CONVERSA COM O ZÉ

Rappers X Câmbio Negro e Japão Viela 17 falam sobre as raízes do hip-hop

Os artistas, nascidos em Ceilândia, abordam a importância do hip-hop para denunciar violência, a evolução das letras e da música desse gênero nos últimos anos

Ana Luiza Moraes*
postado em 01/08/2023 06:00 / atualizado em 01/08/2023 12:34
X Câmbio Negro (e), Japão (Viela 17) e José Carlos Vieira
 -  (crédito: Reprodução/CB)
X Câmbio Negro (e), Japão (Viela 17) e José Carlos Vieira - (crédito: Reprodução/CB)

O primeiro episódio do novo podcast do Correio, Conversa com o Zé, será lançado nesta terça-feira (1°/8) e recebeu os rappers X Câmbio Negro e Japão Viela 17. Conduzido pelo jornalista José Carlos Vieira, o bate-papo abordou as raízes do hip-hop e a evolução das letras e da música desse gênero nos últimos anos. Os convidados, nascidos em Ceilândia, compartilharam suas trajetórias e desafios como artistas periféricos das primeiras gerações do rap.

No próximo 11 de agosto, serão celebrados 50 anos da cultura do hip-hop, que engloba grafite, música, estilo de vida, além de visão de mundo. O que vocês esperam para esse dia?

X Câmbio Negro — Esses 50 anos são um marco na história do hip-hop mundial, são 40 anos aqui, no Brasil. Estamos juntos desde o início do hip-hop. É (um momento) muito importante, várias ações estão sendo tomadas e estamos conquistando algumas vitórias. O deputado distrital Max Maciel (PSol) conseguiu aprovar que o hip-hop é patrimônio imaterial do DF, e agora querem aprovar uma lei federal — o movimento hip-hop são: rap (ritmo e poesia), grafites (assinaturas/arte urbana), Dj's e Mc's, e street dance. Isso é muito importante para nós, e eu digo todos nós cidadãos, não só das pessoas ligadas ao hip-hop. Mas a população em si, jovens, idosos, crianças. O hip-hop ajudou a salvar a vida de muita gente. É arte, é cultura, é entretenimento, mas também é conhecimento e sabedoria. Para a gente, é muito gratificante.

Japão Viela 17 — Eu parto dessa mesma ideia, mas sinto algumas faltas. Sou aquele cara que fica observando. Nós temos aí 50 anos sendo comemorados mundo afora. E a gente vai vendo algumas coisas que são feitas lá fora que, infelizmente, ainda não acontecem aqui no Brasil. Mas acho que é um momento muito especial. Eu acredito muito na raiz. A raiz que leva o nutriente para a árvore. Se você não tem uma reserva especial para as pessoas que estão ali desde o início, a árvore vai crescer sem frutos. Se tiver frutos, vai nascer podre. (O hip-hop) Está caminhando? Está, mas de todo o jeito caminharia, pois a forças desses artistas não deixaria retroceder. Nós começamos do zero, do nada. Somos do tempo em que falavam que um preto de comunidade jamais conseguiria gravar um disco, porque era muito caro. E gente bateu de frente, correu atrás. Frequentava estúdios de madrugada, porque era o horário que era barato e não tínhamos condições de pagar o horário comercial. E aqui estamos. Isso tem que ser visto com bons olhos.

A gente tem que saber dessa estrada, porque não foi sempre tão fácil quanto é hoje. O que vocês esperam dos governantes em relação a esse elemento cultural que é o hip-hop?

X Câmbio Negro — Os gestores, especialmente os públicos, têm que entender que investir em cultura não é gasto, é investimento. E também não é favor. O dinheiro está aí, e somos nós que pagamos. Isso é imposto pago pelo povo. Pagamos para ter saúde, educação, segurança, e pela cultura também. A gente sempre esteve às margens, sempre fomos os marginais. Os governantes têm que entender que nós estávamos aqui antes de eles chegarem, e vamos estar depois que saírem. A gente aguentou a repressão, a falta de grana, falta de espaço. E hoje também temos que aguentar a falta de likes. Porque quem não tem muitos likes nas redes sociais, não é chamado para os festivais. A galera acima de 300, 400 mil seguidores, é lembrada. Mas nós não existimos. Um gestor tem que entender essas coisas, quem tem uma história, uma ideologia, um sentimento. Infelizmente, não estamos nos holofotes. Mas a gente continua aí. Quando a moda passar, ainda estaremos aqui.

Japão Viela 17 — O hip-hop é tão importante que se tornou um método de ligação. Se não existisse, qual a ligação que teríamos hoje com a cultura do Plano Piloto? Hoje o rap e o rock são irmãos, o rap e o reggae também são irmãos. Foi o hip-hop que fez essa ligação. Saiu das periferias e das comunidades, e aqui, no centro (da capital do país) se fez a conexão, a coletividade. Quando você vê o Câmbio Negro com uma banda de rock superfamosa, por exemplo, isso cria uma ligação e faz com que as pessoas possam ter acesso. A responsabilidade do hip-hop em todo o Brasil foi muito grande. E parece que a nossa luta continua a mesma. A gente luta para mostrar a arte, e hoje a gente também luta pelo acesso à tecnologia digital. Nós ainda estamos aprendendo como colocar uma música em plataformas digitais, como distribuir digitalmente. Isso, para gente, é tudo muito novo. 

Vocês são conhecidos no Brasil todo, e criaram um eixo que é Ceilândia-Brasil. Como foi conquistar esse mercado lá fora?

X Câmbio Negro — Até hoje, é muito gratificante você sair do Centro-Oeste, de Ceilândia, e saber que a sua música é ouvida em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Recife, em Belo Horizonte, e em outros lugares que a gente nunca tocou. Nunca tocamos no Ceará, nunca fomos ao Maranhão, nem ao Amazonas, e tem gente que curte. A coisa rompeu barreiras. São Paulo foi o primeiro local onde a gente chegou, (o estado tem) muitas rádios comunitárias. Até hoje, somos muito respeitados em todo o lugar que a gente vai. É gratificante saber que depois de mais de 30 anos (de estrada), as pessoas ainda lembram da gente, e pessoas novas estão nos conhecendo. No Instagram, tem gente que chega para dizer que não sabia que a banda (Câmbio Negro) ainda estava na ativa. A gente é pequeno, 20 e poucos mil seguidores, mas crescendo sempre. Devagar, mas sempre.

Japão Viela 17 — Tem um amigo meu no Rio de Janeiro que, na música dele, ele fala "nos versos de Japão, já conheço a Ceilândia inteira". Eu fui numa festa (no Rio) anos atrás, e um cara falou que o sonho dele era ter uma blusa da Ceilândia, porque sabia que ia ser difícil colocar o pé (na cidade). Acabou que depois ele conseguiu vir, veio a Brasília só para conhecer a Ceilândia. Foi emocionante, e ele fez uma parada que o Mv Bill faz sempre: toda vez que ele chega na Ceilândia, sai da van e tira o tênis, para pisar no chãoi e sentir toda a energia do lugar.

O rap, no início, tinha uma revolta muito grande. Continua com a matriz de inconformismo, mas mudou de um incentivo à violência para uma questão de conexão social e conscientização. Como é para vocês essa evolução?

Japão Viela 17 — Eu acho que os tempos mudaram, não o rap que mudou. Antigamente, a polícia entrava dentro da quebrada, matava uma pessoa e não tinha ninguém para denunciar. O rap foi o porta-voz da quebrada para denunciar esse descaso. Hoje, você tem os (números de denúncia por telefone) 190, o 180, e tem câmera do celular para filmar. Algumas coisas ainda perduram, e a violência com a mulher é uma delas. A visão que eu tenho do rap é que o mundo mudou, e o rap acompanhou essa mudança. Algumas pessoas mantêm a raiz, e eu ainda acho que muita coisa ainda tem que ser dita. Somos o país que mais assassina mulheres, mais mata homossexuais. A cadeia está lotada (de negros e pardos), as escolas depredadas, e querem construir mais e mais presídios. Esse é o papel do rap (lutar contra esse modelo). Tem artista que quando sai de casa, é um amigão, paga cerveja para todo mundo e dá um tapinha nas costas. Chega dentro de casa, a primeira pessoa que ele vê para descarregar o ódio é a esposa. Isso não mudou, e tem que ser combatido. O que eu vejo hoje, dessa garotada que faz rap é a falta de compromisso para dentro da comunidade. Isso eu vejo mesmo. Hoje tem gente do rap com mais compromisso com a marca de roupa e com a maconha, do que com a comunidade dele. Essa é a minha visão.

X Câmbio Negro — Também acho que foi o mundo que mudou, e o rap, em muitos aspectos, acompanhou. Mas o protesto vai sempre existir. Nas nossas letras, talvez com o tempo, com idade e vivência, estamos escrevendo de outra forma. Mas o protesto continua, como (o disco) "Fogo no canavial", que a gente fez há um ano, falando de um país racista, homofóbico, intolerante e escravocrata. O som do Djonga, Fogo nos racistas, é o  (hit do Câmbio Negro) Sub-raça de 30 anos atrás. Então, as coisas não mudaram tanto assim. O protesto deve persistir: é necessário para a mudança, para o conhecimento e até para a não alienação, para a galera não achar que rap é só milhões de reais e carrão. É bacana, a galera está ganhando grana, estão conseguindo melhorar as vidas das famílias, dar emprego para amigos, fazer o dinheiro rodar. É mérito dos caras e é digno, a minha inveja é 0%. Agora, você não pode esquecer quem você é, de onde veio, e o seu compromisso com quem estava do seu lado nos piores momentos. Te ajudar a tomar champanhe, beber whisky 12 anos e comer caviar, está cheio de gente. Eu quero saber se você está junto de quem roeu osso contigo. A mensagem é consciente, é inteligente, e vem de outras formas e roupagens que são necessárias. Têm coisas que eu não faria e que não é meu estilo, mas eu respeito. Me perguntam por que eu não faço trap (um subgênero moderno do rap/hip-hop). Irmão, porque eu sou do século passado, estou fazendo 55 anos, e a minha onda é outra. Não acho que (o trap) sejam ruins, mas é a parada deles, eles nasceram em outra época e o som deles é esse. O meu é outro, cada um no seu quadrado. Vamos crescendo juntos, rappers, grafiteiros, breakers, DJs brasileiros, ganhando e mostrando a força do hip-hop para aqueles caras que sempre disseram que éramos marginais. Na verdade, a gente foi marginalizado. 

*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira

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