Em 1958, o Brasil começava a mostrar a sua cara para o planeta com a conquista da primeira Copa do Mundo de Futebol, depois da vitória contra a Suécia. A batida diferente da bossa nova passava a ecoar para além dos apartamentos de Copacabana com a gravação do álbum Chega de Saudade, do cantor João Gilberto, e Brasília, a moderna capital federal idealizada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, entrava em ritmo acelerado de construção.
O teatro brasileiro se mostrava polarizado entre a inspiração no modelo europeu pregado pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e o nacionalismo exacerbado do Teatro de Arena, representado por, entre outros, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, que despontou naquele ano com a peça Eles não Usam Black-Tie.
É neste cenário, disposto a implantar um modelo inovador, que o jovem José Celso Martinez Corrêa aposenta o terno e a gravata de futuro advogado para adotar o figurino de artista.
Junto a outros colegas da faculdade de direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), entre eles o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad, ele funda o Teatro Oficina, uma companhia que atravessa diversas vertentes ao longo das seis décadas seguintes e conecta as artes cênicas brasileiras às vanguardas internacionais em uma proposta crítica e provocadora.
Zé Celso, como ficou conhecido, nasceu em Araraquara, no interior paulista, em 30 de março de 1937, e cresceu em uma família de sete irmãos comandada por uma mãe rigorosa, de pulso firme, e um pai sensível, fascinado por cinema e literatura.
Os primeiros textos montados pelo Oficina, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), são de sua autoria e trazem fortes inspirações biográficas. A partir do processo de profissionalização, o Oficina passa a encenar grandes expoentes da dramaturgia universal com uma linguagem muito própria, na busca de espelhar os conflitos tratados à realidade brasileira.
Ao longo do tempo, o Oficina passa por diferentes formações e características, mas sempre tendo Zé Celso como mentor e figura central.
Nome de resistência à ditadura militar deflagrada em 1960, o ator, diretor e dramaturgo mergulhou nas ideias da contracultura em busca de um teatro combativo e, sempre cercado de polêmicas, construiu uma das trajetórias mais expressivas do meio artístico brasileiro.
Zé Celso Martinez Corrêa saiu de cena aos 86 anos, nesta quinta-feira (6/7). Ele sofreu graves queimaduras em um incêndio em seu apartamento no bairro paulistano do Paraíso, onde morava com o marido, o ator Marcelo Drummond.
O diretor deixa uma obra que ajuda a definir o moderno teatro brasileiro e, a seguir, listamos dez pontos que ajudam a compreender o importante legado de Zé Celso para a cultura brasileira, seja através de seu teatro ou de suas atitudes.
Pequenos Burgueses (1963)
O primeiro grande sucesso do Teatro Oficina teve origem na peça do dramaturgo russo Máximo Gorki (1868-1936), escrita em 1900. A sólida dramaturgia possibilitou a Zé Celso trabalhar em uma releitura que travasse um diálogo entre a Rússia do começo do século 20, anterior à revolução, e o Brasil às vésperas de um iminente golpe militar.
Os conflitos de uma família e suas diferentes correntes de pensamentos norteiam a trama. Zé Celso usou as memórias emotivas do elenco para que cada um compusesse o personagem com base em suas vivências. Era o método Stanislavski, criado pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938), aplicado nos palcos brasileiros.
A crítica da época considerou Pequenos Burgueses o mais perfeito espetáculo realista já feito no país e, em suas diversas temporadas, a peça contou com atores como Raul Cortez, Renato Borghi, Célia Helena, Ítala Nandi, Betty Faria, Fernando Peixoto, Cláudio Marzo e Beatriz Segall, entre outros.
O Rei da Vela (1967)
Escrita por Oswald de Andrade em 1937, a peça do escritor modernista permanecia inédita nos palcos até o ator Renato Borghi descobri-la em um livro antigo e mostrá-la para Zé Celso.
A história gira em torno de um agiota (interpretado por Borghi) que enriqueceu emprestando dinheiro a juros altíssimos aos endividados que volta e meia batiam a sua porta.
A pertinente crítica ao capitalismo foi preenchida de metáforas que criticavam a submissão dos brasileiros ao crescente autoritarismo dos militares.
A encenação vibrante e alegórica reforçava os conceitos da antropofagia de Oswald de Andrade e impulsionou a estética tropicalista que despontava no cinema, nas artes plásticas e, na sequência, ganharia o grande público no movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Considerada um marco do teatro nacional, a peça foi revisitada por Zé Celso em 2017, em comemoração dos 50 anos da estreia, tendo o mesmo Borghi à frente do elenco.
Roda Viva (1968)
O jovem cantor e compositor Chico Buarque era uma unanimidade nacional até Zé Celso cruzar o seu caminho. Alçado ao posto de astro com o sucesso da canção A Banda, Chico decidiu escreveu uma peça de teatro para criticar o mundo do showbiz através de um cantor (interpretado pelo ator Heleno Prestes) que conhece a fama e cai em desgraça ao ser devorado pela mídia.
O diretor aboliu as metáforas e sutilezas e criou o que foi chamado de "teatro agressivo". O elenco avançava sobre a plateia caminhando entre os braços das poltronas, em uma das cenas os atores despedaçavam um fígado de boi cru e imagens religiosas, como a da Nossa Senhora, surgiam idealizadas, rebolando de biquíni.
O público ficou chocado, os militares arregalaram os olhos e Chico Buarque virou um dos alvos favoritos da censura. Em 18 de julho de 1968, durante a temporada paulistana de Roda Viva, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), organização paramilitar de direita radical, invadiu o Teatro Ruth Escobar e agrediu parte do elenco, que contava com nomes como o da atriz Marília Pêra.
Três meses depois, em apresentações em Porto Alegre, alguns atores, além de espancados e presos, foram vítimas de sequestros, sepultando a carreira do espetáculo.
Gracias, Señor (1972)
A estreita convivência com o The Living Theatre, companhia americana liderada pelo diretor Julian Beck e pela atriz Judith Malina, que visitou o Brasil entre 1970 e 1971, ampliou profundamente os horizontes de Zé Celso.
A nova ordem no teatro de vanguarda internacional era a negação da dramaturgia convencional, a dispensa do texto formal em nome de uma encenação improvisada e ritualística influenciada pelo ambiente.
Esta mentalidade foi a base de Gracias, Señor, uma colagem de textos estruturados em um jogo dramático que causava surpresa ao público.
Em uma das cenas, a atriz Maria Alice Vergueiro carregava um porquinho em seus braços e, em outros, o público era estimulado a gritar, dançar e até podia ser arrastado por uma corda. Tamanha experimentação criou uma crise dentro do próprio grupo e, nesta cisão, Renato Borghi deixou o Oficina.
Dois anos depois, Zé Celso seria preso e torturado, partindo para o exílio em Portugal e Moçambique, de onde voltaria em 1978.
Ham-Let (1993)
Depois de atravessar a década de 1980 quase em silêncio, dedicado a cursos de formação de atores, Zé Celso voltou aos palcos com a peça As Boas, em 1991, contracenando com Raul Cortez e Marcelo Drummond, todos em personagens femininas.
A explosão da conhecida potência criativa, porém, se deu em Ham-Let, adaptação da tragédia de William Shakespeare, que inaugurou o Teatro Oficina depois de uma extensa reforma comandada pela arquiteta Lina Bo Bardi por uma década.
A encenação durava mais de cinco horas e fundia a poesia de Shakespeare a uma trilha sonora repleta de samba, bossa nova e rock’n’roll para contar a história do atormentado príncipe (representado por Drummond) em conexão com o Brasil da fome e das chacinas.
As Bacantes (1995)
Sonhada por Zé Celso há mais de uma década, a encenação As Bacantes, peça do grego Eurípedes, estreou no Teatro de Arena de Ribeirão Preto para mais de 2500 pessoas. Em uma das cenas, a jovem atriz Leona Cavalli, sentou-se no colo do político Antônio Palocci, que, na época, era prefeito da cidade paulista.
A grande ousadia do elenco, no entanto, se deu durante uma apresentação no Rio de Janeiro, em 1996. Como de praxe, um espectador desavisado era arrastado para os holofotes e despido pelo elenco como em um ritual antropofágico aos olhos dos demais espectadores.
Diante da presença de Caetano Veloso na plateia, não deu outra. O cantor e compositor teve sua roupa arrancada por um grupo de atrizes, a polêmica tomou conta da mídia e até inspirou Adriana Calcanhotto a compor a canção Vamos Comer Caetano.
O embate com Silvio Santos
Em 1980, o empresário e apresentador de televisão comprou vários terrenos nas ruas Jaceguai, Abolição, Santo Amaro e Japurá, em um grande quarteirão do bairro paulistano da Bela Vista.
O projeto inicial era construir um shopping center na esquina entre as ruas Jaceguai e Abolição, exatamente ao lado do Teatro Oficina, o que, segundo Zé Celso, tiraria a visão e a iluminação natural da enorme janela de vidro que ladeia o espaço cultural. O diretor, por sua vez, reivindicava a área para a instalação de um parque público.
Silvio Santos, na metade da década de 2010, desistiu do shopping e comunicou intenção de levantar duas torres residenciais na área de quase 11.000 metros quadrados.
Zé Celso convocou a classe artísticas, as manifestações tomaram conta do bairro e mostraram engajamento nas recentes redes sociais e nem um tijolo foi empilhado.
O embate atravessou quadro décadas sem vitória para nenhum dos lados e, diante da teimosia e da persistência de Zé Celso em não se calar, muitas vezes Silvio Santos deixou o ringue enfraquecido.
Os Sertões (2002/2006)
O projeto teatral mais ousado e trabalhoso de Zé Celso foi a transposição para o palco do romance de Euclides da Cunha publicado em 1902. Dividida em três espetáculos, A Terra, O Homem e A Luta, a versão teatral enfoca respetivamente o cenário da cidade de Canudos, no sertão baiano, os personagens envolvidos na mobilização religiosa e popular que assustou os poderosos de um período de transição entre a monarquia e a república e, por fim, a batalha em si que destruiu a comunidade e matou quase 25 000 pessoas.
Zé Celso interpretou o líder religioso Antônio Conselheiro, secundado por um elenco de mais de quarenta atores, na trilogia que ganhou a cena no Teatro Oficina entre os anos 2002 e 2006.
Com Os Sertões, o diretor aproveitou para trazer à tona a discussão sobre a força predatória do capitalismo no mundo globalizado e cutucar os defensores da especulação imobiliária e o apresentador Silvio Santos, que, inclusive, era representado em cena.
Fausto (2022)
Apresentado entre agosto e setembro de 2022, no calor da disputa presidencial envolvendo Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, Zé Celso encenou o texto do dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593) para trabalhar a dicotomia entre o bem e o mal.
Cada sessão, no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros, em São Paulo, era como um show de rock, com entusiasmadas manifestações da plateia, que não economizava aplausos ou gritos.
Na trama, um médico ambicioso, empenhado em obter uma sabedoria cada vez maior, faz um pacto com o diabo.
Na versão do diretor, Fausto é um brasileiro que enfrenta uma grande travessia depois de sair de uma pandemia e de um governo despótico com o objetivo de chegar a um lugar onde seja possível respirar ventos mais democráticos.
Casamento: o ato final
Em uma grande manifestação contra a homofobia, o último ato criado e protagonizado por Zé Celso se deu em torno de um episódio de sua vida real e teve fortes tintas políticas.
Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a união de quase 37 anos com o ator Marcelo Drummond em um grande evento midiático para provocar o conservadorismo no Teatro Oficina.
Centenas de convidados, entre artistas, políticos e intelectuais, celebraram o casamento de Zé Celso e Drummond, que teve performances das atrizes Bete Coelho e Leona Cavalli e números musicais com as cantoras Daniela Mercury e Marina Lima, além da participação da bateria da escola de samba Vai-Vai.
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