Cinema

Documentário sobre Julian Assange faz apelo à libertação da verdade

Pai de Julian Assange, o fundador do wikiLeaks, John Shipton (foto), em entrevista ao Correio, desabafa: "É impossível para qualquer ser humano, de toda e qualquer parte do mundo, progredir dentro de um espírito de ignorância "

John Shipton:
John Shipton: "Julian se modificou diante das questões da perseguição e dos impulsos maliciosos de muitos" - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Ricardo Daehn
postado em 27/08/2023 07:00

Aos 52 anos, Julian Assange, o mais célebre australiano quando o tema é o do aprisionamento político, enfrenta um emaranhado de pressão emocional capaz de engatilhar assumidos e públicos impulsos suicidas.

Muitos dos dramas do fundador (em meados dos anos 2000) do WikiLeaks vêm a público, concentrados no longa documental

Exausta com os trâmites para travar a extradição do marido para os Estados Unidos (onde estaria sujeito a julgamento que pode impor 175 anos de prisão), a esposa de Julian, Stella Moris, igualmente ganha destaque no filme. Preso em Belmarsh (na Inglaterra), passados sete anos como refugiado na Embaixada do Equador (no Reino Unido), Assange segue sob holofotes do mundo. Ele, que fundou o aparato que, aos milhares, propagou documentos confidenciais, é investigado pelos Estados Unidos, na condição particular (e individual) de espionagem. Com Assange, paira o brilho de uma organização (ainda ativa) desinteressada em meias-verdades. Muitos, pela ação dele, conheceram detalhes da prisão militar de Guantánamo (Cuba) e crimes relacionados ao Exército norte-americano, além de ataques a civis embutidos na ocupação do Iraque. 

De certo modo, a tecnologia arruinou parte da vida do seu filho. Mas, sob outro prisma, ela trouxe algum auxílio para a atual situação dele?

É uma boa pergunta: uma vez que, sem a tecnologia contemporânea, sem as redes sociais, nós não chegaríamos a lugar nenhum. Os grupos que cercam o Julian, especialmente no Facebook, totalizam às vezes 8 milhões de visualizações. A tecnologia possibilita a reação imediata. De pronto, os conteúdos ficam acessíveis e as pessoas podem envolver-se nas mais variadas questões, opinar acerca de tópicos, entre as quais os relacionados à liberdade reservada para Julian.

Julian contou com apoio religioso ou espiritual? Em que circunstância?

Num primeiro momento em que Julian foi para a prisão, em 2019, depois de ser arrastado de dentro da embaixada (do Equador em Londres). Ele ficou extremamente deprimido. Foi quando um padre católico, na prisão, serviu como grande ajuda e trouxe até sustentação para ele, em termos de assistência espiritual.

É sabido que Julian já esteve à frente de produtos audiovisuais como entrevistado ou mesmo como produtor. Vocês já levaram em conta a investida na ficção para popularizar ainda mais a causa?

Essa pergunta gera uma situação que leva à lida com uma faca de dois gumes. O Departamento de Estado norte-americano tem ficcionalizado a vida de Julian, e segue fazendo isso, com grande regularidade. Em todo âmbitos, nós (familiares) nos atemos ao que é verdadeiro. Depois que Julian vier a ser libertado, acho que poderá ser uma ideia interessante escrever algo, algum livro ou algo assim. Por ora, os fatos que cercam o encarceramento e a perseguição de Julian já se mostram suficientes (para o terreno da ficção).

O senhor, no Brasil, tem expectativas de encontros com autoridades?

Me encontrei com o presidente Lula, por duas vezes. Eu o encontrei em Genebra, ele foi muito cortês e empático. Lula emana muita autoridade e poder. Nos encontramos novamente em Paris e, de novo, ele foi generoso e prestativo. Isso é o suficiente: qualquer tipo de declaração que ele faça em apoio à liberdade do Julian. Minha extrema preocupação está em agradecer tudo que Lula já fez, e, realmente, não posso pedir mais do que isso.

O quão próximo e distante o senhor ficou de seu filho? Há algo irreparável quando o analisa, após a prisão?

Eu passei a me familiarizar e compreender mais a natureza do Julian, numa comparação com antigamente. Acredito que nessas circunstâncias que mudaram bastante nos últimos 10 anos, ele se modificou diante das questões da perseguição e dos impulsos maliciosos de muitos. Acho que, sobre alguns aspectos, percebo melhora em pontos (da convivência), a partir do restabelecimento de nossa intimidade. A depender do esforço que é feito, em face à defesa dele (ou não), Julian tem comportamentos (e tendências) de se acobertar, de tentar se encobrir.

Com tantos temas duros, na passagem pelo Brasil, é possível o senhor, um arquiteto, contemplar a obra de Oscar Niemeyer, em Brasília?

Assim como estudei Roberto Burle Marx, estudei Niemeyer: eles são personalidades importantes na história da arquitetura moderna. Sempre foram citados como exemplares na construção de uma cidade moderna. Quanto ao Brasil, e acredito que isso se estenda à América Latina, vejo que é um país que consegue emanar o princípio de uma nova civilização. Se produz um novo jeito de viver, de fato. A gente consegue presenciar o crescimento de uma grande árvore, em que as flores estão despontando, e tudo, sob circunstâncias muito magníficas. Realmente, estou torcendo e esperançoso de que a América Latina venha a ser representada pelo Brasil, no Conselho de Segurança da ONU. Acho bastante vergonhoso que, em meio a cerca de 600 milhões de habitantes latinos, não haja representação. Se trata de déficit a ser sanado.

Em termos de educação, princípios e ética — como um pai — crê ter sido efetivo, ao ver o comportamento e a situação de Julian. Ele traz consigo alguma função social, neste mundo globalizado?

As circunstâncias em que Julian está sendo processado são um problema de alcance global. O resultado (de tudo) estará em pessoas comuns terem acesso (ou não) a todos os tipos de informação e poderem construir seu juízo a partir disso: o conhecimento. Estender esse conhecimento as suas famílias e comunidades incide numa capacidade singular — numa problematização global. Então, é impossível para qualquer ser humano, de toda e qualquer parte do mundo, progredir dentro de um espírito de ignorância. O grande mérito do wikiLeaks é fornecer informações verídicas, e é nisso que está a contribuição para a formulação de políticas. O golpe de mestre e mesmo os pecados de qualquer país derivam das suas pessoas — não é algo que caia do céu. Está tudo formulado no coração de cada homem e mulher, das pessoas que constituem cada uma das nações. Isso é uma coisa bem simples, mas é algo vital: algo a ser compartilhado e ser petrificado, substancialmente, na mente de cada um.

Em que medida Julian tem sido revolucionário e crê que nos atos dele, ele reescreveu ou revigorou a liberdade de expressão no jornalismo?

Meu entendimento é muito claro. O sentimento e a capacidade de reunir e integrar à tecnologia domínios reais e verdadeiros nortearam Julian. Cada blog que tenha uma sessão de comentários se transforma em um fórum de conversação. Nisso, se consegue estabelecer o que é verdadeiro e há a segurança nesta verdade (avalizada). O que fazem as pessoas saudáveis, no estabelecimento do que é melhor para todos, é se nortearem por este eixo.

Você percebe que a democracia entrou em colapso, diante de governos que tentam sufocar aspectos positivos que dela emanariam?

Nos tempos modernos, a democracia tem se transformado a partir das pessoas. São elas quem outorgam o potencial da democracia. Acredito que (na relevância do caso do Julian), tanto o Reino Unido quanto os Estados Unidos têm dado exemplos pobres de democracia para o resto do mundo. A maioria dos povos segue tendo seus representantes — o que é apenas uma forma de democracia, algo que nunca poderá ser generalizado. É importante diferenciar os governos, em se tratando do sistema republicano (vigente nos Estados Unidos). A Austrália é uma federação, trazendo à tona meios muito diferenciados de democracia. Há participação de pessoas no processo. Eu não consigo visualizar como um país pode avançar sem entendimento de que a democracia decende e é ativada por pessoas, numa constante. Existem formas diferentes de democracia, mas não se pode ir ao shopping comprar o que emana do povo. Corações, pecados e temperamentos de pessoas moldam a democracia, por fim, muitas vezes, encenada (e materializada) por cada governo.

 


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