Historicamente, minoria no universo do rock, as mulheres, mesmo que seminais para o gênero, há décadas têm que combater a misoginia e o preconceito por parte da indústria e do público para ganharem um espaço digno na música pesada. Em meio às estruturas de opressão, artistas como Sister Rosetta, Tina Turner, Janis Joplin e Rita Lee se rebelaram e abriram os caminhos para novas roqueiras femininas que, a partir de amanhã, invadem em peso uma das maiores celebrações do gênero no país.
Essa edição do Porão do Rock, que marca o aniversário de 25 anos do festival, será de sexta a domingo, no Eixo Cultural Ibero-americano, antiga Funarte. E, inegavelmente, houve um esforço por parte da curadoria do evento para que as garotas pudessem recuperar um espaço de visibilidade. Dividida entre dois setores (Palco Canisso e Palco Rita Lee), a festividade fez questão de trazer, além de notáveis atrações masculinas, também mulheres como as bandas Crypta e Luísa e os Alquimistas, além das cantoras Céu e Day Limns.
No palco dedicado à Rainha do Rock, o legado de uma das artistas mais emblemáticas da música brasileira se manterá vivo por meio do DNA da família, no show Rita Lee por Beto Lee, liderado pelo primogênito da cantora. "Fico muito feliz com mais uma homenagem entre tantas desde sua partida e com o quanto ela é querida por todas as tribos. Será uma honra imensurável levar esse show pra esse espaço tão importante que é o Porão", afirma Beto Lee ao Correio.
Muito mais que apenas um tributo à Rita Lee, o palco que leva o nome da cantora ressalta a inegável importância dela na cena do rock feminino — é graças à Rita que festivais do porte do Porão cedem espaços tão centrais para artistas mulheres. "Se hoje a estrada está pavimentada, é por causa dela e tantas outras mulheres que enfrentaram tudo e todos, numa época bem mais hardcore", avalia Beto.
As metaleiras
Headliner do primeiro dia de shows, a banda Crypta não tardou a se tornar uma referência do metal extremo nacional. O primeiro disco, Echoes of the soul (2021), projetou o grupo, formado só por mulheres, para o mercado mundial com um som brutal e melódico característico. Agora, entretanto, com o álbum Shades of sorrow, lançado em agosto deste ano, a sonoridade da banda explora caminhos mais sombrios e pesados. "Eu acho que é natural das nossas novas influências, de bandas que têm riffs mais pesados", ressalta a guitarrista Tainá Bergamaschi.
Para a instrumentista, mesmo com o merecido reconhecimento, ainda existe certo estranhamento com uma banda de metal extremo formada exclusivamente por mulheres. "Todo mundo sabe que o metal é predominantemente masculino. Como mulher, é difícil muitas vezes trabalhar com música e ter pessoas te levando a sério. Mas, por outro lado, também é muito gratificante. Com essa dificuldade de acesso a esse tipo de coisa, você acaba se tornando inspiração para outras. É muito legal quando meninas olham para mim e falam que eu inspirei elas, porque eu sei que essa pessoa vai inspirar uma outra", destaca Tainá.
Para ela, ainda é imprescindível que os eventos de rock se atentem mais às questões de gênero e deem mais visibilidade às artistas femininas. "É importante mostrar isso nos festivais. A gente já chegou a tocar em festival que tinha mais mulheres do que homens no palco. As pessoas têm que se acostumar a ver isso como normal. Estamos aí para isso".
Com formação completada pelas integrantes Fernanda Lira (baixo, vocal), Jéssica di Falchi (guitarra) e Luana Dametto (bateria), a banda Crypta cultiva boas memórias relativas a Brasília, visto que foi aqui, no Porão do Rock de 2021, que fizeram a primeira aparição ao vivo, num formato híbrido, com o público dentro dos carros. "Agora, realmente a gente vai poder pisar no real Porão do Rock", diz Tainá. "Agora é tocar, tocar e tocar. A gente quer explorar o máximo possível todos os continentes".
Nova cara do rock
Parte da programação do segundo dia de festival, a banda local Dennehy explora o som pesado do metalcore moderno sob a liderança da vocalista Luna Vaz. "É uma sensação maravilhosa poder ocupar esse espaço que, de fato, já era nosso. Poder dividir esse momento com tantas mulheres, dividir o palco com elas, é uma sensação incrível, porque, infelizmente, não é sempre que temos essa oportunidade de ter um line-up tão feminino, com um palco dedicado exclusivamente a isso", compartilha a cantora.
Como moradora de Brasília, a participação no festival, para Luna, é ainda mais especial. "Eu frequento o Porão do Rock desde pequena, assim como os demais integrantes da banda. Eu fui em todas as edições desde os meus 14 anos. Eu vi muitas bandas que eu era fã no Porão do Rock e é muito louca a sensação de tocar no mesmo lugar que elas", conta. O grupo ainda é formado por João Pedro "Cookie" no baixo e Gustavo de Bem na bateria.
Com trabalho marcado pela originalidade, Luísa e os Alquimistas são outro destaque do segundo dia de evento, com repertório que explora novas possibilidades roqueiras. Acompanhada por músicos homens, Luísa é a protagonista do grupo que mistura elementos do brega, como o batidão eletrônico da música nordestina, e a atitude do rock and roll, como as guitarras pesadas e distorcidas.
A banda apresenta um show completo inédito que mistura os grandes hits e o melhor de cada fase, mas prioriza o último álbum, Elixir. "Estamos empolgados para saber o que a galera vai achar, como o público vai responder. Vamos tudo que podemos oferecer, trazer figurino, peso, dança e o som do nordeste", enfatiza Luísa.
Segundo ela, as mudanças do rock não são motivadas apenas por questões de representatividade, mas também porque os festivais estavam chatos e monótonos. Para a cantora, o protagonismo do homem branco e hétero estava saturado, pouco inovativo. "É um movimento muito natural e necessário as mulheres no front e ocupando os festivais. É a gente que está fazendo a música acontecer, não tem como fugir disso", destaca ela.
Entre os artistas do último dia de show, o Porão do Rock trouxe um nome proeminente no cenário do pop rock. A cantora e compositora Day Limns passou por grandes desafios na carreira e hoje, sendo mulher parte da comunidade LGBTQIAPN+, consegue falar sobre aceitação nas músicas. Para Day, cantar em um festival de rock, que, até um tempo atrás era dominado por homens, é uma grande responsabilidade. "Eu me sinto importante e validada enquanto artista", ressalta.
Além da realização pessoal, Day Limns destaca a importância das demais mulheres presentes no festival. Segundo ela, no entanto, apesar das conquistas, ainda é mais difícil do que deveria, para uma mulher, conseguir visibilidade do universo do rock. "Fico feliz de estar num festival em que existem mais mulheres ocupando esse espaço. Espero que aconteça cada vez mais, em especial com mulheres LGBT e pretas. Espero que exista cada vez mais essa preocupação", relata a cantora.
Junto às meninas, o festival também traz nomes como Edu Falaschi, Galinha Preta e Project46, na sexta-feira; Raimundos, CPM 22 e Câmbio Negro, no sábado; e Dado Villa Lobos & Marcelo Bonfá, Plebe Rude e Remobília, no domingo.
Serviço
Porão do Rock 25 Anos
Sexta-feira (29/9), 18h, sábado (30), 17h, e domingo (1°/10), 16h, no Complexo Cultural Ibero-americano. Ingressos a partir de R$ 55, disponíveis na Bilheteria Digital. Classificação indicativa: 16 anos. Assinantes do Correio Braziliense têm 20% de desconto na compra do passaporte do evento, para assistir as apresentações dos três dias. O código promocional pode ser consultado no site do Clube do Assinante.
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