Por Sérgio Moriconi - Especial para o Correio
Assistindo há poucas semanas um programa na televisão, fiquei sabendo que os burricos, ou jumentos, estão em extinção no nordeste. O que será que está acontecendo? Porque o assunto inquieta? Imediatamente pensei no filme EO, de Jerzy Skolimowski, e acho até que esta obra singular merece ser revista sob a perspectiva deste fato anômalo e também sob a ótica histórica da simbologia universal do burro. Os burricos estão em extinção, que diabos! Uma breve pesquisa na internet mostra que “de acordo com um levantamento do Ministério da Agricultura, quase 5,4 mil jumentos foram abatidos apenas no estado baiano no mês de abril deste ano. Dados do governo mostram que, de 1995 a 2017, o número de jumentos no estado da Bahia — que sozinho reúne 90% da população do animal — caiu de 300 mil para 93 mil, uma redução de quase 70%”. Tudo se explica por um surpreendente interesse comercial nos burricos, de países como Portugal, Espanha, China e Itália.
Certamente não seria uma estratégia de mobilidade urbana para evitar o uso de combustíveis fósseis, não é mesmo!? Longe, muito longe disso. A explicação está no abate para a venda da “pele de asno” – sem qualquer referência ao filme de Jacques Demy. Ela, a pele de asno, é um dos compostos principais na produção do “ejiao”, uma gelatina da medicina tradicional chinesa usada para tratar problemas de saúde como insônia, tosse seca e problemas de coagulação sanguínea. “O jumento está no Brasil desde o tempo do descobrimento e foi se reproduzindo, desenvolvendo espécies que só existem aqui e que vão acabar”, diz um pesquisador do Ministério da Agricultura. “O abate de jumentos havia sido proibido em 2018 após uma movimentação de organizações de proteção aos animais. “No entanto, em 2019, a prática voltou a ser legalizada, com uma regulamentação que, apesar de bem intencionada, não é fiscalizada de forma eficaz”, nos lembra o mesmo pesquisador.
O jumento comove por sua ductilidade, por sua servidão quase lírica, se é que podemos definir assim. Comoveu o diretor polonês Jerzy Skolimowski, que apresentou em Cannes, em 2022, o seu EO, retomando, à sua maneira, o clássico A grande testemunha, de Robert Bresson. Au hasard Balthazar (título original do filme) foi a única obra cinematográfica que levou Skolimowski às lágrimas, segundo ele próprio confessou numa das entrevistas dadas por ocasião do Festival. “O destino de um animal pode comover mais fortemente que o destino de um ser humano”. Independentemente de concordarmos ou não com a afirmação, retomar a historia de Bresson não deixou de ser um ato de coragem, isso para dizer o mínimo. Não custa nada relembrar o filme de Bresson, até para fazermos algumas distinções entre as duas obras, especialmente as diferenças de concepção cinematográfica e filosófica de ambos os realizadores.
Saiba Mais
Skolimowski e Bresson
Balthazar, asno de estimação da pequena Marie, depois de ser maltratado, refugia-se na casa de um padeiro que o usa para fazer a entrega de pães. Mais uma vez sofre maus-tratos por parte do jovem padeiro. A mãe de Jacques, amigo de Marie, morre e a fazenda é entregue aos cuidados do pai de Marie. Balthazar continua a ser maltratado por delinquentes amigos de Marie. Apesar de amar Balthazar, Marie nada faz para ajudá-lo. Os azares do burrico se estendem à família de Marie: acusado injustamente de roubar do proprietário, o pai de Marie vai à falência. A via crucis de Balthazar prossegue em dezenas de situações, onde é explorado de diversas maneiras, seja num circo, seja quando volta para seu antigo e maldoso ex-dono. Apesar de seu ar angelical, Marie torna-se amante de um dos delinqüentes da aldeia. Ela abandona o vilarejo. Seu pai morre. Balthazar é uma das poucas coisas que lhe restou da mãe. No fim, o burrico é roubado para servir como instrumento para o contrabando de Gerard e seus amigos. Eles fogem com os tiros da polícia. Balthazar, no entanto, acaba sendo ferido mortalmente.
No filme de Bresson, o destino dos indivíduos é definido por um fatalismo, por uma predestinação inexorável. “As pessoas são para o que nascem”, fazendo aqui referência ao título do documentário brasileiro dirigido por Leonardo Domingues e Roberto Berliner. A expressão cai como um luva para definir a visão “jancenista” do diretor francês. O jancenismo é isso, as pessoas são predestinadas a fazer o mal como uma conseqüência do pecado original, pecado esse que estaria na origem da corrupção humana. É uma perspectiva hiper pessimista, não é mesmo? O cinema rígido e severo de Bresson é também isso. Sua linguagem austera, seca, é o exato oposto do cinema de Skolimowski. O colorismo das primeiras imagens de EO – e de outras mais adiante no filme - servem a um tratamento dramático (a uma estetização) muito longe do excêntrico “naturalismo desdramatizado” de Bresson. São diretores, não só esteticamente antagônicos, mas também naquilo que querem dizer, embora muitas vezes queiram dizer a mesma coisa, mas de formas distintas. Em suma, no fim das contas, ambos são, cada uma à sua maneira, cruéis e céticos.
EO e a sociedade
Skolimowski se vale de EO para firmar que é a sociedade – através da cristalização de aspectos de suas culturas - que corrompe os homens e não uma ação divina implacável. Ele usa a subjetividade do burrico para atualizar e criticar temas de nossa contemporaneidade. Ao contrário do filme de Bresson, onde o burrico é uma testemunha indiferente, no filme de Skolimowski o burrico tem olhar acusador e, ao mesmo tempo, é sentimental: ele chora quando se vê separado de sua parceira do circo, depois foge de tristeza quando ela o visita - na fazenda onde fora colocado depois da falência do circo - e subitamente vai embora, A falência do circo é uma decorrência dos movimentos sociais de proteção aos animais. Duas outras seqüências, magníficas por sinal, são impiedosos comentários sociais. A primeira delas é a do haras, onde o burrico é abrigado ao lado de garbosos e imponentes cavalos de raça. Skolimowski usa aqui uma abordagem insólita, burlesca, de sutil surrealismo, para falar do abismo de classes. Na cena, snobs e pomposas autoridades, ao lado dos donos do haras, usam de uma tesoura desproporcionalmente grande para cortar a fita de inauguração do empreendimento.
A abordagem da cena é muito próxima do cinema do leste europeu, dele próprio, Skolimowski, de Polanski, do xará Jerzy Kawalerowicz e de tantos outros filmes rodados na região nos anos 1950, 1960 e 1970. A frívola e pedante relação entre o garbo jactancioso dos indóceis cavalos de raça e a assustada atriz de um comercial dirigido à fina-flor da elite local, estão em consonância com o sutil e risível subjetivismo social dos cinemas poloneses, tchecos e eslovacos em suas respectivas épocas de ouro. A segunda e notável seqüência é a do jogo de futebol, quando o burrico se torna o “amuleto” de um time de província. EO é agredido pela horda de fanáticos torcedores adversários inconformados com a derrota. Em diferentes contextos, nos dos casos está expressa a estupidez humana. Mas há no filme um outro mundo, inicialmente sem rastro do humano, insondável, inapreensível, exposto na magnífica seqüência noturna. Macabra, tensionada, especialmente depois que espoca o estampido do que compreendemos ser o tiro de caçadores, indicando a repentina presença de criaturas humanas.
Um dos episódios mais curiosos em EO é o encontro do burrico com um padre italiano. A seqüência impacta pelo que ela tem de surpreendente. Um corte narrativo verdadeiramente “buñuelesco”. Um mini drama disfuncional entre o padre e sua madrasta-amante (Isabelle Huppert), ambos de origem burguesa. O burrico observa de fora, no jardim, a ação que se passa no interior do “palazzo”, até que decide ir embora. Há uma evidente simbologia cristã em todo o filme e em seu trágico desfecho. O burrico são os párias e excluídos. Os humildes. Não vamos nos esquecer que segundo a tradição judaica, Jesus entra em Jerusalém montado num burrinho. Na tradição católica, a mesma coisa, Jesus utiliza o burro como meio de transporte para dizer que não precisamos nos impor pela força usando um cavalo, considerado um instrumento de guerra e poder. Jesus usa a montaria dos pobres e humildes. Há uma farta referência nas artes no que diz respeito à simbologia do burrico. Lembramos de Patero Y Yo, prêmio Nobel de literatura para Juan Ramón Jimenes, de O Burrinho Pedrês, de Guimarães Rosa, onde nos defrontamos com a imagem tenaz e modesta do burrico, imagem que se contrapõe à estupidez, à vaidade e ao desejo de potência. Ou ainda, saltando para o campo da música, de Apologia ao Jumento, em que Luiz Gonzaga, citando o Padre Vieira, solta a voz para nos dizer “o jumento é nosso irmão”.