Foi por acaso que Pierre Aderne e Moacyr Luz se encontraram em Lisboa durante uma degustação de vinhos, em novembro de 2021. Pierre estava com o amigo Dado Villa Lobos. Quando abriu a porta do centro de convenções, a primeira figura que avistou foi a de Moacyr. "Foi uma coincidência muito grande, se tivesse marcado talvez não tivesse se encontrado", conta o sambista.
O encontro gerou uma boa experiência etílica, que se desdobrou em uma preciosa experiência musical. Mapa dos rios foi gravado em três meses, boa parte na capital portuguesa e uma pequena parte no Rio de Janeiro. "A gente começou a fazer música e viu que era muito natural, que não tinha nada de pensamento comercial, então a gente fez de cara", lembra Moacyr. O disco traz 11 faixas, mas o sambista carioca ressalta que ainda há material guardado. "Tem músicas que não entraram, não havia coisa de mercado, de estar na moda, a gente fez uma sonoridade bem enxuta, com os músicos da Rua das Pretas, num estúdio maravilhoso em Lisboa. A ideia era juntar o Rio com Lisboa, e assim foi nascendo o disco, como nasce um rio."
Não há fronteira em Mapa dos rios, que é um encontro de culturas e raízes, de terras ultramares, de continentes e cidades que há séculos engendram um diálogo fusional. Aderne é filho de português com brasileira, nascido na França e levado para o Rio de Janeiro e para Brasília durante a infância e a adolescência. Moacyr é neto de feirantes portugueses que emigraram em busca de uma vida melhor. Foi criado na base da lentilha e do vinho de garrafão misturado com açúcar. "Esse tipo de herança eu trouxe e resultou nisso", avisa.
O "nisso" é uma combinação mágica de fado, samba, mornas e ritmos que deslizam muito suavemente tanto pela música brasileira quanto pela portuguesa. "A gente passou muito tempo na música em língua portuguesa tentando colocar bandeira na frente da música. Se a gente trouxer isso para o campo dos ritmos, essas matrizes todas nos pertencem", explica Aderne. "Uma das coisas mais interessantes na forma do Moa compor e tocar é que ele assimilou todas essas linguagens, mas na hora que dou uma letra para ele e começa a compor, não está pensando se aquilo vai ser um partido alto, um samba canção, é um balaio de emoções rítmicas que usa quando está compondo."
Boa parte do disco foi feita em uma parceria que consistia em Aderne fornecer as letras e Moacyr, as melodias. "As letras vinham todas do Pierre e eu fazia a música por aqui, lendo a letra, andando com ela pela casa e pela cozinha. Não alterei uma palavra do que ele me mandou. Tem a experiência de vida dele em Lisboa, isso serviu como fonte de trabalho", conta Moacyr, que esteve em Lisboa quatro vezes nos últimos dois anos. "Faz parte do compositor ser observador, então da minha parte, tem o Tejo passando por Lisboa, a ponte 25 de abril, o cais onde comi bons peixes. As letras me lembraram das minhas andanças pela cidade e foram virando música, porque a função da gente, que compõem, é que tudo vire música."
São letras como a de Sete colinas, com versos que poetizam a história da cidade — "No berço das sete colinas/Nasceu Lisboa/Terço na crença de qualquer pessoa/Fernando, Amália, Carlos/Do Carmo à Madragoa/Do alto de um castelo/De onde vê-se um rio/Um mosaico do que há de mais belo" —, ou de Vidigal — Cais do Sodré, com versos que juntam continentes: "O Vidigal ficou pelas costas/Na proa cantava o horizonte/O mar dobrava as apostas/Sem praia sem ilha sem ponte/Camões escrevia respostas/Verde branco azul anil/Um porto na ponte 25 de abril".
Mapa dos rios também é o encontro de dois projetos nascidos mais ou menos da mesma verve agregadora que move Pierre Aderne e Moacyr Luz. No disco, o encontro do Samba do Trabalhador com o Rua das Pretas é responsável pela sonoridade do conjunto. O primeiro, criado por Moacyr em 2005 para juntar uma turma de sambistas que se reunia no Clube Renascença, no Andaraí, virou reduto do gênero com rodas de samba que agregam a nata da música carioca.
O Rua das Pretas fermentou dentro do mesmo espírito: Aderne começou a reunir uns músicos em casa, foi chegando gente de todo canto, a sala do apartamento ficou pequena e um francês ofereceu um palacete. Os encontros cresceram, músicos de Moçambique, da Guiné, de Cabo Verde ouviram falar, se ajuntaram, e o Rua das Pretas virou espaço de fomento e produção de música.
Depois de receber 280 músicos em apresentações durante quatro anos, o Rua das Pretas está prestes a se mudar para o Coliseu dos Recreios, casa de show lisboeta que comporta mais de 400 pessoas. "Mas esse momento de comunhão e residência que aconteceu no início é o que acho mais importante e bonito. O que o Moa faz no Samba do Trabalhador é um movimento que as pessoas vão se conhecendo ao longo dos anos e gerando sustentabilidade para uma série de outras pessoas e outras famílias que dão suporte ao movimento. Por isso todas as vezes que o Moa veio para cá soou extremamente orgânico", observa Aderne.
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