Organizada pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, numa cerimônia carioca na próxima quarta, a 22ª edição do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro trará homenagem a uma figura de expressão nacional: o cineasta Vladimir Carvalho, 88 anos. Depois do hiato no funcionamento do curso de cinema da UnB, em meados dos anos 1960, foi Vladimir, ao lado de Fernando Duarte, Geraldo Sobral, Rogério Costa Rodrigues e Arnaldo Carrilho, quem retomou o projeto num potente esforço. "O curso funcionou, inicialmente, por obra e graça de Paulo Emílio Sales Gomes, com outros colegas, sob ação do Darcy Ribeiro, mas foi interrompido por conta da ditadura, com a chamada diáspora da UnB. Professores pediram demissão e tiveram que abandonar tudo, por pressões", explica Vladimir, hoje professor aposentado, mas sempre reverenciado pelos alunos.
Diante de tanta celebração, uma situação, entretanto, tem tirado o sossego de Vladimir. "Se fosse um filme, seria o mais difícil da minha carreira. Mas a minha dedicação inteira atual está na solução da problemática no destino para o acervo (do cinema brasiliense) que coletei e do qual fui guardião por 52 anos", conta, em entrevista ao Correio, citando a eterna (e desvalorizada iniciativa pessoal) Fundação Cinememória. "É um acervo apreciável e, visceralmente, importante. Acho injusto o descaso para com a memória e a formação cultural daquilo que existe em Brasília", comenta.
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Confira a entrevista
Qual o segredo da tua vitalidade?
Sou muito bafejado pela sorte. Durante a ditadura, fui desempregado. Por questões políticas, saí fora. A verdade é que, depois, no meu encontro com os jovens alunos, mais aprendi do que ensinei. Tinha um respeito muito grande: eu não tinha experiência como professor. Falo do curso de cinema da UnB, em 1970, quando cheguei. Cheguei a convite do Fernando Duarte para uma tarefa quase impossível de fazer: o restauro do primeiro curso de cinema regular do Brasil que foi implantado por Paulo Emílio Sales Gomes, Nelson Pereira dos Santos e Jean-Claude Bernardet. Meus alunos me apresentavam a possibilidade de eu continuar na lida no campo de batalha como professor. Aquilo injetava uma energia. Foi a fé no ofício: acreditava no fazer cinema, e algum tempo aquilo foi uma novidade na minha trajetória. Coloquei-me a serviço dessas pessoas, inclusive, algumas delas, que estavam dispostas, foram incluídas no meu trabalho. Houve muitos colaboradores, e foi uma relação muito de troca. Até hoje, frequento esporadicamente a UnB, mas estando aposentado. Cheguei aos 88 anos, não foi de graça — foi dessa convivência, absolutamente salutar.
Como está o teu acervo da Fundação Cinememória?
Não existe o acervo do Vladimir. Meu acervo pessoal deve caber em uma caixinha de sapatos. O que existe é o acúmulo, durante 52 anos. Acumulei nesta cidade, na W3-Sul, numa casa de dois pisos, tudo o que foi referência, desde fotografias, equipamentos, anotações, recortes, jornais, publicações. Tenho mais de 1000 livros sobre cinema, dos 5 mil que existem na casa. Tenho meia tonelada de equipamentos que ficaram obsoletos, diante da revolução tecnológica. Não é nenhuma metáfora: há meia tonelada dentro daquela casa. Tem exposição de fotos... Tudo lá é reflexo da atividade cinematográfica em Brasília, e só faz sentido se ficar na cidade. Tenho originais: uma carta do Glauber Rocha, outra do Mário Peixoto, tenho livros originais de José Carlos Avellar. Uma coleção enorme de cartazes, de fotos, tem muito material do Festival de Brasília.
O que falta com relação ao resguardo do material?
Falta sensibilidade aos poderes públicos. O problema é que, com 88 anos, quase 89 anos, não sou mais criança, e ninguém nasceu para semente: um dia, você parte, faz aquela viagem que ninguém quer fazer (risos). Diariamente, ofereço, de bandeja, esse acervo para que seja acolhido, seja em qual instituição for, para ser guardado e preservado. Não peço nada em contrapartida, é zero custo! Em qualquer país, em qualquer cidade seria (levado em conta). Queixo-me das instituições. A função pública tem obrigação constitucional com a preservação da cultura e da memória. Fiz um trabalho que deveria ser respeitado, e o respeito deveria ser a perpetuação — não é homenagem a mim —, mas haveria justiça na aceitação, na acomodação e no acolhimento de algo que fará falta na memória da nossa capital.
Como percebe o desfiar da tua obra?
O sumo, o substrato da minha produção em cinema alternou entre o campo e a cidade. O primeiro documentário de longa-metragem foi O País de São Saruê (1970), fruto de uma experiência no Nordeste estendida por cinco anos. A minha base é a base do campo. Quando eu digo o campo, digo a reforma agrária; a exploração do homem pelo homem, por conta da posse da terra; a escravização temporária, que persiste. A minha temática virou, em Brasília, uma temática também da cidade, porque eu descobri aqui como centro nervoso do Brasil por ser o centro político, onde é resolvida toda a problemática nacional. Vi que aqui pulsavam várias contradições. Como a construção de Brasília ser motivo de uma chacina de trabalhadores e que resultou no filme Conterrâneos velhos de guerra. Depois, descobri uma certa rejeição ao trabalho de Darcy Ribeiro com a UnB, e filmei, falando como quase foi destruída a experiência acadêmica, que, por fim, se fortaleceu (no longa Barra 68). Completei uma trilogia. Como debrucei sobre a cultura de Brasília, vi a novidade musical. Aqui não existia uma cultura musical, e, de repente, não foi o samba, não foi a catira, não foi o maracatu — foi o Rock Brasília. Esse é o fruto da cultura brasiliense (nisso veio o longa Rock Brasília). Fiz Vila boa de Goiás, Quilombo...
Você tem um projeto em andamento?
Tenho um filme começado, antes da pandemia, que seria uma biografia de um rio. Cheguei a fazer as primeiras entrevistas sobre a transposição das águas do São Francisco. Seria um épico sobre o impacto do que vai significar, porque é uma obra incompleta ainda. Posso, diante disso, retornar e fazer esse filme. Mas, de imediato, tenho ido na (fundação) Cinememória diariamente. Durmo e acordo, e vou lá para espanar, varrer e afugentar a poeira, já que existem equipamentos sensíveis que não podem ficar expostos a ácaros e poeira. Cuido ainda, poeticamente, do meu jardim, que eu faço por conservar.
Quais os personagens que te impulsionam?
Tem uma paixão, sem nunca ter conhecido ou visto, por José Lins do Rego. Até hoje, meu pai parece dizer coisas em meus ouvidos — ele tinha 39 anos, e eu, 14, quando ele faleceu. Meu pai é uma permanente entidade, apesar de ser agnóstico, é como se ele sugerisse uma pausa e me convencesse de algo. Ele quem me educou, um homem com uma voracidade: ele lia todos os jornais. Dia de domingo, era um festival de jornais pela casa toda! Ele (com livros de José Lins do Rego), com O menino de engenho e Doidinho (que se passa em Itabaiana, onde nasci), abria as páginas — não existia televisão à época, falo dos anos 40, quando o rádio só ia até um horário da noite — e lia, e eu ficava fascinado com aquele menino (do romance) que surgia. Ele pegava o trem sozinho, ia para outra cidade. Como ele era capaz daquilo? Eu era menino também, e meu pai (Luis Martins de Carvalho, o mestre Lula, entalhador e escultor que escrevia em jornais) forjou isso em mim: sou produto filial e visceral do meu pai, com as ideias até políticas dele.
O teu avô, pelo que comenta, também foi muito influente...
Eu sou produto desse avô também, que foi extraordinariamente marcante: com ele. aprendi do sertão. Ele era um artesão do couro, fazia de tudo: sela de cavalo, arreios... Os vaqueiros frequentavam a casa dele e pareciam verdadeiros centauros. Eu vi aquilo na casa do meu avô. Uma vez, pedi uma miniatura de peixeira entalhada, uma preciosidade. Fui para minha casa, e meu pai me perguntou o que era aquilo no cós da minha calça... Ele confiscou a pequena peixeira (risos) e disse para minha mãe: "A gente tem que dar um jeito de tirar este menino daqui". Do ambiente limitado, numa cidade do interior. Quando vi, estava na casa de parentes no Recife, numa metrópole. Eu tinha 9 anos de idade. Minha formação foi interrompida, digo, minha formação de matuto (risos). Foi no Recife que eu vi, para se ter ideia, a chegada do primeiro navio que trouxe os combatentes da FEB que chegaram da Itália. Houve carnaval fora de época, diante da vitória dos aliados na Europa. Foi minha formação, no bairro da Água Fria. Para você ter ideia: uma vez, me mandaram comprar o pão. Voltei dizendo ter visto um homem falando um monte de coisas, de cima de um monte de paralelepípedos. Era o comunista Gregório Bezerra, e eu acabei militando no partido. E hoje sou isso...
Estes conhecem Vladimir
"A inquietação formal que anima a estrutura narrativa de O País de São Saruê, a experimentação tonal de Vestibular 70 ou o tratamento sonoro de A pedra da riqueza, apenas para ficar em alguns exemplos, afastam a obra de Vladimir Carvalho de qualquer semelhança com o cinejornalismo e a projetam para a esfera do ensaio documental. O trabalho do diretor caracteriza-se também por uma criativa reapropriação de materiais de arquivo, com os quais elabora uma complexa, embora cristalina, escrita de imagens. Típica dessa maestria é a maneira como ele reconfigurou as cenas filmadas por Eugene Feldman em Brasília segundo Feldman, ou como construiu novas camadas de sentido para as imagens da história de Brasília em Conterrâneos velhos de guerra. Consciente do princípio básico de que uma imagem cinematográfica só ganha sentido quando articulada com outras imagens e com uma faixa sonora, ele adotou a edição crítico-dialética como ferramenta principal."
Carlos Alberto Mattos, escritor e crítico de cinema
"Eu estava quieto, no meu canto, e ele quis minha ajuda, adolescente, para filmagens. Do meu quarto, eu ouvia sobre plano, contra-plano, plongé e câmera fixa, mesmo sem entender, enquanto ele conversava com Linduarte Noronha (de Aruanda, na fase do roteiro) que fundou o documentário moderno no Brasil. Num plano meio entre o real e o imaginário, divagava sobre a gramática das palavras que eu desconhecia. Com a primeira etapa das filmagens de O País de São Saruê, Vlad me aplicou no cinema e no sertão. Quando eu estudava numa escola de design carioca, ele me chamou para visitar nossa mãe e fazer um filme, ou vice-versa. Quando hesitei, ele disse: "Se você errar — você é meu irmão! —, não vou contar pra ninguém!'. Com Incelência para um trem de ferro, tive o aval do meu irmão idealista, visionário, inteligente e humanista. Ele trouxe norte e foco para a minha vida. Ele me colocou numa estrada, e entendi as ramificações, as bifurcações e os cruzamentos, que, por fim, formam a vida. Me aproximou e me tornou dependente da substância que é o cinema e, cuja curo, se exite está na prática."
Walter Carvalho, diretor de fotografia e irmão de Vladimir
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Estes conhecem Vladimir
"A inquietação formal que anima a estrutura narrativa de O País de São Saruê, a experimentação tonal de Vestibular 70 ou o tratamento sonoro de A pedra da riqueza, apenas para ficar em alguns exemplos, afastam a obra de Vladimir Carvalho de qualquer semelhança com o cinejornalismo e a projetam para a esfera do ensaio documental. O trabalho do diretor caracteriza-se também por uma criativa reapropriação de materiais de arquivo, com os quais elabora uma complexa, embora cristalina, escrita de imagens. Típica dessa maestria é a maneira como ele reconfigurou as cenas filmadas por Eugene Feldman em Brasília segundo Feldman, ou como construiu novas camadas de sentido para as imagens da história de Brasília em Conterrâneos velhos de guerra. Consciente do princípio básico de que uma imagem cinematográfica só ganha sentido quando articulada com outras imagens e com uma faixa sonora, ele adotou a edição crítico-dialética como ferramenta principal."
Carlos Alberto Mattos, escritor e crítico de cinema
"Eu estava quieto, no meu canto, e ele quis minha ajuda, adolescente, para filmagens. Do meu quarto, eu ouvia sobre plano, contra-plano, plongé e câmera fixa, mesmo sem entender, enquanto ele conversava com Linduarte Noronha (de Aruanda, na fase do roteiro) que fundou o documentário moderno no Brasil. Num plano meio entre o real e o imaginário, divagava sobre a gramática das palavras que eu desconhecia. Com a primeira etapa das filmagens de O País de São Saruê, Vlad me aplicou no cinema e no sertão. Quando eu estudava numa escola de design carioca, ele me chamou para visitar nossa mãe e fazer um filme, ou vice-versa. Quando hesitei, ele disse: "Se você errar — você é meu irmão! —, não vou contar pra ninguém!'. Com Incelência para um trem de ferro, tive o aval do meu irmão idealista, visionário, inteligente e humanista. Ele trouxe norte e foco para a minha vida. Ele me colocou numa estrada, e entendi as ramificações, as bifurcações e os cruzamentos, que, por fim, formam a vida. Me aproximou e me tornou dependente da substância que é o cinema e, cuja curo, se exite está na prática."
Walter Carvalho, diretor de fotografia e irmão de Vladimir
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