Foi no dia 11 de agosto de 1973, em Nova York, que ocorreu a festa tida como ponto de partida de uma revolução cultural. Manipulando as viradas de bateria de clássicos do funk e do soul, o DJ Kool Herc, grande fomentador do evento, surpreendeu a todos com a criação de um novo ritmo, que culminou nos nascimentos do rap e da dança break. Somados à expansão do graffiti, esses formatos artísticos formaram a trindade do movimento hip-hop, que, na última sexta, completou 50 anos de resistência.
No Brasil e no resto do mundo, o hip-hop bate na porta nos anos 1980, com a expansão das metrópoles e cidades industriais, também com o crescimento subsequente de periferias urbanas. A cidade de São Paulo foi o grande polo das primeiras manifestações do gênero no país, com artistas como Thaíde, Sabotage e, claro, Racionais MC's, o maior conjunto de rap nacional. "Foi uma virada cultural, um choque", diz Edi Rock, rapper fundador do lendário grupo, em entrevista ao Correio. "No começo, íamos até a estação São Bento onde encontrávamos as informações, revistas, fitas cassetes… circulava dessa forma", recorda. A história do Racionais se mistura com o caminho do hip-hop no Brasil, com a abertura de debates e a formação de uma cena nacional.
No princípio, os primeiros raps tratavam de assuntos leves, tinham a função de divertir e entregar batidas que fizessem os B-Boys dançarem. Porém, como toda manifestação preta e periférica, o hip hop também estava sujeito a lidar com a repressão policial e difamação das mídias e, nesse contexto, surgiram os primeiros raps críticos à sociedade. "Tinham duas vertentes: era a pista, música pra curtir e dançar, como Pepeu, Sampa Crew e Mc Naldinho, e a vertente política, que veio através do Racionais", recorda Edi Rock. "Seguimos as ideias do Thaíde, ele estava um ano na nossa frente e pegamos isso dele, mas a política estava em nós. Tivemos a sacada de falar sobre a realidade das ruas em cima do ritmo, era uma vertente das ruas. O Racionais foi responsável por esse choque cultural", conta.
Com o passar do tempo, o hip hop se desenvolveu e alcançou as grandes massas. Mais grupos surgiram e o rap consciente se fez presente, influenciando diversos artistas dentro e fora do movimento. O Racionais MC's se solidificou e conquistou toda São Paulo e passou a fazer parte dos circuitos de shows da cidade e futuramente do país. "Você via a gente em diversos lugares, nos expandimos, passamos a tocar em outras equipes de baile, quebramos barreiras levando a informação. Mudamos o mapa cultural de São Paulo", lembra.
Raízes sólidas
Fora do eixo do Sudeste, contra muita resistência por parte do mercado fonográfico, o rap também foi capaz de fincar raízes sólidas. "A caminhada até aqui foi dura. É muito recente a época em que muitas casas de show não aceitavam o rap por ser considerado música de favelado revoltado, de gente que supostamente estava fora de um mercado de consumo relevante", atesta Don L, importante rapper de Fortaleza responsável por jogar os holofotes sobre o hip-hop nordestino. "Para a geração antes da minha, ainda era comum grupo de rap consolidado sair do palco algemado por falar mal da polícia. Hoje isso é mais difícil, mas ainda existe muita repressão policial em batalhas de rima nas periferias".
Atualmente, o hip-hop está solidificado na da cultura popular e atinge públicos que não necessariamente fazem parte do contexto preto e periférico. A atual posição do movimento reflete a questão da inserção de pessoas antes excluídas em espaços considerados exclusivistas e inacessíveis. "Isso foi pelo movimento negro. É sobre ocupar espaços, porque também somos consumidores, queremos consumir o que nos identificamos. Queríamos esse progresso, foi uma evolução natural. Hoje temos os artistas, atores e atrizes, a cultura faz parte da favela, formas de capacitação", conclui Edi Rock.
Para Don L, o rap nacional também foi capaz de se transformar com o tempo e assumir uma identidade própria do país, correspondente à realidade dos brasileiros. "Nossa desigualdade social é ainda mais gritante do que nos países do Norte. Marcas estrangeiras que são populares no Norte do mundo, aqui são de luxo. Nossa formação social é diferente, nossas questões raciais são diferentes. O processo de imperialismo, inclusive, se utiliza do próprio rap gringo pra domesticar nossas mentes, mas algumas coisas simplesmente não cabem na nossa realidade. Ainda existe, em nossa cultura musical, pelo menos uma certa autoestima de povo criador e não copiador, que resiste a duras penas, mas resiste. O funk brasileiro, que é rap também, é um exemplo disso", argumenta.
O hip-hop é inclusivo e abre portas. No movimento, as pessoas encontram um lugar próprio e, juntas, derrubam as portas e retiram os obstáculos impostos no caminho. Se houve uma popularização e nacionalização do rap, é preciso ter espaço para todos. "Eu falo do hip hop como transformador de vidas porque ele transformou a minha, mudou a percepção sobre a minha importância dentro da sociedade, sobre o quanto a minha presença, a minha voz, minha arte e meu voto são fundamentais", destaca Drik Barbosa, um dos nomes mais proeminentes do rap brasileiro e uma das mulheres de maior notoriedade no gênero atualmente. "O hip-hop sempre teve essa preocupação muito grande com as questões sociais e raciais, com as nossas lutas e com tantas outras, para que as pessoas vivam plenamente e tenham seus direitos respeitados", continua.
A cantora entende que o futuro do rap é promissor. "Eu enxergo de forma muito promissora os próximos 50 anos do rap e do movimento hip-hop, ampliando cada vez mais a presença da juventude dentro do movimento. Vejo as novas gerações muito engajadas em fazer o movimento se manter vivo, em fazer o rap se manter vivo e acessar cada vez mais lugares e mais espaços", acredita.
E os próximos 50 anos?
Nos anos 2010, o rap já havia se tornado o ritmo mais consumido no mundo e o movimento hip-hop passou a ser incluído na cultura pop. Com isso, diversas variações do rap tradicional surgiram, com destaque para o trap, derivado dos timbres característicos do rap do sul do EUA. A discussão de como o trap chegou ao Brasil ainda está em curso, mas o subgênero se tornou notável após o surgimento de grupos como Recayd Mob e Raffa Moreira. A liberdade melódica e lírica permitiu que os artistas experimentassem novas técnicas e atingissem assuntos diversos. Com o tempo, as gerações se ramificaram tanto que hoje existem diversas classificações dentro do trap.
Contextos de ascensão social e revolta nunca deixaram de ser mencionados nas músicas, porém, atualmente, os artistas têm tratado de outras perspectivas, como por exemplo a ostentação, herdada do funk. "Acredito que por muito tempo foi problematizada a ostentação dentro do rap, muitos não queriam que falássemos sobre a nossa evolução", fala Vulgo FK, um dos artistas da nova geração em maior evidência. "A velha escola quebrou muitos paradigmas para que pudéssemos viver essa realidade. Hoje conseguimos falar e podemos inspirar a molecada".
A relação do funk com trap é um dos fatores mais marcantes da geração atual. Muitos artistas transitam entre os gêneros e afirmam que, independente da batida, o discurso é o mesmo, e entendem o funk como uma sonoridade nacionalizada do rap. "O funk é o nosso hip-hop, é a forma que nos expressamos de verdade por aqui", afirma FK. Hoje, no Brasil, o rap e o trap são os gêneros mais consumidos nas plataformas. Esse marco é um efeito do discurso difundido pelas gerações passadas e pela união com o funk.
Dos becos de Londres, saiu outro estilo de rap de também grande ascensão no Brasil. O grime é um fruto do hip-hop mesclado com ritmos trazidos para o Reino Unido pela diáspora afrolatinocaribenha, cuja mistura com o funk conquistou o coração dos brasileiros. A principal obra que apresentou o gênero para o público nacional foi o Brime! de Fleezus, Febem e CESRV. O EP deu o pontapé e, agora, há um interesse maior por parte dos MCs e do público pelo grime. "A gente nadou contra maré. O trap deu um estouro recente, o boom bap teve o próprio momento e só aí veio o grime e o drill. Foi bizarro, nem a gente tinha dimensão do rumo da prosa", conta Fleezus, que entende seu papel como um dos pioneiros do grime brasileiro. "A gente tem total consciência de que a gente ajudou a pavimentar a estrada que era de terra, para hoje ter a calçada, a valeta, o esgoto e a luz. Quando ninguém queria, a gente foi lá", relata.
O rapper admite que, mesmo com o sucesso que nomes como ele, Febem, SD9 e Puterrier têm conquistado, isso é apenas o começo. "Ainda é uma cena que está engatinhando para o que eu imagino que vai ser, está tudo muito nichado. As pessoas ainda estão conhecendo o som, tentando entender. Ainda tem muito para crescer", analisa o músico, que vê um futuro próspero. "A nossa intenção é que vire um mercado gigante", almeja.
Independente do nome que dão para variações melódicas e rítmicas, no final das contas, é tudo rap. "A pessoa que tenta separar o grime e o drill do rap tem que repensar coisas básicas sobre a música. Drill, grime, jungle, drum 'n' bass... tudo isso é rap, é música que está levando as pessoas a pensarem e refletirem com protesto e mensagem", afirma.
A batida, ou beat, que alavanca diversas composições e artistas, segue a pulsar nos corações das gerações que chegam. Apesar do rap, trap, grime, drill e o funk serem diferentes, eles têm algo em comum: o potencial de impulsionar jovens periféricos, realizar sonhos e, principalmente, salvar vidas. O grave das caixas de som que propagaram esses gêneros por todo o país segue resistente, apoteótico e redentor de todas as mazelas e aflições vindas antes da realidade proporcionada por esse toque ritmado e envolto de poesia, pelo menos para os artistas que estão vivendo do próprio sonho e para o público assíduo e fiel que os acompanha.
Sob o olhar político
Na virada para o atual governo, o hip hop tornou-se um tema muito mais discutido no que diz respeito às políticas públicas culturais. Questionado pelo Correio, o Ministério da Cultura (MinC), liderado por Margareth Menezes, confirmou que o movimento está em pauta por tudo que representa, principalmente para aqueles que estão à margem da sociedade. "A cultura hip-hop possui uma origem social nas classes mais vulneráveis das periferias das cidades. São grupos historicamente colocados à margem, cuja expressão e fazer cultural proporcionam agregação, pertencimento, identidade e oportunidade de inserção social, em especial para a juventude negra que é o DNA dessa comunidade que comemora seus 50 anos de construção", afirmou a pasta.
Entre as ações que o governo tem feito estão: um inventário participativo com auxílio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que o hip-hop seja reconhecido como patrimônio imaterial; um decreto em tramite para valorizar o movimento; um projeto de lei para criação do Dia Nacional do Hip-Hop; a abertura de um edital para premiação de iniciativas comunitárias priorizando a Política Nacional Cultura Viva, que já tem em sua rede a participação do movimento hip-hop; e pela primeira vez empreendedores do hip-hop foram incluídos em uma seleção pública para negociações no exterior na 7ª edição do Mercado de Indústrias Culturais Argentinas (MICA), a edição brasileira do evento também está com edital aberto até o dia 17. Sem contar que o movimento está inserido na Lei Paulo Gustavo e na Aldir Blanc 2 para distribuição de recursos. O movimento também é histórico na Câmara dos Deputados, onde protagonistas conseguiram articular uma Frente Parlamentar com mais de 210 assinaturas, um marco no Congresso, para fomentar o hip-hop.
No DF, o deputado distrital Max Maciel (PSol) também se atenta para potenciais políticas públicas de fomento ao hip-hop. "No próximo dia 18 de agosto, o presidente Lula assinará um decreto reconhecendo a importância desse movimento cultural. A Construção Nacional da Cultura Hip-Hop foi fundamental nesse processo, entregou um dossiê nacional ao Iphan para dar início ao processo que reconhece o hip hop como patrimônio cultural imaterial do país. A lei, de minha autoria aqui no DF, também institui a criação da Semana Distrital do Hip-Hop e assegura a realização dessas atividades no território do DF, preferencialmente na segunda semana do mês de novembro, em convergência com o Dia Mundial do Hip-Hop, celebrado em 12 de novembro, além de prever que as escolas da rede pública de ensino e as unidades de internação de menores infratores realizem atividades sobre a cultura hip hop, tais como oficinas, debates e aulas temáticas", diz.
O MinC afirmou estar comprometido em "fazer valer o exercício e o acesso aos direitos culturais para toda a sociedade e o hip-hop brasileiro, seus agentes culturais, seus mestres e jovens, incluindo mulheres, indígenas, LGBTQIA , pessoas com deficiência, dentre outros, são parceiros essenciais nessa missão e estão em todo o território nacional, com experiências que valorizam a diversidade cultural e a inclusão social". "O Brasil deve conhecer melhor a potência desse movimento, seus elementos estruturantes, sua história, transformações e imensa inserção na sociedade. Além do horizonte que estão a construir. O compromisso é do Governo Federal e segue com desdobramentos importantes, pois eles estão nas comunidades, no esporte, nos espaços culturais, nas escolas, nos Centros de Atenção Psicossocial, nos pactos pela vida, nos empreendimentos, onde buscam reconhecimento da sua atuação", complementa.
Colaborou
Davi Cruz*