz e atitude para o palco. Gal Costa era e será para sempre muito maravilhosa.
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