“Na gênese do rock ‘n roll, está a música negra”, afirma o historiador e punk candango Moacir Alcântara, ou Moa. Nos anos 1950 e 1960, foram os negros em diáspora, imersos num país fortemente segregacionista, os Estados Unidos (EUA), que empunharam as primeiras guitarras distorcidas e estabeleceram para o resto do mundo os fundamentos básicos do rock, concebido em consonância com várias outras vertentes da música negra, como blues e jazz.
Em meio a intensas tensões raciais e a uma rejeição organizada a tudo que era preto, era impossível para os inventores desse novo gênero preverem que sua expressão artística tão agitada e revoltosa alteraria tão violentamente o curso da arte no mundo ocidental. Tristemente, esses visionários também não poderiam prever que, mesmo com essa revolução, seriam sistematicamente excluídos e apagados do circuito comercial criado ao redor desse tal de roque enrow.
Nas cinco décadas seguintes à sua criação, o rock tomou os holofotes da indústria fonográfica e dominou as paradas como nunca nenhum outro estilo musical havia feito anteriormente, quebrando recorde atrás de recorde e crescendo dia após dia em popularidade. É consenso, entretanto, que, nessa massificação comercial, o gênero se distanciou radicalmente da negritude da qual nasceu, passando a ser protagonizado e associado majoritariamente a pessoas brancas. “É difícil para um indivíduo negro se identificar imediatamente com o rock porque a cara do rock não é uma cara que parece com a dele”, explica Moa.
No Brasil, desde seu auge nos anos 1980, o rock comercial é notavelmente ligado a uma ideia de branquitude intelectualizada, de alto poder aquisitivo, que tinha contato com o que acontecia no exterior. “A gente pode até pegar a realidade aqui de Brasília, onde o rock é sempre associado a essa classe média, galera da Turma da Colina, pessoal filho de diplomata”, pontua o historiador. Enquanto isso, outros estilos musicais como Baile, Black Music, Rap e Funk ganharam espaço e se enraizaram na cultura negra e periférica do país, travando uma rixa simbólica com o rock que perdura no imaginário popular até hoje.
“A gente sabe que a indústria cultural, os meios de comunicação e os próprios imaginários da sociedade demandaram que o rock representasse um apelo somente à juventude branca”, critica Moa. “Se a gente for pensar de uma forma mais abrangente, o rock ainda está muito distante dos anseios, das preocupações e das preferências estéticas e culturais da juventude negra de periferia”.
Resistência
Esse processo violento de apropriação, apagamento e exclusão, contudo, não foi capaz de expurgar a presença e a influência seminal de artistas negros no desenvolvimento do gênero. Tanto em suas formas mais populares comercialmente, quanto no underground, onde o punk e o metal resistem longe das paradas da Billboard e das grandes gravadoras, músicos pretos e pardos conseguem encontrar espaço para instrumentalizar as características do rock a seu favor, para contar sua própria história em seus próprios termos.
BB King, Chuck Berry, Louis Armstrong, Milton Nascimento e Luiz Melodia foram as primeiras referências de artistas negros de Ynaiã Benthroldo, baterista dos goianos Boogarins, banda que alçou voos internacionais com o rock psicodélico. Influenciado pelos pais, Benthroldo acha que “é sempre bom ter referências da história do mundo. Se tu sabes de onde vens, sabes para onde vais”, como afirma o ditado.
Para Ynaiã, toda banda começa com a energia disruptiva, e o rock provoca movimento, instigação, determinação e vontade de mudança. “(No entanto), se formos ver, na realidade, o que foi vendido pela mídia, gravadoras e criadores de tendências, sempre foi publicidade, um produto”, declara.
Bernardo Negron, o BNegão, é um dos maiores nomes do hip-hop nacional e é compositor e vocalista da Planet Hemp. A banda se popularizou por misturar o som pesado do rock com a lírica do rap, sempre tocando em temas polêmicos como a cannabis e o preconceito racial.
Para ele, a cena do rock, “que está branquíssima hoje em dia”, tem um estranhamento com pessoas pretas fazendo o som. “O conceito prévio é de que quem sabia de rock era só a galera branca que estava envolvida. E havia essa surpresa discotecando em festas de rock, ‘nossa, o cara sabe, que engraçado, que sui generis”, relata Negron.
Sob a mesma ótica, Ynaiã acha que “a música e a arte não são bolhas perfeitas e maravilhosas onde os problemas sociais do mundo não existem.” “Eles se acentuam nesse ambiente, é difícil ser negro em qualquer ambiente no mundo.” No entanto, o baterista considera que seria leviano afirmar que a música alternativa não é aberta a músicos pretos e pardos.
BNegão relembra que, nos anos 1960, pouco tempo depois que o rock surgiu, as questões raciais nos Estados Unidos estavam muito acirradas. “A galera só pôde andar no mesmo ônibus no final dos anos 1960. O rock surgiu nos anos 1950, então não tinha como a galera chegar e ter o mesmo tamanho do Elvis se você não tinha acesso ao mesmo meio de comunicação”, conta.
Além dos problemas que pessoas pretas enfrentam por causa da cor da pele, trabalhar com música no Brasil é uma dificuldade por si só. Desde questões relacionadas a acesso a estúdios e produtores, até fazer sons criativos e originais, viver da arte é para poucos. Ynaiã afirma que “pessoas negras sempre fizeram arte e sempre tiveram dificuldades em fazer quaisquer coisas, sem suporte e cheio de preconceitos e estigmas.”
“Em outros países, o incentivo público, as ferramentas para desenvolver projetos e pesquisas, a qualificação, a difusão e outros gargalos da estrutura do mercado da música e arte no geral são tratados com mais zelo e responsabilidade”, afirma. “A música brasileira gerou e gera vários ícones mundo afora e poucos destes são ícones em seu próprio país.”
A falta de apoio às produções nacionais não se traduz necessariamente na falta de qualidade do produto feito aqui. Kurt Cobain, por exemplo, era fã assumido de Os Mutantes e chegou a enviar uma carta para a banda. Ynaiã está ciente disso: “A cultura brasileira é uma das mais ricas e diversas nesse sentido. Sempre que falamos que somos músicos brasileiros somos tratados de maneira respeitosa e com afago”, relata.
Enquanto isso, no underground, Moa, que além de historiador é vocalista e guitarrista da banda Síndrome Letal, se aprofunda e vai atrás das marcas deixadas por artistas negros que contribuíram para o punk rock em seus estágios iniciais de consolidação, a fim de lapidar a concepção de afropunk. “É a partir daí que eu tenho tentado desenvolver a minha pesquisa, traçando uma história da presença negra dentro do gênero.”
Segundo ele, a resistência do punk como uma cultura alternativa, à parte do que acontece no âmbito do mainstream, está diretamente relacionada com o universo da resistência preta. “O rock ainda está próximo do lugar da juventude negra, por causa do seu apelo de rebeldia, embora tenha se tornado massificado com o passar dos anos. Eu, como sujeito negro dentro do punk, acredito que o rock ainda serve para dar vazão e difundir ideias antirracistas”, diz.
Derrick Green, vocalista norte-americano de uma das maiores bandas de metal do planeta, o Sepultura, enxerga nessa vertente da música uma ferramenta potente para a união de diferentes pessoas e culturas. “Tem algo sobre a música que quebra todas as barreiras, fronteiras e pré-concepções que as pessoas criam para si mesmas. Não importa a religião, a raça ou de onde você veio, todas as pessoas conseguem se identificar com a música. É isso que me atrai.”
O vocalista estadunidense ainda diz que encontra no universo do metal um ambiente receptivo para a expressão de sua negritude. “Eu acho que a cena é muito aberta para pessoas de diferentes raças e culturas”.
Moa, entretanto, ainda percebe alguns obstáculos a serem superados no punk, mesmo já sendo um ambiente propício para a desconstrução do racismo. “Em lugares de maioria branca, independentemente de serem mais politizados, a normatividade branca vai sempre falar mais alto”, argumenta. “As coisas ainda são um pouco mais difíceis se você for um sujeito negro. O padrão é que a gente ocupe lugares de coadjuvantes. Se você monta uma banda ou um fanzine, embora as pessoas não expressem isso abertamente, a gente sente que existe um menosprezo pelo que é produzido por pessoas pretas.”
Retomada
Apesar dessas dificuldades, que não são poucas, ao que tudo indica, o rock passa por um processo de reconciliação com suas raízes negras. Bandas como Black Pantera e Punho de Mahin, formadas inteiramente por negros, tomam as rédeas do rock e do metal no Brasil e desafiam esse histórico colonialista de apropriação cultural e exclusão racial na música. “Eu acho que, aos poucos, existe uma retomada de uma identificação da juventude negra com o rock”, percebe Moa.
BNegão acredita que o rock é para todos. “Rock é expressão, e isso pode ser de qualquer viés. A pessoa tem uma visão de mundo e está expressando aquela vontade, que está vivo e solta essa energia forte na música”, afirma Negron. “É como se a galera de direita não pudesse curtir o rock.
Moacir, no entanto, entende como um problema sério a despolitização do rock. “Esse distanciamento entre a cultura do rock e a periferia fez com que o rock se tornasse inofensivo”, certifica. “O rock se despolitizou, não do ponto de vista essencial, mas do ponto de vista circunstancial, como é o caso de algumas pessoas que estão à frente de certas bandas com um discurso conservador e reacionário. Alguns integrantes de bandas que se alinharam com o governo passado são provas disso, tipo o Roger, do Ultraje A Rigor, ou o Digão, dos Raimundos”.
Trilhando um caminho mais nichado, o rock hoje recupera as características perdidas durante o processo de massificação, como a postura de contestação social e a liberdade criativa. “Tudo se transforma com o tempo, se ressignifica e caminha para outro lado e linguagem. Existem outras linguagens muito mais inovadoras e questionadoras hoje em dia no rock, a meu ver”, afirma Ynaiã.
Mesmo que dê margem para a expansão do discurso de ódio, a web também tornou-se uma ferramenta importante para esse trabalho de refletir e recuperar elementos do rock, como entende Moacir. “Eu acho que a internet, embora tenha um aspecto de esvaziar certos movimentos e tornar tudo muito estético, também facilita muito a organização desse movimento”.
Derrick Green, contestado quando foi anunciado no Sepultura, hoje conquista o respeito e a admiração de toda a cena do metal, e torna-se exemplo para os que vêm depois dele. “Eu acho maravilhoso que jovens negros têm em mim alguém para se inspirar”, se alegra.
*Estagiários sob supervisão de Nahima Maciel
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