Entrevista

Luiz Carlos Barreto, aos 95 anos, detalha projetos e ataques à cultura

Em entrevista ao Correio, Luiz Carlos Barreto fala sobre as comemorações dos 60 anos de uma das mais importantes produtoras do país e sobre as políticas para o cinema no novo governo

Ricardo Daehn
postado em 12/07/2023 09:00 / atualizado em 12/07/2023 09:10
Luiz Carlos Barreto: o cinema tem de ser um pensamento largo
 -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Luiz Carlos Barreto: o cinema tem de ser um pensamento largo - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Inovação e regularidade de produção em cinema marcam uma empresa, que chega aos 60 anos de criações, com méritos como os de dois filmes brasileiros finalistas ao Oscar: O que é isso, companheiro? e O quatrilho. A LCBarreto terá, num ciclo de comemoração até 2024, retrospectivas no Lincoln Center (Nova York) e homenagens que se estendem do segmento Cannes Classic (no Festival de Cannes) até a cinemateca de Portugal, passando ainda pelo Festival de Berlim. "Começamos com o Cinema Novo, e com diversificação, trouxemos ciclos que tocaram a Embrafilme, seguiram por experimentalismo e atenderam ao mercado. Um bom filme tem que chegar na hora certa, quando o público se disponha a ver determinado assunto. Cinema é uma indústria e todo o filme tem que ser feito para o mundo", explica um dos pilares da empresa, a produtora Lucy Barreto, 90 anos.

No catálogo da produtora que leva as iniciais do mestre Luiz Carlos Barreto, 95 anos, 70 dos quais ao lado da esposa Lucy, figuram fitas como Bye Bye Brasil (1980), Garrincha — Alegria do povo (1963), Bossa Nova (2000), Dona Flor e seus dois maridos (1976), Isto é Pelé (1974) e Flores raras (2013). "Filmamos o Brasil do extremo Norte ao extremo Sul. Foram 30 adaptações literárias, num universo de 150 títulos", detalha Luiz Carlos, pela vida, conhecido como Barretão. "Para mim, ele é o Barretinho", brinca dona Lucy, desde já empenhada num projeto de transportar para a precisa definição de 4K, os 20 títulos mais emblemáticos da LCBarreto. A produtora ainda trará para a telona, Vovó ninja (com Glória Pires), Deus ainda é brasileiro (novo filme de Cacá Diegues) e Traição entre amigas (baseado em Thalita Rebouças, com Larissa Manoela).

Uma vez que sempre condicionou parte da criação do cinema novo à bagagem jornalística, Luiz Carlos Barreto, que em meados dos anos 1950 foi repórter de O Cruzeiro, na conversa com o Correio, salienta o convívio com Chateaubriand. "Ouvia ele dizer que ficaria pobre (risos) por apostar e insistir na defesa do intuito (no século 19) de Hipólito José da Costa, entusiasta do consumo de informações geradas pelo (e no centro) político do país". 

Ponto a ponto // Luiz Carlos Barreto

Raízes da animação

A ministra Marina Silva sabia do projeto Amazônika e o considera algo que tem que ser realizado. Ele nasceu de uma pesquisa envolvendo arqueologia. Equipes na região Amazônica, em Belo Monte, detectaram traços de civilização oriental. A partir disso, estamos há cinco anos orientando pesquisas. Temos essa floresta de que todo mundo fala, mas ninguém sabe como surgiu. Trataremos de história e pré-história da região, em uma série de filmes de animação. Traremos a riqueza de explorar as riquezas das lendas.

Sobre Pelé

Pelé será eternamente o rei do futebol. Jogador igual a ele e ao Garrincha, quem viu, viu, quem não viu não verá mais. Garrincha e, sobretudo o Pelé — que soube cuidar da carreira dele, como atleta e como cidadão. Não digo, com humildade; mas, com sabedoria mineira — ele jamais deixou de ser um mineiro de Três Corações. Acompanhei  a vida do Pelé desde os 16 anos e a Paula (minha filha) acabou casando com o discípulo pré-direto do Pelé, que era o Claudio Adão. Sendo assim, Pelé faz parte da nossa vida, da nossa família.

Futebol

Fizemos um piloto de programa para ensinar a jogar futebol, num resgate deste empenho. Mostramos para o presidente da CBF (Ednaldo Rodrigues). Ele se tocou da necessidade de dar consequência a isso. Eu disse: "Este futebol que estamos jogando, todo mundo joga. Temos que recuperar a maneira de o brasileiro jogar. Brasileiro gosta de driblar, se livrar, criar situações. É um futebol criativo, longe do automático". Sugerimos uma campanha com imagens icônicas até os anos 1990; daí poderia haver escolinhas que fossem monitoradas por antigos grandes astros do futebol. 

Ataques culturais

O setor da cultura foi o mais atacado pelo bolsonarismo, que se mostrou competente nisso. Na análise deles, era o segmento mais importante. Olavo de Carvalho sabia da importância. Era preciso desmontar um esquema de produção cultural, na visão dele. No governo Collor foi dado início ao ataque ao setor cultural, sobretudo, no cinema, na música e no teatro — onde reside a comunicação de massa. Desmontaram uma produção, livre, não preconceituosa. Houve, sim, governos que respeitaram os princípios constitucionais. Houve uma intenção de fomento. Sem utopia não se constrói nada. Estabelecemos, com o cinema, uma coisa concreta. O projeto do Grupo Executivo da Indústria do Cinema (à época do governo Fernando Henrique) iria definir caminhos, numa construção estipulada para o desenvolvimento ao longo de duas décadas.

Desvios

Entre 2002 e 2007, foram respeitados os moldes da medida provisória 2228-1 (da criação da Ancine), ainda que não votada. Houve o somatório de uma experiência profunda que reuniu distribuidores, produtores e exibidores de cinema, além da televisão. Mas instruções normativas ativaram um emaranhado burocrático insuportável. Mais de 4 mil contas ficaram sem análise pelo órgão. Em 2018, Tribunal de Contas detectou a irregularidade e paralisou a Ancine. O Manoel Rangel (ex-diretor-presidente da Ancine), um homem de esquerda, nacionalista, com probidade à toda prova, promoveu um período em que a corrupção passava longe da Ancine. Mas veio a volúpia de poder desmesurada. A Ancine começou a ser transformada num bicho de sete cabeças. Houve mudança ilegais de curso das esferas e das atribuições, houve mais de 100 emendas na medida provisória. Todas prejudicaram a operacionalidade da Ancine.

Maldades

O Bolsonaro deve ter uma frustração muito grande de não poder fazer tantas maldades que ele tinha na cabeça dele com o cinema porque elas já estavam feitas. A estrutura já estava totalmente desgovernada. O cinema nacional é tão vigoroso que, a classe, num amálgama forte, levou adiante o cinema nacional contra todas as adversidades. A Ancine é uma agência de regulação e de fiscalização, e a ela foi acrescido um poder de fomento, e isso é irregular. O Fundo Setorial do Audiovisual (usado largamente) não existe, legalmente. Administra quase R$ 2 bilhões, por ano! Os fundos são impedidos de serem criados, pela Constituição. Os dirigentes transformaram a Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico) em um recurso público. O dinheiro da Codecine, que deveria passar alimentar o cinema, passou a ser aplicado no Fundo Nacional de Cultura, numa tentativa de dirigismo — isso sem conhecimento do governo. O cinema tem que ser livre e independer de direita ou esquerda. O cinema é uma atividade ampla, de pensamento largo. Como dizia Roberto Rosselini: "O cinema é a alma de cada país".

Irregularidades

A equipe atual da cultura começou muito bem. Reconstituíram traços reguladores da atividade e há estudo de outra forma de fomento, aparte do da Ancine. Há esforço em colocar nos trilhos o programa para o desenvolvimento do setor. Em 2022, Brasil deveria fechar o ano movimentando US$ 60 bilhões, na indústria de entretenimento. Fechou em US$ 35 bilhões, com a repressão. O Brasil voltou hoje a ser uma colônia cultural.

Cultura sitiada

Estamos mais que invadidos. Fizemos uma regressão num mercado sem regulamentação e o trabalho, no cinema, a ser feito pela Ancine não está acontecendo. Setenta por cento dos funcionários da Ancine, ideologicamente, são bolsonaristas. Parte dos funcionários do TCU também estão em desacordo com determinações. Existe um estado anárquico. A luta toda do cinema brasileiro foi o de conquistar o seu próprio mercado. Isso foi conseguido na época da Embrafilme. Chegamos a alcançar 42% do mercado. Dona Flor e seus dois maridos (1976) foi um filme revolucionário no mercado. Batemos Tubarão, do Spielberg. Hoje, não temos nem 1%. Isto é um escândalo. Deveria haver punição para aqueles que deixaram isso acontecer — até com fuzilamento (risos).

Racismo zero

A resposta foi dada pela minha filha Paula. Na prática, ela é fruto de uma educação que nós a demos: ela casou com um negro, tem filhos negros, tem netos negros e nós temos bisnetos negros Estou, em matéria de racismo, aliás, nós estamos, zerados (risos).

Nada unânime

Lula, o filho do Brasil (2009) enfrentou o princípio da radicalização da política. Você não faz ideia de como fomos atacados e ameaçados pelas redes sociais, durante a produção e o lançamento do filme! Nós contratamos seguranças para os nossos netos — eram ameaças de terroristas, isso em 2009!

Abominação

Não sou usuário de rede social. Abomino e acho uma excrescência a rede social. Mas a fake news — a mentira, nela — é quase inevitável. Muitas vezes a imprensa distorce um acontecimento para servir a determinada linha política. A notícia falsa é um crime inafiançável e imperdoável e que deveria se atrelar a penalidades muito mais severas. Ela atinge no âmago da reputação das pessoas. Meu ódio é tanto da rede social que não sei nem me expressar. Acho que ela deveria ser abolida (risos).

Desenvolvimento incondicional

Chateaubriand foi a maior vítima da fake news. Falava-se mentiras e mentiras acerca dele. Era um patriota e um nacionalista com qual convivi quase que, fielmente. Ele tinha cuidado especial com as questões mais importantes do Brasil. A aviação, a navegação devem muito a ele. Ele atentava para problemas como o do carro pipa que deslocava gasolina, gastando gasolina para chegar aos lugares!... Ele criou o sistema de comunicação dos Diários Associados — que funcionou como uma grande rede social da época. Uma rede social a ser buscada: o cidadão tinha que tomar a iniciativa de buscar a informação. A informação não deve ser impingida. Rádio, televisão, revista e jornais foram criados por Chateaubriand.

 

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