Música

Leny Andrade e Dóris Monteiro: o último adeus às divas da bossa

Morrem, aos 80 anos, Leny Andrade, e Dóris Monteiro, aos 88, duas das maiores cantoras da música brasileira

Nahima Maciel
postado em 25/07/2023 06:00
Leny Andrade durante apresentação no 
Restaurante Piantella -  (crédito: Jorge Cardoso/CB/D.A Press)
Leny Andrade durante apresentação no Restaurante Piantella - (crédito: Jorge Cardoso/CB/D.A Press)

Voz jazzística da música brasileira e um dos ícones da bossa nova, Leny Andrade morreu, ontem, aos 80 anos, no Rio de Janeiro. A cantora estava internada no Hospital das Clínicas, na capital fluminense, desde a semana passada, depois de uma piora em consequência de uma pneumonia da qual se recuperava desde junho, quando chegou a ser entubada. A morte foi anunciada nas redes sociais da artista, na manhã de ontem. "A diva do Jazz Brasileiro, Leny Andrade, foi improvisar no palco eterno. Leny faleceu nessa manhã, cercada de muito amor. As informações do velório serão divulgadas em breve. A voz de Leny Andrade é eterna!", diz o post. O velório será realizado hoje, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Leny vivia em um apartamento no Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá, desde 2018, e viu a saúde ser comprometida aos poucos após descobrir uma doença degenerativa. O isolamento da pandemia levou a uma piora no quadro da artista, mas ela ainda chegou a gravar em estúdio em setembro de 2022, quando registrou o samba Por causa de você (Tom Jobim e Dolores Duran). Foi a mesma música que cantou para Pedro Bial em 2019, ao participar do programa de entrevistas do apresentador. O samba-canção foi lançado este ano, em janeiro, para comemorar os 80 anos de Leny.

A cantora foi uma artista prolífica. Gravou cerca de 34 álbuns entre 1961 e 2018, mas foi como pianista clássica que ela debutou na música. O sonho da mãe de Leny era que a filha enveredasse pela carreira de concertos à frente do piano. Nascida no Rio de Janeiro em 1943, a artista começou a cantar ainda na infância. Aos 9 anos, mostrou a voz no programa Clube do Guri, da Rádio Tupi. Contava que queria ser cantora desde muito cedo, mas a mãe não dava folga, então se formou em piano no Conservatório de Música para satisfazer o desejo materno e, com o diploma na mão, deu o caso por encerrado e foi ser cantora num tempo em que artistas como ela se formavam no palco das boates cariocas.

Fã de Dalva de Oliveira, Leny gostava de músicas de fossa, mas não deixava escapar a efervescência da música brasileira dos anos 1950 e 1960. Ela viu surgir a bossa nova, da qual participou, e acompanhou o fim da era do rádio. Em clubes como o famoso Beco das Garrafas, conquistava o público e construía a própria carreira, mas também aproveitava para ouvir o melhor da produção nacional, como Dolores Duran, uma de suas maiores referências.

Boa parte dos discos gravados pela cantora eram dedicados a compositores que admirava. Fez discos com músicas de Nelson Cavaquinho, Cartola, Fred Falcão, César Camargo Mariano, Tom Jobim e Pery Ribeiro. Com este último, realizou o projeto Gemini V, que fez sucesso em meados dos anos 1960. O alcance jazzístico da voz de Leny Andrade também a levou ao sucesso no exterior. Em Nova York, ela encantou Tony Bennett, que costumava desenhá-la, e Liza Minelli. Um dos desenhos de Bennett, aliás, foi postado nas redes sociais da cantora esta semana, assim como uma foto com o cantor. Nos Estados Unidos, Leny gravou discos como Embraceable e Maiden Voyage.

Nos discos gravados no Brasil, era sempre acompanhada dos maiores nomes da música nacional. Em 1993, gravou Nóis com César Camargo Mariano e, dois anos depois, lançou Antonio Carlos Jobim, letra e música, com Cristóvão Bastos, mas foi o pianista Gilson Peranzzetta um de seus arranjadores mais fiéis, com quem subiu ao palco e aos estúdios de gravação por mais de três décadas.

Elegante e poderosa

A voz poderosa de Leny Andrade era capaz de suingues e improvisos que seduziam o público. O domínio técnico, associado à capacidade de transmitir emoção e à escolha apurada do repertório e dos arranjadores com os quais trabalhava, levaram a artista ao patamar de uma das cantoras mais importantes do Brasil nos últimos 60 anos. "Era uma pessoa que tinha uma escola e deixa essa escola de grandes improvisadores, ela improvisava com a voz. O seu conhecimento musical era tão profundo que permitia isso, como os músicos que tocam jazz e que, de repente, começam a improvisar na guitarra, no saxofone, no piano", explica Reco do Bandolim, presidente do Clube do Choro, cujo palco recebeu Leny em algumas ocasiões. "Ela fazia esse mesmo papel, mas com sua voz. Leny tinha profundidade e substância tão grandes que permitiam a ela ficar de igual para igual com os músicos."

 Em 8 de maio de 2019 dividiu o palco do Clube da Bossa (Teatro Sílvio Barbato do Sesc),  em Brasília,  cantando Cartola, Nelson Cavaquinho, Eumir Deodato, João Donato, Gilberto Gil e Carlos Lyra. A produtora Marizan Fontinele, que trouxe Leny para o show A bossa de Leny e Mazziotti, com Zé Luiz Mazziotti, lembra que a cantora era uma diva da bossa nova. "Tinha o dom e a arte de improvisar com a voz como poucos. Ela sai de cena, mas deixa sua marca em nossa música, para sempre", diz. "Leny foi minha amiga e cantora maior desde os anos 1970. Amizade longa e sincera. Artista espetacular! Amor profundo!", confessa o cantor e violonista Zé Luiz Mazziotti

Para Márcia Tauil, cantora de Brasília, compositora e professora de canto, Leny "é uma referência do Brasil com ares internacionais". "Seu canto extrapolava fronteiras. Com ela, me apaixonei por um repertório que poucos cantam ou cantaram com tanta personalidade e força", conta Márcia. Célia Rabelo, também cantora da cidade, aponta o estudo como ponto importante da carreira da artista. "Leny deixa para todos a essência do estudo e a maneira em que a música brasileira deve ser tratada. Tive a oportunidade de beber dessa fonte", explica.

Pioneira, referência para o samba-jazz, única, elegante e de raro toque. É assim que a cantora brasiliense de MPB e samba Dhi Ribeiro se recorda de Leny Andrade. "Não foi só uma diva, ela foi a música, pioneira, mulher íntegra que não se dobrou ao sistema e levou nossa música mundo afora. Ela mostrou a qualidade da música brasileira com suas interpretações únicas, elegantes e de raro toque", acredita Dhi, para quem Leny teve enorme relevância. "Em mim fica a sua versatilidade, elegância, a escolha impecável do repertório e seu estilo único e inesquecível!", diz.

O compositor, cantor e instrumentista Clodo Ferreira ressalta que Leny era extremamente atenta aos detalhes e à excelência. "Tinha um cuidado enorme em tudo o que produzia. Exigente e vigorosa, foi uma artista acima da média, não fazia nada de forma superficial e trouxe uma excelência para a música brasileira, nunca gravou nada que não tivesse consistência", lembra, que também aprendeu com a cantora. "Para mim, ficou a admiração e o exemplo de cuidado para minha carreira, assim como o aprendizado de nunca fazer coisas superficiais, jogadas e sempre buscar o vigor. Acima de tudo, se destacar, como a Leny se destacou", conta.

Colaboraram Irlam Rocha Lima, Luisa Helena e Lara Oliveira

 


  •  Leny Andrade em show no Clube da Bossa de Brasília
    Leny Andrade em show no Clube da Bossa de Brasília Foto: Maizan Fontinele/Divulgacao
  • Dóris Monteiro durante apresentação no Projeto Pixinguinha, em 1978, em Brasília
    Dóris Monteiro durante apresentação no Projeto Pixinguinha, em 1978, em Brasília Foto: Marcos de Oliveira/CB/D.A Press
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