Lisboa — A ida a Porto Alegre tinha sido muito dolorida para o fotógrafo e arquiteto José Roberto Bassul, 66 anos. Enterrar uma amiga tão querida lhe custava caro. Para aplacar a tristeza da despedida, decidiu visitar um prédio que havia lhe chamado muito a atenção tempos atrás, o da Fundação Iberê Camargo. Por coincidência, naquele dia, ele carregava todo o equipamento de trabalho. Apressou-se em captar, com a sensibilidade que lhe é característica, detalhes do único edifício construído no Brasil projetado por Álvaro Siza Vieira, considerado o maior arquiteto moderno português. Era 2019.
Aquela arquitetura silente, mas cativante, simples, mas carregada de complexidade, provocava uma série de indagações em Bassul. Era incompreensível para ele que um gênio da arquitetura moderna portuguesa só tivesse uma obra no Brasil. Coincidentemente, o histórico do maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer, referência no mundo pela ousadia das curvas e da leveza que deu ao concreto, também registra uma única obra de sua autoria em solo português, e, ainda assim, na Ilha da Madeira, o Hotel Pestana Casino Park. Naquele momento, entre o deslumbre e a inquietação, surgiu a ideia de cruzar o trabalho dos dois gênios separados pelo Atlântico.
Foi preciso, porém, muita paciência. Os planos iniciais de Bassul acabaram atropelados pela pandemia do novo coronavírus. Somente dois anos depois daquela tarde contemplando a obra de Siza, que o fotógrafo conseguiu, enfim, embarcar para a Ilha da Madeira. Ele tinha feito uma reserva de uma semana no hotel projetado por Niemeyer e contava que o clima jogasse a seu favor. As fotos do edifício necessitavam de dias extremamente claros, de céu azul. “Felizmente, o tempo ajudou. Tudo saiu como o planejado, seguindo a linha que me proponho a fazer, de um trabalho de autor, que se vale da arquitetura”, conta.
Pois o resultado do deslumbrante trabalho realizado por Bassul poderá ser visto em uma exposição com estreia marcada para 7 de setembro, na icônica Casa da Arquitetura, em Matosinhos. É lá que estão as obras de Lúcio Costa, que construiu Brasília, doadas pela família do arquiteto. No mesmo local está em cartaz uma exibição que vai até maio sobre a obra de outro mestre da arquitetura brasileira, Paulo Mendes da Rocha. “Siza & Oscar: para além do mar”, com um acervo de 28 fotografias, vai até 14 de outubro, com entrada franca.
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Brasil, o colonizador
“Construí um diálogo visual entre esses dois imensos modernistas, um de expressão mais silente, no caso, Siza, outro, mais eloquente, Niemeyer. Sei que eles se encontraram poucas vezes, mas sempre com muito respeito e admiração dos dois lados”, afirma Bassul, que tem obras espalhadas, entre outros, pelo Museu da República, em Brasília, pelo Museu de Arte Moderna, no Rio Janeiro, e pela Biblioteca Nacional de Paris. “Estamos falando de dois gênios, cada um com sua própria linguagem. Nas licenças da imaginação, eles conversam intensamente. E falam a mesma língua. Não apenas o português, mas o idioma sem fronteiras da poesia”, frisa.
Bassul ressalta que, quando soube da exposição, Siza, hoje, com 90 anos, o recebeu para uma conversa. “Ele me contou, ao longo de mais de duas horas, uma coisa muito curiosa, que, na arquitetura moderna, o colonizador foi o Brasil”, relata. “Siza disse que, nos tempos de estudante, de jovem formado nos anos 1950, o grupo mais promissor que ele integrava da escola de arquitetura no Porto conseguiu uma publicação icônica, ‘A arquitetura moderna no Brasil’. Esse livro, também uma referência para os brasileiros, causou um efeito extraordinário naqueles arquitetos, ansiosos por saber o que se produzia no mundo”, acrescenta.
É importante destacar que, naquela época, o Brasil já tinha uma arquitetura moderna bem madura, que, segundo Bassul, teve como grande marco institucional a construção do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, que abrigou o Ministério da Educação. “Foi esse movimento, de acordo com Siza, que mudou o olhar dele e do grupo do qual ele participava em relação à arquitetura moderna, claro, adaptando os preceitos modernistas à tradição lusitana. E fizeram isso muito bem e são reconhecidos por seus trabalhos”, diz. “Podemos dizer que foi um movimento antropofágico, pela contribuição brasileira absorvida em Portugal”, observa, reforçando que Siza e a irmã dele, Teresa, premiada fotógrafa, confirmaram presença no lançamento da exposição.
A arquitetura moderna mudou a forma das construções em todo o mundo. Até então, as paredes funcionavam como estrutura, ou seja, o piso era pendurado na parede, permitindo a subida de outra base. Na arquitetura moderna, faz-se a estrutura, normalmente em concreto ou aço, e, depois, vem a vedação, as paredes internas e as fachadas. Isso, explica Bassul, permite uma mobilidade para se fazer, por exemplo, um quarto maior ou menor, mudar a sala de lugar. “Essa separação entre estrutura e vedação é um dos princípios da arquitetura moderna de Le Corbusier. Outro é a liberação do solo para os transeuntes, e os pilotis de Brasília são exemplos clássicos disso”, complementa.
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Dramas e contradições
Curadora da exposição “Siza & Oscar: para além do mar”, a pesquisadora Ângela Ferreira assinala, no material de divulgação, que mirar a obra de Bassul a partir de dois pontos do hemisfério “é um convite a um movimento de rotação que requer fôlego, em especial quando atravessados por tanto mar, com todos os seus desejos, dramas e contradições”. Ela afirma que a poética do fotógrafo, simultaneamente contida e desconcertante, reside em conduzir o espectador num vaivém entre as obras de dois dos mais grandiosos arquitetos modernistas do nosso tempo. “Bassul convida-nos a escutar os batimentos cardíacos que marcam o fluxo e os desejos deste movimento transatlântico”, emenda.
Para ela, na travessia proposta pelo fotógrafo, a intenção é provocar sentidos e sobressaltos na linguagem, afastando os visitantes da representação literal e os convidando ao mergulho numa conexão profunda entre os sentidos e a imaginação. “Entre cá e lá, estamos perante uma composição entre lugares, contada através dos traços nuançados de Bassul, que ousa fabular conversas entre Siza e Niemeyer e explorar frações ocultas nas entrelinhas de cada obra”, afirma. O centro nevrálgico da investigação do fotógrafo, como ele mesmo aponta, é “a travessia do mundo concreto das edificações para o território impalpável dos sentidos”.
Na avaliação de Ângela, “Bassul revela uma habilidade única de amalandrar forças opostas: poder e simplicidade, imponência e subtileza, senso público e intimidade, sempre movido por uma força a um só tempo afetiva e transformadora”. Ela acrescenta, ainda, que uma das qualidades mais distintas do fotógrafo, que nasceu no Rio, mas mora em Brasília, é “a ousadia de captar enigmas, num pensamento que constata as formas, as configurações existentes, em pleno equilíbrio entre a razão e a poesia, entendendo a realidade como construção e mergulhando na vertigem da experiência”.
Por isso, acredita a curadora, é impossível não se surpreender com a travessia proposta por Bassul ao cruzar as obras de Siza e Niemeyer, “não reagir perante o enigma da sua obra que, com o seu próprio movimento de rotação, se expande e contagia entre mares e hemisférios, sentindo as vibrações do entorno e a reverberação que as travessias sempre causam”. Bassul é um dos mais premiados fotógrafos brasileiro e autor dos livros “Paisagem concretista”, de 2018, e “Sobre quase nada”, de 2020. Parte de sua obra faz parte de importantes coleções privadas.
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