Um relato pessoal, um documento histórico e um gesto de convocação para que mais mulheres negras entrem no espaço da política. É assim que Olívia Santana, deputada baiana (PCdoB), uma das mulheres negras pioneiras na ocupação de cargos públicos, define o livro Mulher preta na política, a ser lançado, hoje, às 15h20, no Festival Latinidades, no anexo do Museu Nacional, com a presença da autora. No livro, ela compartilha mais de 35 anos de trajetória nas lutas sociais.
Olívia ressalta que o tino de contestadora atravessou toda sua vida e a levou aos fóruns de deliberação e empoderamento. A entrada na Universidade Federal da Bahia mudou toda a jornada da então faxineira de uma escola particular. "Imaginem o que faz uma universidade na cabeça de uma faxineira, favelada e inquieta", escreve Olívia na introdução. Primeira deputada preta eleita na Assembleia Legislativa da Bahia, onde hoje exerce o segundo mandato, Olívia ingressou no poder legislativo em 2003. Para a autora, Mulher preta na política é para a autora um manifesto de suas escrevivências, conceito de Conceição Evaristo sobre a articulação entre escrita e oralidade, possibilidade de transmitir uma história e também se curar das chagas da injustiça social por meio da palavra. O livro será lançado no Rio de Janeiro, no Museu do Amanhã, e em Salvador, na Casa Mulher com a Palavra, no Instituto Goethe.
Como começou sua jornada política?
Minha vida adulta começou muito cedo. Eu trabalho desde os 14 anos de idade, então a política é uma um chamado da sobrevivência. O que girou a chave foi quando consegui passar no vestibular em 1987. Eu era uma faxineira, no dia que descobri minha aprovação estava na cozinha da cantina da escola onde eu trabalhava aqui em Salvador. Foi uma surpresa enorme minha aprovação no curso de pedagogia da UFBA. Desde então, abriu-se uma avenida de oportunidades. Lá, entrei no movimento estudantil, fiz luta pela democratização da Universidade e fiz parte de diversos movimentos antirracista na universidade. Foi um caminho sem volta, o antirracismo, o feminismo e a luta pela educação são pautas muitas conjuntas.
Qual era sua aspiração de narrar sua experiência em livro e como foi o processo de escrita?
Sempre tive muita vontade de escrever, mas achava difícil o processo de compor um livro. A agitada vida política me chama a uma ação prática concreta e integral, o que me tirou essa possibilidade de praticar minha escrevivência — conceito da autora Conceição Evaristo. Relatar minha vida refletindo sobre ela, sendo eu uma pedagoga sempre foi um desejo. Na pandemia, a escrita teve sua oportunidade de fluir. O livro não é somente sobre mim. O livro é a partir de mim, mas dialoga com outras histórias de outras mulheres negras que buscam ocupar espaço na política institucional ou estão ocupando esse espaço e enfrentando desafios de estar num lugar que não foi preparado, não foi pensado para nós. Nós somos como corpos estranhos a esta estrutura de poder. No processo de ocupação de um lugar de representação na Câmara dos Deputados, me vi em um espaço hostil. É preciso falar, escrever, chacoalhar o Brasil e mostrar que não é possível falarmos de democracia com estruturas tão impermeáveis à presença de maiorias populacionais como as mulheres.
O que representa ser uma mulher negra na política no Brasil e de onde vem a sua força para lutar na política?
Representa resistência. A mulher negra é um corpo em resistência permanente em qualquer lugar onde ela esteja. Ela resiste na vida social, sendo uma trabalhadora doméstica anônima, resiste à falta de tudo para garantir a criação de filhas e filhos tirando apenas um salário mínimo, às vezes, menos do que isso. Ela resiste quando luta para poder estar em lugares não formatados para nós. A luta em defesa das cotas, por exemplo, tem conseguido arrombar as portas da academia e a mulher negra resiste quando ocupa um lugar muitas vezes solitário. Que é como eu me sinto muitas vezes na Assembleia Legislativa da Bahia. Portanto, esse é um esforço muito grande, é duro, não é uma presença fácil porque nós somos pouquíssimas mulheres. Dói, mas também me faz pensar que posso sair desse lugar, tenho que entrar para frente. Eu tenho que lutar para que essa parede possa ser destruída.
Você se define como uma contestadora. Quais foram os momentos de maior contestação, marcantes, na sua prática política?
Desde lutas antirracistas nas ruas, como ter participado do movimento Brasil outros 500, até a situação da minha candidatura, que foi construída coletivamente numa longa jornada. Em 1996, tentei ser candidata. O partido não deu legenda, então voltamos no ano 2000, quando consegui fazer essa presença como candidata. Isso só de deu por pensar com outras companheiras e companheiros negros uma nova visão no PCdoB. Essa agenda foi uma luta tanto para dentro como para fora, e, durante as três eleições que eu participei e não fui eleita, o partido acabou crescendo em consciência junto conosco e hoje não sou só eu eleita aqui na Bahia, mas outras companheiras eleitas em outros estados que também são fruto do coletivo sobre a necessidade do empoderamento de mulheres pretas nos espaços de representação até internamente. O racismo e o sexismo contaminam todas as instituições, inclusive os partidos.
Qual sentimento essa responsabilidade gera em você?
É um sentimento contraditório. Muitas vezes, sinto como define Patricia Hill Collins, um outsider interno. O sentimento de que, ao mesmo tempo, que você é presença, também se sente fora. Penso na assembleia, às vezes: que falta faz a presença de outras mulheres pretas aqui ao meu lado. Em determinados momentos, há este sentimento de solidão mas ao mesmo tempo, quando eu estou com minhas companheiras, mulheres em geral, recebo mensagens tão fortes sobre como as inspiro, que de alguma forma elas se sentem orgulhosas de eu estar naquele lugar. A consciência do meu papel, muitas vezes, vem disso. Certa vez, uma vendedora ambulante —mulher preta — estava com seu isopor vendendo na barra e quando eu passei caminhando ela falou. "Ei, você é aquela deputada? Bota para quebrar, quero ver você lá, votei em você para me representar porque eu me sinto representada por você!" Então, atravessei a rua e dei um abraço nela. Momentos assim me fortalecem, me alimentam. Eu insisto porque acho que posso ser como uma andorinha, individual, sim, mas eu sempre articulada com outras tantas. É uma responsabilidade grande, mas que, ao mesmo tempo, é bonito poder é inspirar outras companheiras a vir para essa trincheira a não desistir a seguir em frente a insistir teimar arrumar portas, porque só assim a gente vai conseguir fazer essa roda da história avançar
Nos parlamentos, a representatividade feminina e do povo brasileiro de uma forma geral é insuficiente. O que fazer para quebrar essa barreira?
A mudança que nós precisamos é estrutural, ela passa por uma consciência ampla. O movimento de baixo para cima que vai transformar o Brasil. Eu não acredito que a elite, a classe dominante brasileira, vai simplesmente ceder o seu poder. Afinal, é conveniente para ela a presença da estrutura acomodada secularmente hegemonizada por pessoas ricas, homens na sua grande maioria. A desejada concessão de espaço só se dará a partir dos movimentos populares, quanto mais crescer a luta feminista, a luta antirracista, a luta da classe trabalhadora, mais espaço será conquistado. O povo brasileiro precisa de mais consciência política para não se ver tão vulnerável às correntes de pensamento reacionárias obscurantistas. Nós temos que saber defender a democracia, temos que ter justiça social, nós não podemos ter a democracia como um conceito descolado da realidade. O povo brasileiro tem estado muito desesperançoso, não é possível continuar com a fome, com a miséria e com a pobreza extrema. Temos que enfrentar isso mergulhando em movimentos sociais, fortalecendo as redes sociais, fortalecendo os canais de participação popular. As mulheres, os negros e negras, os indígenas precisam estar na política. Quanto mais a política se aproximar do povo, das pautas de transformação social da vida deste povo, mais o país ficará seguro.
O que você diria para as pessoas que estão desalentadas ou desistem de lutar pelos direitos e por um país mais justo?
Diria que elas precisam entender que fora da luta não há salvação. É a luta que transforma. Não podemos sucumbir ao desalento. Nós temos que colocar nossa insatisfação e fragilidade social no lugar dinâmico do agir coletivo. É não se deixar só. Participar de associações de moradores, de sindicatos, de grupos de mulheres, conectar com grupos de movimento negro. Aqui no Nordeste a gente tem o ditado que diz: Caititu fora do bando vira comida de onça. Então, é preciso estar em coletividade, é preciso se fortalecer, conectando com outras e outros que estão em movimento em luta para transformar a sociedade, o seu estado e o seu país.
*Estagiária sob a supervisão de Severino Francisco
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