Crítica

Os Vivos e os Mortos

(Autobiografia e Tantas Outras Coisas)

Correio Braziliense
postado em 07/09/2023 18:02 / atualizado em 07/09/2023 20:24

Por Sérgio Moriconi, crítico de cinema, professor e palestrante

Sob que gênero poderíamos enquadrar Retratos Fantasmas, último filme de Kléber Mendonça Filho, exibido em sessão especial no Festival de Cannes de 2023. O longa faz um paralelo, ou narra paralelamente, a vida do diretor a partir de sua infância no bairro de Setúbal, no centro de Recife, assim como as mudanças sofridas pela capital pernambucana, em parte durante o período de vida do realizador, mas também em um período muito anterior, desde quase a fundação da cidade, ou pelo menos em seu período moderno, que vai dos anos 1950/1960, até a nossa contemporaneidade. Muito disso nos é mostrado através de fotos e documentos. O tratamento dado por Kléber para o seu “documentário” não deixa de ser super interessante. Ele é e ao mesmo tempo não é um documentário. Às vezes é e outras vezes não é um filme-ensaio. Este hibridismo é que dá singularidade a Retratos Fantasmas, cujo enigmático título vai ser compreendido à medida que a narrativa avança.

Este filme de memória é (também) sobre a evanescência de coisas, lugares e indivíduos. Sua primeira parte tem um apelo especial para quem acompanha o diretor desde o início. Ficamos sabendo, por exemplo, que os cenários de curtas, e especialmente do longa O Som ao Redor, são os da própria casa de Kléber. Muitos curtas eram realizados ali com os amigos, ainda quando sua mãe, a historiadora Joselice Jucá, estava viva. Joselice, o cachorro do vizinho, irmãos e alguns outros personagens menores são alguns dos fantasmas que habitam a obra. Fantasmas antigos e não tão antigos, como o registro do dramaturgo e escritor Ariano Suassuna e esposa chegando para uma das sessões do Cine São Luiz. Este cinema histórico teve mais sorte do que muitos outros situados no centro do Recife, desaparecidos no fumo do tempo, da mesma maneira que anteriores fantasmas, antiqüíssimos, como a singela e bela Capela Anglicana do Recife, cuja foto aérea nos dá bem a dimensão da degradação do centro urbano da cidade, hoje apinhado de prédios de péssimo padrão arquitetônico e construtivo. A imagem é comovente. A Capela funciona no filme como uma metáfora paradoxal de como as coisas funcionam no Brasil e do assunto mesmo da narrativa. A capela seria demolida e no seu lugar se ergueria o monumental Cine São Luiz, um dos últimos cinemas de rua da capital, tema e objeto de grande interesse de Retratos Fantasmas.

Paradoxal, sim, afinal de contas o desaparecimento da Capela Anglicana invertia a mecânica dos anos 1980 em diante, quando cinemas davam lugar a templos evangélicos. Um dos únicos sobreviventes da terra arrasada que assolou o bairro de Setúbal e suas redondezas, o Cine São Luiz tem um papel fundamental no filme de Kléber. As imagens de arquivo testemunham sua época de ouro, sua incrível opulência, seus dois vitrais ao lado da tela de autoria da artista plástica Aurora de Lima, aluna de Heinrich Moser, artista alemão, também arquiteto, pintor, escultor, conhecido por várias de suas obras, incluindo vitrais, espalhados pelo nordeste. Os de Aurora de Lima foram construídos em 1951. Com belos motivos florais, cuja propaganda da época chamava a atenção para o fato de o São Luiz ser “um dos poucos cinemas de rua do mundo a ter vitrais no seu interior”. Vamos imaginar que seja verdade! E não era só isso. O esplendor e requinte do Cine São Luiz ainda incluía enormes tapeçarias suspensas e cruzadas no teto, fazendo com que o interior do prédio aludisse a um majestoso teatro de fins do século XIX. Bordados de flor-de-lis e dezesseis escudos de guerra faziam referência – imaginem só - ao rei Louis IX da França e às cruzadas. Completavam a decoração o piso de mármore branco, as paredes revestidas em jatobá e as luminárias de bronze.


Mas a cereja do bolo talvez fosse o enorme painel de Lula Cardoso Ayres, painel no estilo modernista de Cândido Portinari, de quem foi um, digamos assim, discípulo, muito embora sua arte transitasse pelos mais variados estilos. Cubista, impressionista, expressionista, gótico, Picasso, Goeldi, vale um pouco de tudo na definição de seu indefinível trabalho. Luiz Gonzaga Cardoso Ayres, era esse o seu nome, foi também pintor, fotógrafo, desenhista, ilustrador, muralista, cenógrafo. Estudou desenho e pintura (advinhem!) com Heinrich Moser, entre 1922 e 1924. Conheceu o mundo e tomou contato com os movimentos artísticos modernos da Europa. Quando volta para o Brasil, tem que ajudar o pai a administrar a usina de açúcar da família. Lula e o painel não estão no filme de Kléber. São “retratos fantasmas” ausentes que, entretanto, merecem essa menção. Vejam bem, Lula Cardoso conhece o pintor Cicero Dias, o psiquiatra Ulysses Pernambucano e o sociólogo Gilberto Freyre, com quem terá uma forte ligação a partir de então. Cut e reviravolta! Os negócios da família sofrem grave crise em 1945, então Lula retorna ao Recife e passa a se dedicar a pintura numa derradeira tentativa para se sustentar.


É dele o painel do Aeroporto dos Guararapes, no Recife, retratando a vida cotidiana e festiva nordestina. Além disso, faz ilustrações para obras de autores como Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira. Sociológica e culturalmente é incrível a importância do Recife antigo como atestam os nomes mencionados. Desde o princípio, no bairro da Boa Vista (Schoonzicht, em holandês), com seu palácio de mesmo nome, construído por Maurício de Nassau, em 1643. O Palácio tinha uma vista estratégica e ampla, tanto do Recife, quanto de “Maurícia”, hoje Olinda, cidades muito próximas ligadas apenas por uma ponte. Boa Vista teve diversas de suas ruas imortalizadas pelos poemas de Manuel Bandeira, especialmente o poema Evocação do Recife, que cita nominalmente as ruas da infância do poeta vivida na casa do avô Antônio José da Costa Ribeiro, na rua da União. É lá também onde está a casa onde viveu Clarice Lispector. O bairro teve muita importância no Ciclo de Recife – lembram dele? O Ciclo foi um dos marcos da cinematografia pioneira brasileira. Dele saíram de 33 a 40 documentários, como o célebre Veneza Americana, dirigido por Ugo Falangoa e J.Cambière, que documenta as transformações urbanas na cidade. Iniciado em 1923, o Ciclo ficaria mais conhecido por treze dos seus longas-metragens, entre eles os clássicos Aitaré da Praia e A Filha do Advogado.


Uma boa seqüência do filme de Kléber Mendonça é dedicada aos cinemas do centro de Recife, muitos deles fechados a partir dos anos 1980. Mas, historicamente, desde os anos 1930 havia um grande vigor na exibição de filmes na cidade. Kléber exibe fotos de algumas dessas salas – incluo aqui também as não apresentadas -, o Pathé, o Cine Royal, o Cine teatro Parque, o Moderno e o Polytheama, todos localizados no Bairro da Boa Vista. Na segunda metade do Século XX, o centro do Recife chegou a abrigar mais de 100 salas de cinemas de rua, sendo reconhecido como um dos principais pólos cinematográficos do país. 100 salas! Aludindo aqui a Dorival Caymmi, “o que que Pernambuco tem” - ou tinha!? O ascendente regime nazista de Adof Hitler devia saber, afinal de contas fez construir na capital pernambucana, em 1936, o suntuoso Art Palácio, projetado pelo arquiteto paulista Rino Levi, projeto que visava fazer do Art Palácio uma espécie de subsidiária dos estúdios UFA de Berlim. Seu hall de entrada, platéia e interiores lembravam os ambientes imaginados por Fritz Lang em seu filme Metrópolis.


Em sua fabulação, Retratos Fantasmas traz algo de esotérico, místico, ou mesmo sobrenatural e espírita – este último num sentido jocoso, claro. De uma forma meio que extravagante, remete ao cinema de gênero de um Bacurau, ou a um tipo de cinema sensorial e não-realista. Mas o tratamento do filme em geral é sério e recupera, digamos assim, a memória que os cupins comeram. Os cupins de Aquarius, os cupins dos cinemas demolidos, de vivos e mortos, dos sons, latidos, grades. O filme traz também a serragem, as farpas e as migalhas remanescentes que os cupins não comeram, como a deliciosa história contada por Alexandre, falecido projecionista do Art Palácio, que, certo dia, trocou de lugar com seu colega do cinema do outro lado da rua, porque não agüentava mais ver nem ouvir a música de O Poderoso Chefão, de Coppola, filme que permaneceu em cartaz meses a fio no Arte Palácio. Os de Coppola eram fantasmas renitentes que não assombravam mais os vivos. No fim das contas – pensando agora em Retratos Fantasmas - a memória e seus espectros têm mesmo algo de onírico, evanescente e instável.

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