Literatura

"A troca deve ser constante entre as culturas", diz Mia Couto

Em entrevista ao Correio, Mia Couto, autor de "Terra Sonâmbula" e "Antes de nascer do mundo", fala sobre a importância das trocas culturais entre Brasil e África

 Mia Couto foi um dos convidados da primeira edição do Festival Literário Internacional de Paracatu -  (crédito: Ranch Films)
Mia Couto foi um dos convidados da primeira edição do Festival Literário Internacional de Paracatu - (crédito: Ranch Films)
postado em 05/10/2023 14:23

O escritor moçambicano Mia Couto foi um dos convidados especiais da primeira edição do Festival Literário Internacional de Paracatu, que aconteceu entre os dias 23 a 27 de agosto. É autor de Terra Sonâmbula, considerado um dos 12 melhores livros africanos do século 20, e As pequenas doenças da eternidade: Contos, obra lançada no início de agosto deste ano. Em entrevista ao Correio, o escritor fala sobre intercâmbio de culturas, colonização, literatura, meio ambiente e como a trajetória de vida influenciou em suas obras.

Desde a sua estreia como escritor, Mia Couto é acolhido pelos leitores e escritores da literatura brasileira. Quando questionado sobre a proximidade entre brasileiros e moçambicanos, ele diz que o intercâmbio entre as culturas é menor do que deveria "Essa troca é muito pontual e é quase sempre ligada com aquilo que são momentos. Eu acho que deve haver uma troca constante de uma coisa que é anterior à literatura, anterior a qualquer arte, que são a troca de saberes." O autor aprecia a cultura brasileira e acha que o contraste presente no país deveria ser objeto de estudo. "O Brasil é um caso que eu acho que devia ser estudado como um caso de diversidade e de gente cujas misturas e patrimónios cinéticos se combinam, se misturam. O conhecimento que se tem dessas diversidades em termos de saberes, em termos de sensibilidades, continua a ser muito pequeno. Então, vale a pena saber que a literatura apenas traduz essa outra visão que é subjacente e que tem outras sabedorias, tem outros pensamentos."

Além de serem colonizados por Portugal, os moçambicanos, de acordo com o escritor, são um povo semelhante aos brasileiros. "Há vezes coisas que eu acho que talvez os brasileiros próprios não notam. Mas, por exemplo, esta coisa corporal, esta coisa de a gente se abraçar, tocar-nos, esta coisa de receber bem, esta coisa de ter necessidade de fazer rir, por exemplo. Não ter esse acanhamento, pensar na letra do outro, não ter vergonha de ser feliz. Acontece muito em África que a felicidade é uma espécie de resposta àquilo que é mais duro, mesmo a coisa que é mais miserável. A resposta nunca é a ser infeliz, é preciso proclamar a felicidade em cima disso."

Em relação às suas obras, Mia Couto falou sobre a relação entre a fantasia e a realidade "Eu tenho muita dificuldade em aceitar que exista essa fronteira. Quem é que diz que isto é a realidade e quem é que diz isso? Quem é que tem essa autoridade para dizer que uma coisa está de um lado ou do outro? Eu acho que a gente foi absorvendo alguma coisa que já nem sequer entendeu bem, mas fomos construindo uma realidade como se ela fosse real." O autor diz que, na cultura do seu país, essa concepção que separa a realidade e a ficção não é tão clara. "Eu vejo isso muito claro em Moçambique, se eu disser sério que esta noite dormi, fui uma árvore ou acordei de manhã e eu era uma onça, toda a gente acha que isto é o domínio da realidade. Eu não estou inventando nada." Ele menciona o conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, como uma visão brasileira que mergulha nessa "fronteira". "O que temos é um padrão histórico que foi herdado por aqueles que construíram esta coisa que a gente chama o mundo, os heróis, que de repente criaram uma espécie de ideia de que é assim para toda a gente, mas não é assim."

A colonização é um ponto importante na escrita de Mia, e assim veio o questionamento da importância de retratar o colonialismo na literatura nos dias de hoje. "O escritor não vai dizer assim: 'Agora vou retratar ou vou denunciar, seja o colonialismo, seja o racismo, seja qualquer coisa'. Ele vai contar uma história e essa história toca as pessoas porque ela toca naquilo que é mais profundamente humano. São o amor, a morte, a traição, a coragem, isso sim." A escrita que denuncia o colonialismo é natural porque a pessoa viveu as repercussões da colonização e provavelmente busca mudar esse mundo, diz ele. 

Além de escritor, o autor é biólogo de formação e acredita que essa graduação o influenciou na sensibilização para o mundo. "Quando eu olho para uma árvore, eu quero ver quem é essa árvore, até porque eu preciso de identificar, de classificar. Eu olho para essa árvore como uma criatura única, e não como eu fazia antes. Este exemplo, parece uma coisa um pouco idiota, mas a biologia conta uma história e diz que cada uma dessas criaturas que estás vendo tem uma história, e se não conheces essa história, não te conheces tanto a ti próprio."

O moçambicano acredita que não só a literatura, mas todas as vertentes da vida giram em torno do meio ambiente e que isso não deveria ser um assunto separado "As questões ambientais são todas. Se a gente interroga a política do mundo, estamos a falar do meio ambiente sempre." Ele relata que, em Moçambique, não existe essa divisória e acredita que a literatura tem o potencial de romper essa ideia de que há uma fronteira. "Nas línguas moçambicanas não há palavra para dizer meio ambiente, não há palavra para dizer natureza, porque tudo é meio ambiente, e não há separação entre nós e o ambiente, essa fronteira não existe."

 *Estagiária sob a supervisão de Nahima Maciel 

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