Poesia

Livro reúne poetas marginais do DF em edição comemorativa

Livro celebra a poesia marginal com poemas de oito autores que ajudaram a criar um gênero e fazem parte de uma época ancorada na liberdade criativa

Eles começaram a fazer poesia nos anos 1970  e pregavam a liberdade na criação dos versos e dos livros -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Eles começaram a fazer poesia nos anos 1970 e pregavam a liberdade na criação dos versos e dos livros - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Nahima Maciel
postado em 22/08/2023 10:08 / atualizado em 22/08/2023 10:18

Eles tinham entre 16 e 20 anos, não se prendiam a ditames acadêmicos e muito menos às regras da censura. E pouco se importavam com um acabamento sofisticado. A satisfação vinha de outras searas, de vender os "livrim" pessoalmente, de conhecer o leitor, de dominar a arte da informalidade, seja no texto, seja na lida com as pessoas. Os poetas marginais bebiam na fonte da simplicidade, o que não quer dizer desleixo nem negligência, e do questionamento constante das regras. É um pouco a esse universo que a geração brasiliense do mimeógrafo retorna em Dos 70 aos 70, livro composto de vários "livrim" que um time de oito poetas da cidade lança hoje, com direito a récita e declamação, no Beiras Cultural do Bar Beirute, na 109 Sul. Durante o lançamento, o público terá direito a celebração com participação do Liga Tripa e do músico e poeta Renato Matos, além de homenagem a Paulo Tovar.

José Sóter foi quem teve a ideia e quem reuniu o time. "Eu queria fazer uma antologia referencial que remetesse à década de 1970, mas também trouxesse suas consequências. Tudo que começa, evolui. Começamos jovens, fizemos nosso cotidiano sem compromisso com o que existia nem com o que ia existir. Mas a permanência nessa atividade acaba formando um caminho", explica o criador do selo independente Semim e autor de Navegante ao léu. Fazem parte do livro Angélica Torres, Noélia Ribeiro, Vicente de Sá, Nicolas Behr, o próprio Sóter, José Carlos Vieira, Luiz Martins e Francisco K. Saraiva, com direito a um texto de Wélcio Toledo, doutor pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de poesia marginal.

No projeto idealizado por Sóter, cada poeta teria um espaço no qual poderia criar livremente. O conjunto resultaria em vários livros, um para cada participante. Assim, todos ficaram livres para selecionar os próprios poemas e para investir na criação de um projeto gráfico autoral. "Cada poeta teve espaço suficiente para colocar uma produção, um extrato da sua obra, e também exercer sua liberdade de montar o livro da forma que quisesse. Como a gente fazia na época", avisa o editor. Os poetas tiveram direito a 16 páginas, com uma dedicada à apresentação e as demais, aos versos. "O que me motivou foi ver que as pessoas que estavam fazendo poesia na década de 1970, hoje, por volta dos seus 60/70 anos, continuam produzindo, sendo referência", explica Sóter.

Com 12 livros publicados, o marginal Vicente de Sá, 66 anos, escolheu um conjunto de 15 poemas para figurar em Dos 70 aos 70. Cinco são de uma leva antiga, da época dos mimeógrafos e da peregrinação pelas ruas para vender as edições, outros 10 são mais recentes. Quando olha para o conjunto, consegue fazer uma avaliação do desenvolvimento da própria poesia. "Eu acho que não só a temática mudou, mas passei a falar menos de mim e mais de outras coisas, da vida em volta, da cidade, e aprimorei a linguagem também um pouco. Fiquei melhor de poesia, mais afiado. Com o tempo a gente tende a melhorar, pelo menos para algumas coisas", diz.

Noélia Ribeiro conta que selecionou poemas de várias épocas, inclusive alguns inéditos e outros publicados na década de 1970. "A antologia conseguiu unir poetas que publicaram seus primeiros livrinhos a partir do surgimento da Geração Mimeógrafo e poetas responsáveis pelo movimento. Até hoje encontramos escritores que se dizem influenciados por essa produção, inclusive fora de Brasília", diz Noélia, que tem cinco livros publicados, incluindo Expectativa, produzido com mimeógrafo. Angélica Torres conta que foi publicada pela primeira vez em 1978, num zine de poemas editado por Luiz Martins e rodado em mimeógrafo. O poema se chamava Saideira. "Ou seja, já entrei saindo... porque meu 1° livro, Sindicato de estudantes, fiz em off-set poucos anos depois (eu tinha formação de editora), mas com a linguagem típica da época", destaca. "Poder estar de novo com esses poetas, quase 50 anos depois, é uma alegria. Sempre fui meio outsider, mas venho dessa geração mesmo." Para o livro, ela escolheu poemas que não representam a linguagem da poesia marginal. "O tempo passou e os escolhidos (datados por ano, desde a década de 1980 à atual), refletem inconformismo e pessimismo, resultados do estresse da pandemia e do não-governo dos últimos anos, em que eu estava, quando selecionei os poemas", explica.

Nicolas Behr brinca que o livro vem "40kg depois". "Mas alguns mantiveram a linha", repara. "Essa antologia é um túnel do tempo, é um reencontro dessa moçada, que é jovem. Fiz 65 anos, tem gente nos 70, mas acho que o espírito da informalidade continua nessa geração rock'n'roll, continuamos rindo de nós mesmos, informais, antiacadêmicos e acho que isso é uma coisa que vai nos caracterizar para sempre e que está muito nessa antologia", avalia. Behr escolheu versos "difíceis" para figurar na antologia. "São 15 poemas de um livro inédito, meu livro mais difícil, pessoal, sobre minha relação difícil com meu pai", revela. Meu querido bruto foi escrito nos últimos três anos e, agora, o autor tenta encontrar uma editora para publicá-lo. "Mas não estou encontrando, ninguém quer. Porque acho que falta poesia nesse livro, tem muita porrada, mas é um livro amoroso, não um acerto de contas, é uma história de amor que não aconteceu entre um pai e um filho, apesar de nossos interesses muito próximos. É um livro pesado, forte", diz.

Produção

O poeta Wélcio Toledo faz as apresentações dos colegas no livro. Pesquisador da poesia marginal e autor de uma tese de doutorado sobre o tema, ele garante que a poesia marginal envelheceu muito bem e ainda carrega elementos atuais que nada deixam a dever para a produção contemporânea. "É interessante trazer esse momento para hoje, porque acho que essa geração dialoga muito com o que está acontecendo hoje, tanto culturalmente quanto politicamente", diz. "Ainda continuamos com uma poesia de resistência. Sempre foi essa a marca, de uma certa petulância no sentido bem positivo, estamos aí fazendo, lendo o mundo do nosso jeito."

O pesquisador aponta a ironia, o pastiche, a metáfora, ao mesmo tempo que a linguagem mais informal e coloquial como características dessa produção. No entanto, Wélcio lembra que, ao contrário do que muitos pensam, não é uma poesia feita sem conhecimento. "É uma poesia muito trabalhada", diz. Na década de 1970, uma das metas era driblar a censura, então investia-se muito na metáfora, no sarcasmo e até na melancolia. "Hoje é uma poesia que namora com a prosa poética, feita na base da forma com o concretismo, namora com o parnasianismo. É uma poesia que tem uma liberdade na forma, mas não é feita de qualquer jeito", avisa Wélcio.

 


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