Literatura

Um Brasil de violências e apagamentos é tema da literatura contemporânea

Livros de Micheliny Verunschk, ganhadora do Jabuti, e Eliane Marques mergulham em um Brasil profundo e cheio de feridas

Nahima Maciel
postado em 31/07/2023 00:00
Capa de Caminhando com os Mortos, de Micheliny Verunschk -  (crédito: Companhia das Letras)
Capa de Caminhando com os Mortos, de Micheliny Verunschk - (crédito: Companhia das Letras)

Cuandu é neta e bisneta de escravizados, vive na fronteira do Brasil com o Uruguai. Impetuosa, questionadora e talvez a primeira da família a ascender socialmente, Cuandu é uma gaúcha que olha para a ancestralidade com a obstinação de resgatar um passado doloroso. No oposto geográfico, Lourença é uma mulher destruída por duas tragédias: a perda de uma filha e ter sucumbido ao discurso religioso evangélico. A combinação fez Lourença perder as referências, migrar para a ilusão e dar fim à segunda filha. Há algo que dialoga entre as duas personagens e talvez elas estejam atadas pela fatalidade inevitável num Brasil violento, que não soube encarar a tragédia da escravidão e enfrenta uma desigualdade mortal.

Cuandu é protagonista de Louças de família, da gaúcha Eliane Marques, e Lourença é a mãe desesperada de Caminhando com os mortos, de Micheliny Verunschk, dois romances que falam de um Brasil duro, real e atual.

 

No norte, a violência e a religião

Caminhando com os mortos é o último volume de uma trilogia iniciada em 2014 com Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida, e laureada em 2021 com O som do rugido da onça, vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance. Escrito durante a pandemia, o livro traz a história de uma mãe que, anos depois de perder um bebê devorado por uma porca em um acidente terrível, decide queimar a filha que lhe resta para dela extrair o demônio. Convencida pelo pastor local e pelo discurso evangélico de que a moça retornara da cidade grande possuída, Lourença acredita estar participando apenas de um exorcismo, mas Celeste acaba morta.

Dois episódios do Brasil real e contemporâneo motivaram a pernambucana Micheliny Verunschk a escrever o romance que encerra a trilogia. Um deles foi um assassinato de um amigo no interior de Pernambuco, em um episódio de homofobia que faz vítimas com recorrência. "Ele foi assassinado queimado, na minha cidade, e não é a primeira vez. Venho do interior, de Arco Verde, uma cidade maravilhosa, muito pujante culturalmente, mas onde, ocasionalmente, acontecem barbaridades, como no resto do Brasil", conta. A história de Fabiane Maria de Jesus, vítima de fake news, linchada após ser erroneamente apontada como sequestradora de crianças no Guarujá, completou a motivação de Micheliny para tecer a trejtória de Lourença e Celeste. "Nesses lugares dessa violência que assola o Brasil, uma violência relacionada a preconceitos religiosos, à homofobia, ao exercício mesmo da alteridade, é que nasce Caminhando com os mortos", ressalta a autora.

Celeste já está morta quando começa a narrativa. Depois de passar anos fora do Tapuio, a moça volta à casa com um filho a tiracolo e a desenvoltura de quem precisou se virar na metrópole. De lá, sustentou os pais e fez a própria vida. Mas não é a mãe de outrora que encontra e sim uma mulher convencida de que um pastor duvidoso é a própria voz divina. Num ritmo que tem algo de detetivesco, mas também de profundamente sombrio e cru, a autora conduz o leitor pelo interrogatório de Lourença e do marido, pelas revelações sexuais em relação ao pastor e pela agonia final de Celeste. "O livro trata também desse lugar violento da religião, mais especificamente do discurso evangélico, mas sem isentar a igreja católica", explica a autora, que situa Caminhando com os mortos num projeto literário bem definido. "A gente tem um arco aí, não temático, mas rizomático. Eu tenho um projeto literário de pensar o Brasil a partir de suas violências fundantes. A violência colonial, a de cunho religioso e a violência de estado, agrária, contra a mulher, nos três livros da Trilogia infernal."

 

No Sul, a escravidão e a revolta

Louças de família também é filho da pandemia. O romance de Eliane Marques começou a tomar forma no final de 2019. Auditora do Tribunal de Contas do estado, ela escreve poesia há anos e, há duas décadas, mantinha um blog chamado Nunca fui disso, no qual escrevia histórias em prosa. "Quando a pandemia nos atinge, como a maioria das pessoas, eu fui pensar no sentido da minha vida. Havia uma espada sobre nossa cabeça e, como escritora, eu queria fazer algo que chegasse a um público maior. Além disso, também estavam me perturbando histórias que ouvia da minha avó, das tias, as vizinhas", conta. "Decidi escrever essas histórias. Eram histórias soltas, esparsas. E quem uniu as histórias foi essa personagem atrevida, ressentida, um tanto malcriada chamada Cuandu."

Cuandu estrutura a história, mas está pelas beiras. É das avós, tias, mães, primas e irmãs que ela fala. Louças de família é uma metáfora, uma condensação dessas mulheres de cuja dinastia Eliane faz parte. "Essa dinastia vinha passando de mão em mão como louças passam de mão em mão ou são herdadas, geralmente em famílias brancas, que têm posses. Mas o que é herdado pode ser quebrado e engendrar outra dinastia, louça é permanência e também ruptura", avisa a autora.

A narrativa de Eliane é especial. Cuandu usa um léxico de palavras criadas por ela mesma e frutos de sobreposições para situar o cotidiano dos personagens familiares que a rodeiam. O pai violento é expaimeu. Minhamãe minhatia, assim juntas, denominam duas das protagonistas do romance, que tem um lado lírico, apesar da história trágica. "Na tradição de matriz africana há várias palavras que são unidas, eu trouxe isso para o livro", explica a autora. "É uma tradição, mas também diz respeito a esse sentimento de posse que temos em relação a nossas parentas. Então a escrita de tudo junto fala dessa coisa empossada que temos dos nossos familiares,de como eles vivem em nós."

No livro, duas famílias são observadas por Cuandu. A sua e a dos brancos para os quais suas familiares trabalharam. Nas duas, a violência está presente e provoca o apagamento, sobretudo, das mulheres. "Essa dinâmica é marcada por um sentido do desaparecimento. Esse pai pensado idealmente pela Cuandu desaparece em meio à violência cotidiana, essa mãe não pensada como ideal também desaparece em meio à violência cotidiana. Essas relações familiares provocam um apagamento", explica a autora, que gosta da metáfora que une memória e ancestralidade com as louças que passam de mãos e mãos, mas também se espatifam e se perdem.

Três perguntas///Micheliny Verunschk

 

Caminhando com os mortos aborda temas relacionados à morte e ao luto. Por que você escolheu explorar esses temas em seu livro?

É um livro muito duro, uma história muito dura, tem muitos pontos de partida e muitas chaves de leitura. Esse luto mal vivido dessa mãe, de Lourença e de como uma tragédia como a dela de perder uma filha pequena e não ter amparo, acolhimento psicológico, não ter algo que a console, como isso acaba detonando uma série de acontecimentos que vão desembocar numa tragédia. Para escrever esse livro, precisei me distanciar um pouco dos fatos que me dizem respeito para poder trabalhar os temas de uma forma que dissesse respeito ao coletivo, mais do que a mim.

 

É um universo diferente de O som do rugido da onça, mas, ao mesmo tempo, muito parecido: as raízes, a chegada de uma outra cultura, um roubo dessas raízes, o outro que rouba as referências.

Acho que sim, é uma questão que vai atravessar minha narrativa em prosa, esse lugar da intolerância para com o outro. O outro não pode exercer a sua existência em sua plenitude por conta da ideologia, ou da religião, ou da ciência, de quem detém a posse da terra. É de fato uma questão.

 

A presença de temas que dizem respeito à construção da identidade, a um olhar não colonizado para história, a temáticas ligadas ao campo e à violência estão mais frequentes na ficção brasileira?

A ficção brasileira vive um momento ímpar em dois lugares. Um é dessas histórias, desses personagens e narradores que dizem respeito a nossa construção enquanto povo. De outro lado a gente tem também um leitor mais atento para isso. Então acho que isso é uma via de mão dupla. A literatura vai se escrevendo e puxando seus leitores. Então tem um diálogo aí entre o que está se fazendo e um olhar mais atento. Essas narrativas talvez estejam de fato prontas para esse momento, ou pelo menos, se não prontas, preparando esse momento de chegar afetivamente ao público, de as pessoas reconhecerem esses personagens, esses lugares, essas histórias.

 


  • Louças de família, de Eliane MArques
    Louças de família, de Eliane MArques Foto: Autêntica
  • Escritora Micheliny Verunschk, de Caminhando com os mortos e O som do rugido da onça
    Escritora Micheliny Verunschk, de Caminhando com os mortos e O som do rugido da onça Foto: Renato Parada
  • Eliane Marques, 
autora de Louças de família
    Eliane Marques, autora de Louças de família Foto: Alexsander Silva dos Santos

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