Literatura

Fliparacatu transforma cidade mineira em palco da literatura

Festival de literatura leva a Paracatu autores como Conceição Evaristo e Mia Couto. A Ideia é discutir e refletir sobre ancestralidade, racismo e construção da identidade

A Praça da Igreja Matriz de Paracatu (MG), a 232 km de Brasília, ganhou ares de uma enorme galeria. Pelo local foram dispostas ampliações generosas de 42 telas do pintor brasileiro Cândido Portinari, que completa 120 anos de nascimento em dezembro de 2023. Com uma população de menos de 100 mil habitantes, a pequena cidade mineira recebeu a exposição Portinari negro como um anúncio de uma festa que pretende integrar diversas áreas da cultura e movimentar um núcleo histórico em torno da literatura.

A exposição foi o primeiro passo da Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu), que tem início hoje com o tema Arte, literatura e ancestralidade e segue até domingo com uma lista de convidados que incluiu o moçambicano Mia Couto e os brasileiros Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Júnior e Eliana Alves Cruz, entre outros nomes importantes da produção literária nacional. "No âmbito da cultura local, e na ambientação da população, com grande representação de quilombos e majoritariamente negra, a ideia de levar o tema da ancestralidade embutido no contexto da literatura ajudou a nos conectarmos com a população e a criar gatilhos de satisfação e expectativas, o que tornou o Fliparacatu um festival esperado, desejado por todos", explica Tom Farias, um dos curadores do festival.

Afonso Borges, idealizador do Fliaraxá, do Flitabira e agora do Fliparacatu, acredita que é preciso ativar as conexões da literatura com outras áreas das artes para poder criar um circuito cultural, por isso a exposição de Portinari na praça central da cidade mineira. Realizador por mais de três décadas do Sempre um papo, programa de encontros com escritores, Borges explica que o festival não tem um formato convencional de escritores convidados para realizar palestras e lançar livros. "É um pouco diferente", garante. "Todas as artes ao redor da literatura estão presentes, é esse o segredo para mobilizar pessoas ao redor do incentivo ao hábito da leitura", diz.

O "esquenta", como diz Tom Farias, ajuda a mobilizar o público em uma cidade que não tem tradição literária nem livraria. "Na maioria das cidades brasileiras, a tradição literária é diminuta, quase nenhuma, e em muitas, como Paracatu, nem livrarias tem. Isso nos dá uma grande responsabilidade, como realizadores, de levar esse ambiente de entretenimento cada vez mais para regiões como estas, para que de alguma forma sensibilizemos — não só a administração local, mas a estadual e a federal também — a pensar na promoção da arte também por meio da literatura, conectando público com autores", explica.

Conceição Evaristo e Mia Couto são os homenageados desta primeira edição, que traz para as mesas de discussões as possíveis conexões entre a literatura e o combate ao racismo e ao preconceito, assim como a leitura como instrumento de luta, reflexão e construção da identidade. "Paracatu é uma cidade do século 16, com 70 % de negros, quatro quilombos, tem toda uma relação com a negritude", diz Borges. "Quando pensamos na montagem do festival, tomamos por premissa trazer autores que tenham a sensibilidade desse diálogo com a sociedade. A arte é o melhor instrumento para combater o racismo, incluindo a literatura, porque provoca reflexão, mergulho nas tradições para refletir sobre o que está acontecendo de forma errada."

Entrevista / Mia Couto

É um olhar para a dignidade das pessoas, para questões inocentes do dia a dia que Mia Couto propõe nos textos de As pequenas doenças da eternidade, uma coleção de contos que versam sobre guerras, abandono, solidão e até, de maneira nem sempre explícita, sobre a pandemia. A seleção foi feita especialmente para os leitores brasileiros, mas traz temas há muito tratados na obra do escritor moçambicano, que conversou com o Correio sobre os contos e sobre a participação na Fliparacatu, na qual será homenageado ao lado de Conceição Evaristo.

Em As pequenas doenças da eternidade, o senhor fala de grandes males da humanidade como a pandemia, o abandono, as guerras e a solidão. Como esses temas impactam a vida em sociedade e por que tratar deles na literatura?

O que está neste livro são, sobretudo, casos do cotidiano que parecem anódinos, aquilo que os mineiros chamam de "causos", mas que podem revelar alguma espécie de transcendência. Por exemplo, não me interessou falar da pandemia, mas dos diferentes modos como ela foi percebida e vivida em diferentes contextos culturais. Interessa-me interrogar como persiste a presunção de vivermos num único mundo e num mesmo tempo. As guerras que se vivem na África são tratadas do mesmo modo das que ocorrem na Europa? Estamos hoje em Moçambique a ser vítimas de uma guerra de agressão de fundamentalistas religiosos. Quem sabe disto? Moçambique viveu durante 16 anos uma guerra que levou a que metade dos seus habitantes tivesse de procurar refúgio nos países vizinhos. Quem soube disso? Esses dramas sucederam longe da Europa. Por isso, nunca chegaram a existir. Mas não se pretende que essa existência se afirme apenas pelo lamento ou pela indignação. Como escritor compete-me afirmar a dignidade de pessoas concretas que têm de lutar para sobreviver.

Como a conexão entre natureza e o ser humano, que é muito presente em suas histórias, está presente nesse livro?

Está presente exatamente para sugerir a relatividade dessas dicotomias "natureza" versus "cultura", "humano" versus "não humano", "vivo" versus "não-vivo" e tantas outras dicotomias tão caras ao pensamento chamado "moderno". Existem culturas (como muitas das que se vivem em Moçambique) que possuem uma visão distinta do mundo e da vida. Essas sabedorias sugerem uma outra forma de nos vermos a nós mesmos. Conhecer esses outros modos de pensar é hoje uma urgência de toda a humanidade. Não se trata de uma necessidade antropológica ou literária. Não saberemos dar a volta a esta crise mundial se não formos capazes de questionar as raízes do nosso pensamento

Para o senhor, qual o maior mal da humanidade neste início de século 21?

É difícil escolher o maior "mal". Mas a pergunta, sugerindo uma escolha entre os "males da humanidade" já é uma indicação de uma certa doença que nos assalta: o pessimismo. Mas há neste mundo quem não abra mão da esperança. As pessoas que vivem na guerra, na exclusão e na miséria não se podem dar ao luxo de serem pessimistas. O discurso apocalíptico é, além disso, um trunfo que se entrega de mão beijada à extrema-direita. É uma benesse a favor da narrativa messiânica que está ansiosa por impor os "salvadores" do mundo. É verdade que estamos num momento em que nos sentimos todos mais ou menos perdidos. Mas estar perdido pode ser uma boa oportunidade para procurar soluções que estão fora dos pressupostos do pensamento que se tornou hegemônico.

E qual o seu maior medo hoje?

Receio ter medo daqueles que se dizem companheiros na luta contra aquilo que você chamou os "males" do mundo. A intolerância de gente que se acha portadora de uma "identidade pura" pode ser muito assustadora. Nós estamos em busca de caminhos contra as novas ditaduras, contra os preconceitos e exclusão na base da raça, da crença, do gênero e da orientação sexual. Só encontraremos esses caminhos cometendo erros.

Qual a sua expectativa para o encontro com Conceição Evaristo?

É uma enorme honra reencontrar Conceição Evaristo, por quem nutro o maior respeito como pessoa e a maior admiração como escritora. Nós já partilhamos um evento literário em Maputo, há uns 13 anos. Comemorava-se o Dia da Mulher moçambicana e a Paulina Chiziane estava conosco na mesma mesa. Todo o festival está repleto de gente amiga, de escritores que conheço e admiro como o Itamar Viera Júnior e o Jeferson Tenório e tantos outros. Com o mesmo gosto vou conhecer gente nova. Vai ser uma festa.

 

ADENORGONDIM. - Escritor Itamar Vieria Jr., que estará na Fliparacatu
Aline Macedo - Escritora Conceição Evaristo, que vai estar na Fliparacatu