A voz de Elza Soares continua para sempre. A cantora teve lançado, de forma póstuma, o disco inédito No tempo da intolerância. O trabalho foi gravado de forma completa enquanto estava viva e conta com 10 faixas, todas compostas por mulheres. Um disco que tem som de despedida e de eternidade e que mostra que, mesmo após a morte, Elza ainda tem uma mensagem para deixar para o público.
O trabalho tem letras de nomes como Pitty e Josyara, que dividem o repertório com ícones como Rita Lee e Dona Ivone Lara. A produção ficou a cargo de Rafael Ramos e Pedro Loureiro, que puderam acompanhar de perto os últimos dias da cantora seminal da música brasileira no estúdio e nas gravações. A data do lançamento também é emblemática, 23 de junho de 2023, dia em que completaria 93 anos.
A pedido do Correio, os produtores analisaram o novo disco e apresentaram os principais aspectos que fizeram de Elza Soares um marco para a música. Rafael Ramos e Pedro Loureiro aprenderam com Elza e agora a ajudam a deixar um dos últimos ensinamentos para o público que a acompanhava.
Entrevista: Rafael Ramos
Como foi ouvir uma última vez a voz de Elza?
Graças à tecnologia da música gravada, poderemos ouvir a voz de Elza até o fim de nossas vidas, mostrar para os nossos filhos, netos e conhecidos. Mas ter trabalhado com ela nos últimos anos e dias de vida foi muito especial, único. Cada minuto com Elza em estúdio ou em camarins era um presente de vida. Elza dava aulas de comportamento com respostas e posicionamentos simples e puros, baseados no amor, na paz e na música que ela tanto amava.
Imagino que foi difícil trabalhar músicas dela sem ela. Como foi a experiência?
Além da responsabilidade gigantesca, tinha todo o lado afetivo da falta da presença física dela. Mas Elza esteve presente e viva em grande parte da produção, ela cantou as vozes valendo em cima dessas bases que você ouve no disco. Chegou a ouvir algumas músicas já com arranjos de cordas, esteve presente em toda escolha de repertório e nos convites para essas mulheres fantásticas que deram letras e músicas para este álbum. O que eu mais queria é ver a reação dela ouvindo as músicas com os arranjos de metais que ela não chegou a ouvir, uma ou outra mixada em que tivemos alguma dúvida nas escolhas… mas tudo que está aí. Elza sabia que ia acontecer e quando gravamos, trabalhamos sem ela sempre levando em conta suas ideias e opiniões, vindas do tempo que estivemos juntos.
O álbum termina com um samba, como tudo na carreira dela começou. Foi uma escolha proposital? O que essa história circular representa para vocês?
Mais do que um samba, a decisão de No compasso da vida fechar o disco foi pelo discurso mesmo. Uma música que enche a pessoa de esperança, uma harmonia mais doce e uma interpretação mais doce também. O disco é bem vigoroso e contundente no discurso e essa música sintetiza esse lado de Elza de sempre ter esperança, de enxergar as dificuldades do mundo de forma positiva. O disco, assim como toda a obra de Elza, passeia por diversos estilos e, mesmo a última faixa sendo naturalmente um samba (o que não poderia deixar de ser com uma base harmônica e melódica vindo de Dona Ivone Lara), ela flerta com funk e soul, referência dos tempos dos bailes cariocas dos anos 1970 e das equipes de som.
Qual a importância do público ter uma última mensagem tão incisiva e real de Elza?
Na minha opinião, Elza deixa um belo e completo recado para todo o povo brasileiro e vai depender de cada uma dessas pessoas dedicar tempo a sua audição com o coração aberto para absorver todos esses recados, todas essas ideias. É um disco que fala direto com a mulher preta e pobre, mas também faz qualquer outro cidadão enxergar de outra forma uma realidade que não é a sua, trazendo mais empatia, respeito e compreensão de que a desigualdade e a injustiça existem e o quanto isso influencia na vida dessas que são as mais atingidas por essas condições tristes. Acredito que as mensagens desse disco podem ajudar muita gente.
Esse álbum soou não só como uma despedida de Elza, mas uma despedida de tempos tristes que sofremos recentemente. O sentimento foi o mesmo durante a produção?
O disco foi todo gravado naqueles tempos tristes e nebulosos da história do Brasil, então obviamente influenciou muito o clima todo, sim. Mas o tempo todo existia essa esperança de um futuro melhor, de uma reviravolta que realmente acabou acontecendo. Antes de qualquer questão nas altas camadas do governo, Elza tinha o olhar voltado para as pessoas, para o povo, e como uma sociedade ela sabia que temos muito a resolver ainda dentro da gente, tem momentos no disco que parece que Elza está falando diretamente com você, olhando no seu olho. A mudança começa dentro e Elza dá várias receitas pra cada um atingir essa visão.
Entrevista: Pedro Loureiro
Mais para o final da carreira, Elza passou a conversar com um público mais jovem. Qual o legado que vocês acreditam que ela deixa para os jovens?
Na última década, a Elza virou referência para os jovens, não que ela não fosse antes, ela sempre foi. Porém, temos que lembrar que vivemos em um país racista, machista e homofóbico, no qual os nossos exemplos e ídolos são subtraídos de nós. Então quando você pensa que uma mulher negra e periférica é referência, o sistema pensando como ele é e está, acaba abafando e a juventude cresce sem ter espelho. No caso da Elza foi uma construção estratégica para que a gente pudesse posicionar a vitrine, a arte e a artista Elza para que os jovens pudessem conhecê-la e buscar essa referência. É de suma importância os nossos ídolos serem valorizados, para que nossos jovens possam se inspirar e se sentir capazes. Uma menina negra, de favela, de condição super delicada ver a Elza e se sentir disposta a tentar a vida também. Isso é muito legal e muito bonito. O legado que ela construiu muito bem e deixa para os jovens é a referência. O importante é ter uma referência que você se identifique diretamente. Hoje em dia, o público da Elza é a partir dos 12 anos de idade, há alguns anos era a partir dos 50 anos. Houve uma renovação muito grande, muito além do comercial, foi uma renovação filosófica mesmo. Nossos ídolos têm de ser referências para os nossos jovens para que criemos um país melhor e mais justo.
Vocês acreditam que existe uma possibilidade de uma voz marcante como a de Elza no futuro da música brasileira? Pensando tanto tecnicamente quanto em pertinência?
Elza Soares é única tecnicamente, anatomicamente, historicamente e biograficamente, ela é insubstituível, extremamente relevante e significativa. Ela mudou a história de música popular brasileira e contribuiu para a música do mundo, principalmente negra. Porém, estamos falando do Brasil e do brasileiro, um país muito próspero com pessoas fantásticas e incríveis, vide Elza Soares. 'De que planeta você veio?', como se nós não pudéssemos ser fantásticos, Elza era fantástica. Ela veio do Planeta Fome, que fica no planeta Brasil. Então, eu acho que sim. No futuro podem existir artistas com características parecidas com a dela, mas em momentos e ocasiões diferentes. Mas uma pessoa que tem todas essas características em uma pessoa só e que tenha a capacidade corporal e mental suficiente para segurar tanta genialidade, acho que só o futuro dirá se cometa raro voltará a passar.
A mulher do fim do mundo é eterna?
Eu vou responder com outra pergunta. Uma mulher que o corpo físico desencarnou e mesmo assim ela lança um disco, tem programado um DVD e um disco de músicas inéditas, no qual é compositora de 70% delas. Uma artista que não está mais aqui, mas segue em campanha publicitária, segue em turnê com a própria arte e show, porém nas vozes de Larissa Luz e Caio Prado. Uma artista com o corpo desencarnado, mas que é tão presente a ponto de ganhar o prêmio de cantora do ano no Prêmio da música brasileira não pode não ser eterna. Minha pergunta é: dito tudo isso, dá para acreditar ainda que a Elza não é eterna?
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