Cinema e música

Em entrevista, diretor fala sobre documentário dedicado a Dorival Caymmi

Depois de convivência superior a 50 anos com o ilustre compositor, o diretor de cinema Locca Faria entrega ao mundo o documentário. Nas ondas de Dorival Caymmi

Dorival Caymmi, no auge da juventude -  (crédito:  Bretz Filmes/Divulgação)
Dorival Caymmi, no auge da juventude - (crédito: Bretz Filmes/Divulgação)
postado em 16/10/2023 00:01 / atualizado em 16/10/2023 10:31

Com uma produção alimentada na permanência do folclore e invejáveis "tranquilidade e poder de concisão" (como pontua Chico Buarque), além de inspiração que deu real pódio para as canções praieiras, o cantor e compositor de Samba da minha terra e Modinha para Gabriela rendeu farto material para o documentário Nas ondas de Dorival Caymmi. Inédito no circuito, o filme é atração na programação do Festival do Rio e ainda da Mostra de SP. O longa tem direção de Locca Faria, há mais de 50 anos entrosado com a musical família Caymmi.

Elementos como cheiros de comidas, paisagens que incluem jangadas e o mar, com o universo que celebrava de lavadeiras a benzedeiras, passando por pescadores, formatam as criações de Caymmi, dono também de clássicos como Você já foi à Bahia?, O bem do mar e, claro, O que é que a baiana tem?. "Ele foi a primeira grande estrela brasileira nos Estados Unidos", endossa o compositor Sergio Mendes, ao longo do filme.

No "resumo da destilação das letras" (muitas vezes, ao formato de tramas), como diz o musicólogo Ricardo Cravo Albin, Caymmi embalou com a "ginga da conversa" cada composição, que, segundo Caetano Veloso, posiciona o mentor como o ápice da MPB. Sem pretensão, como o biografado mesmo assume, ele arrebanhou incontáveis fãs, entre os quais Villa-Lobos, Elza Soares, Nara Leão, Baden Powell, Ary Barroso e Lindolfo Gaya. Radamés Gnatalli quase o "proibiu de aprender música", segundo o filme, a fim de preservar o caráter intuitivo do mestre.

Ainda que dono de parâmetros de conhecimento clássico altíssimo, segundo o produtor e crítico musical Nelson Motta, Caymmi abraçava a "grande herança africana", como detecta Gilberto Gil. "No fundo, o filme é uma homenagem de todos nós", simplifica ao Correio o diretor Locca Faria, aos 70 anos. Cercado desde o estrondo na Rádio Transmissora por personalidades como Braguinha e Orlando Silva, o cantor baiano (morto em 2008) apostava na "penicada de samba" que encorpou o encontro com Carmen Miranda nos bastidores do filme Banana da terra (1939).

A malemolência, o que ele chamava de "mexidinho", a vivência marítima, o "inimitável violão" (a que todos referendam) — tudo faz de Caymmi, autor de obras como Eu não tenho onde morar e Oração de Mãe Menininha, especial. Para se ter ideia, na base da "distração", criou nada menos do que Maracangalha. Longe do foco na "glória ou no dinheiro", o autor de Só louco, que no documentário, conta da capacidade de rir "sozinho, para dentro", arrisca fórmulas para "o quente da felicidade": "Acreditar no feminino das coisas; ter a crença na Bahia e na mulher".

Entrevista //Locca Faria, cineasta

Como foi a vivência com Caymmi?

Minha relação com Caymmi se deu desde muito garoto. Conheci ele, quando eu tinha 19 anos por causa do filho Danilo. A gente era amigo. Eu ficava na casa dele, direto. Cresci com uma relação muito profunda. Minha mãe morreu muito nova, eu tinha 11 anos, e as paixões dela eram Caymmi e os Beatles (risos). Ele foi um amigo paterno meu. Convivia com ele muito, porque Stella (esposa do mestre durante quase 70 anos) não andava de avião. Quando Caymmi ia para Salvador, todo ano, eu o levava. Conheci a Bahia com ele, que me introduziu nas coisas: falava da importância da contemplação e de se observar os detalhes. Eu o conhecia tanto, pela convivência que eu tinha com a Stella, que era como uma mãe, enquanto Nana, Dori e Danilo eram irmãos.

E como se deu o entrosamento com todos os artistas que aparecem no documentário?

Fui trabalhando, fiz capas de discos do Caymmi. Quando ele fez, em desenhos, personagens (das músicas que criou) como Marina, Dora e João Valentão, eu o fotografava, no atelier em Rio das Ostras (RJ). Dali, fizemos uma exposição em homenagem aos 70 anos dele. Era sempre uma alegria estar com Caymmi, trabalhando. Quanto aos artistas (do filme), eu sempre filmava e também fazia capas de discos como O som brasileiro da Sarah Vaughan, Clube da Esquina 2. Conheci Caetano Veloso, por meio do Caymmi. Sou muito amigo desses artistas, há muitos anos. No filme, sem narrador, entrevistei todos na intenção de cada um cantar e falar com tranquilidade e emoção. Assim, fui juntando as falas para que um completasse o pensamento do outro.

Que dificuldades enfrentou com a produção?

Levei 10 anos para completar o longa. Queria arquivos que custavam caro, alguns bem inusitados: tem filmagem do Caymmi com 24 anos de idade, fazendo a barba! Tratei tudo como uma homenagem e, ao mesmo tempo, um agradecimento. Caymmi, na verdade, era um retratista da alma do povo brasileiro, sempre embebido de poesia, pintura e música. Um retrato de alma feito de forma muito simples e singular. A simplicidade, na concepção dele, era a coisa mais difícil de fazer na arte. Nela, desponta a sofisticação. O filme tem muita música, o que trouxe ainda um trabalho insano de autorizações de direitos.

A relação maquinada entre ele e o universo infantil, que prezou, parece não existir mais...

Não existe mais a infância do Roda pião e a do Boi da cara preta... Caymmi dizia que o sonho dele — ele dizia: 'Meu filho, eu quero uma música que, quando penso em criá-la, quero que o povo cante aquela música, mas que não saiba que ela é minha. Isso que é meu sonho: eles acharem que aquela música seja do folclore. Olha o desprendimento dele com o egocentrismo! O cara era o oposto do que tem nas redes sociais, hoje em dia. Fez Acalanto (Boi da cara preta), por exemplo, para a filha (Nana Caymmi).

No alcance internacional, Dorival precedeu a Bossa Nova, e confluiu com ela?

Caymmi veio o Rio (em 1938), com o violão embrulhado no jornal porque ter um era coisa de vagabundo. Ele dizia: "Violão é coisa de capadócia (malandro)'. Era como a capoeira, na década de 1930 do século passado. No primeiro disco de voz e violão, ele introduziu muito do seu estilo para a música brasileira. Caymmi colocou seu violão em outro patamar. Até hoje é considerado o melhor disco de voz e violão. Quem apresentou João Gilberto ao meio musical foi o Caymmi. João ia para casa dele, e ficava vendo como ele tocava. O João era maior fã, e era garoto. Nas reuniões na casa dos artistas, Caymmi disse: 'Tem um jovem que toca violão legal", e foi assim que apresentou o João Gilberto. O João Gilberto, conversando com Caetano, disse que Rosa Morena (música de Caymmi) lhe trouxe a batida da bossa nova.

E o trampolim de Caymmi para o exterior?

Internacionalmente, ele fez acontecer O que é que a baiana tem?, com toda toda aquela mise en scène da Carmen Miranda. Ele a dirigiu (no número musical), com ela apresentando a baiana. Caymmi estourou a música brasileira em Hollywood. A partir, daí surgiu o Zé Carioca (nos filmes), o Walt Disney queria fazer uma coisa, no cinema, com Caymmi, o Orson Welles idem. Todos estavam atrás de Caymmi. João Gilberto, no exterior falava que Caymmi era o cara. Tom Jobim e o João chamavam Caymmi para gravar coisas em programas da televisão americana. E ele dizia "esse garoto (fosse Tom ou João) é um talento". O André Midani (diretor musical que foi presidente de gravadora) tinha a história de rir da questão de "quem é o pai da bossa nova?". Como profundo conhecedor da obra de Caymmi, ele reforçava que o baiano não era o pai da bossa nova, mas sim a mãe (risos).

Entre tantos admiradores de Caymmi, Assis Chateaubriand foi um dos grandes, não?

Quando veio para o Rio, garoto, em 1938, ele queria estudar e ser cartunista de um jornal. Daí, foi morar numa pensão no centro do Rio, e ele pegava violão e ficava tocando no quarto. Um vizinho de lá falou: "Rapaz, que músicas são essas?"; e ele: "São minhas". O outros retrucou: "Músicas e letra?!", e ele, "sim". "Então você tem que mostrar essas músicas. Eu tenho um amigo meu lá na rádio e vou te apresentar a ele", completou o outro. Ele foi lá e tocou as músicas, numa das rádios do Chateaubriand. No veredito, todo disseram: "Vai ficar aqui com a gente". Um dos diretores viu Caymmi tocar na rádio, com público e tudo, e chamou o Assis Chateaubriand, que disse: "Nossa! Esse rapaz, esse garoto é um telúrico" (risos).

Algum viés diferenciado de Caymmi, ao longo do filme, para tua ótica?

Teve um caso que eu lembrei muito. E presenciei. Em Rio das Ostras (RJ), lembrei o Caetano de um causo entre eles. Caymmi botou um ventilador no chão, e, sentado numa cadeira de plástico, revelou o cenário tão querido para o Caetano. Recolhido, lá, ele dizia: "Para cá venho, e só penso coisa boa". Caetano ficou meio impressionado com o que via como (uma boa) loucura. Caetano foi contar para o Carlos Drummond de Andrade, que era dos maiores admiradores das músicas — que falava que música popular era Caymmi. Drummond riu e disse: "E nós, Caetano, que só pensamos coisas ruins" (risos).

Como foi a perda de um amigo tão especial?

Caymmi e Stella ficaram muito doentes, no final da vida — era toda aquela rotina de enfermeiro. Stella ficou mal, no hospital e teve que ir para UTI, onde entrou em coma. Caymmi foi lá, visitar, e ele falou no ouvido dela: "Meu amor, para onde você for, eu vou estar lá, te esperando". Voltou para casa, muito abatido, e naquela noite, ele foi dormir, e morreu dormindo. Quinze dias depois, Stella morreu. Nem ele nem ela viu um ao outro morrer. Foi muito inusitado. Ele era um obá de Xangô, espiritualmente eu sou muito ligado nas coisas por causa dele, que me levou para o Axé Opô Afonjá  (terreiro), pela primeira vez. Lá, conheci Mãe Stella de Oxóssi (em Salvador). Passamos três dias dormindo em esteira, eu e ele, para alcançar alguma coisa espiritual mais profunda. Dormimos no altar de Oxóssi e de Xangô. Espiritualmente, Caymmi era muito adiantado.

 


  • Locca Faria com Dorival Caymmi, em foto de 1979 capturada pela esposa do mestre, Stella
    Locca Faria com Dorival Caymmi, em foto de 1979 capturada pela esposa do mestre, Stella Foto: Stella Maris/Divulgação
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