Carlinhos Brown, o mago do Candeal ganha nova biografia

Em entrevista ao Correio, Julius Wiedemann, biografo de Carlinhos Brown, fala da relevância do compositor que, à medida em que ficou famoso, espalhou cultura e educação pelo bairro onde nasceu

 Carlinhos Brown revolucionou a percussão e está na linha de frente da luta social -  (crédito:  Reprodução)
Carlinhos Brown revolucionou a percussão e está na linha de frente da luta social - (crédito: Reprodução)
Irlam Rocha Lima
postado em 14/09/2023 05:45

Cidadão do mundo, Carlinhos Brown cumpre nova turnê pela Europa. Depois de participar do Carnaval de Notting Hill, em Londres, com o Trio Elétrico Gueto Square, totalmente sustentável; ocupa as ruas de Paris, ao participar da lavagem do Festival Cultural Lavage de la Madeleine, neste domingo.

A celebração, que ocorreu na Place de La République, no centro da capital francesa, foi inspirada na tradicional lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador.

Brown, destaca a importância desse evento, do qual que participou várias vezes. "É uma festa brasileira respeitadíssima, em que o sincretismo baiano se expressa, por motivo de agradecimento espiritual,
tal qual a Lavagem do Bonfim, a Lavagem de Nossa Senhora da Conceição, em Salvador".

O ritmista, compositor e cantor soteropolitano ressalta: "Paris sempre teve as portas abertas para que a gente realizasse essa celebração, colocando a cultura brasileira em evidência, num encontro lindo entre franceses, brasileiros e pessoas de outras partes do mundo, que ocorre sempre em setembro".

Nascido no Candeal, bairro periférico de Salvador, Antônio Carlos Santos de Freitas foi uma criança curiosa que os encontros musicais de vizinhos o levaram a se apaixonar por sonoridades e aprender música, mesmo longe das tradicionais escolas e professores.

Ritmista, compositor e cantor, Brown cresceu com o Candeal e, conforme a fama, a notoriedade e o dinheiro chegaram, passou a encher o bairro de educação e cultura. Projetos criados por ele, como a Pracatum (centro educacional) e Candeal Gheto Square (local de ensaios e apresentações da Timbalada) viraram referências da capital baiana.

Essas e outras facetas desse multiartista são evidenciadas em Meia-lua inteira, biografia escrita por Julius Wiedemann. No livro, ele retrata histórias e memórias desse multiartista, integrante do coletivo Tribalistas, ao lado de Marisa Monte e Arnaldo Antunes.

A obra, lançamento da editora Record, é resultado de mais de 30 horas de gravação de conversas, centenas de mensagens e quase 50 entrevistas de amigos e familiares, além de trazer um encarte com fotos marcantes da trajetória do biografado. Andrea Mota assina a produção executiva.

Entrevista// Julius Wiedemann

Qual era sua relação com o Carlinhos Brown e a obra dele antes de iniciar a escrever a biografia?

Eu cresci escutando Carlinhos Brown. Acabei conhecendo ele por meio da minha esposa, a chef Morena Leite. Era uma apresentação de baianidade para baianidade. Trabalhamos juntos, então, num curso sobre percussão para a empresa Domestika, de educação on-line, na qual eu era executivo. Foi uma experiência iluminadora. Eu fui para Salvador para gravarmos o curso lá no Candeal, dentro do Candeal Guetho Square. Eu, realmente, fui tomado por uma emoção enorme ao ouvir alunos antigos da Timbalada tocarem ao vivo para gravar o curso. Fiquei observando a liderança de Carlinhos, e a visão criativa que ele conseguia exercer e comunicar. Além da reverência que existia dentro do bairro.

Como ele reagiu ao saber que seria objeto de uma biografia?

Como o próprio Boninho fala para o livro, Carlinhos sempre diz que quer fazer tudo. Mas, falando sério, ele topou, e montamos um esquema de trabalho. Eu disse que demoraria mais de um ano até gravar todas as entrevistas, com ele, e com outras pessoas ao redor, que foram mais de 50. E isso aconteceu durante a pandemia.

Quanto tempo durou o trabalho de execução do projeto, relacionado com a coleta de informações e entrevistas?

Foram mais de dois anos de trabalho de coleta de informações, e um ano mais editando os textos, organizando o conteúdo para que fizesse sentido para o leitor. Eu comecei a fazer o livro de maneira cronológica, e minha editora, Marília Pessoa, me pediu para achar um outro jeito, que ficasse mais dinâmico. E foi com isso que chegamos aos capítulos que temos agora. A solução foi entender os territórios que são importantes para a vida de Carlinhos.

Qual foi a etapa mais trabalhosa para escrever o livro?

O mais difícil foi exatamente entender quais eram as fases da vida de Carlinhos, e também o que era mais importante para a vida dele como um todo, e organizar isso dentro da narrativa. Quanto mais pessoas eu entrevistava, eu entendia que precisava ir um pouco mais a fundo. Um certo dia, conversando com uma pessoa, decidi que tinha que ir a Salvador para encontrar com duas mães de santo que trabalhavam com Carlinhos. Só assim eu poderia entender de fato a relevância do candomblé na sua vida. E por aí foram-se meses de investigação. A entrevista com o Paulo Borges, e a penúltima entrevista, com Nelson Motta, também foram incrivelmente importantes. Não foram fáceis de se fazer, mas foram pessoas que participaram de momentos da vida dele que elucidaram muito a contribuição de Carlinhos para a cultura brasileira. Essa contribuição é que é a parte mais importante do livro, e chegar até lá, de maneira interessante, foi meu maior desafio.

Que aspectos da trajetória do artista considera mais relevantes?

Eu vejo que Carlinhos teve quatro grandes fases. Primeira, foi a preparação dele como artista, tropeçando em pessoas incríveis. Depois, veio o axé, ele foi parte desse fenômeno musical brasileiro. Uma ascensão incrível. Depois, veio a expansão dele para um público muito mais aberto, com os Tribalistas. E, por último, vem a televisão, onde ele já está trabalhando o seu legado. Isso tudo com uma luta de trabalho social realmente invejável, que corre em paralelo quase que desde o começo de sua carreira.

Brown tomou conhecimento da obra antes do lançamento?

Sim, ele leu, e sempre foi muito generoso em relação a tudo que deveria entrar no livro. Olhar para o passado também é olhar para as cicatrizes. Mas Carlinhos tem uma coisa invejável. Apesar de ter sofrido tantas coisas, inclusive racismo, ele continuou sendo uma pessoa doce, que te liga sempre com uma voz de paz. Por isso, recebeu o livro e ficou muito tranquilo.

Você acha que o livro vai despertar mais interesse de que parcela do público?

Eu acho que o livro tem alguns públicos distintos. Uma questão importante do livro é a cultura brasileira, que Carlinhos epitomiza pela sua miscigenação, origem social, e conquistas… é uma grande bandeira dele. Ele mesmo fala que a miscigenação em si não conserta, mas que é uma realidade. Eu sempre vi nesse discurso uma fortaleza muito grande. Além de entender isso como um discurso de paz. Também existe o público que quer entender a cultura brasileira e a questão afro nesse contexto. Por último, mas não menos importante, tem a questão da música. O livro ajuda a entender a riqueza musical brasileira. Que vem de todos os lados.

De que tamanho é sua satisfação após ver Meia-lua inteira lançado?

Eu realmente estou muito satisfeito. Eu vivi mais de duas décadas fora do Brasil para entender que era brasileiro. Toda volta à terra natal não é simples. Me reconectei muito com o Brasil através da história de Carlinhos Brown. Foi pra mim uma avalanche de informação e de aprendizado. Eu espero poder ter colocado isso de uma maneira bacana, leve, descontraída, e informativa no livro.

Meia-lua inteira

Biografia de Carlinhos Brown com 308 páginas. Autor Julius Wiedeman. Preço: R$ 59,90. Lançamento — Editora Record

 

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