MÚSICA E LITERATURA

Livro detalha trajetória de Alceu Valença, um dos maiores nomes da MPB

Em 'Pelas ruas que andei — Uma biografia de Alceu Valença', Julio Moura dá a senha para desvendar os segredos de um dos maiores artistas vivos da música popular brasileira

José Carlos Vieira
postado em 01/07/2023 00:01 / atualizado em 01/07/2023 12:57
 (crédito:  Rafael Strabelli/Divulgação)
(crédito: Rafael Strabelli/Divulgação)

De Campina Grande, na Paraíba, o pernambucano Alceu Valença conversa com o Correio sobre sua biografia recém-lançada, escrita pelo jornalista Julio Moura. Acabara de se apresentar no maior São João do mundo. Mas antes, ao telefone, matou a saudade de Brasília ao cantar o clássico Plano Piloto. "É Asa Norte, é Asa Sul, é avião/ É Lago Norte, é Lago Sul, é construção/ Pau de Arara, pioneiro da nação/ É Alvorada, é Taguatinga, é solidão", de sua autoria e de Carlos Fernando. Alceu carrega no sotaque uma ancestralidade nordestina inconfundível, com fala acelerada, como a dos repentistas e emboladores que se apresentam nas feiras do mundo.

Em Pelas ruas que andei — Uma biografia de Alceu Valença, Julio Moura dá a senha para desvendar os segredos de um dos maiores artistas vivos da música popular brasileira. O pesquisador mapeia toda a trajetória de Alceu. As andanças, as aventuras, os amores e as amizades, tendo como cenário um Pernambuco mitológico, onde viviam grandezas como o genial Capiba e o poeta Carlos Pena Filho. Pelas ruas que andei é uma parceria da Relicário Produções Culturais e Editoriais com a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

"Deixei Julio totalmente à vontade para fazer a pesquisa. Ele vem trabalhando comigo há muito tempo (desde 2009), como assessor de imprensa. Viajou muito ao meu lado, conheceu a cidade onde nasci, São Bento do Una, visitou várias vezes o sítio da Fazenda Riachão, que era de meu pai. Chegou a participar do meu filme, A luneta do tempo, e conheceu toda a cultura do Nordeste profundo — o agreste e o sertão", destaca Alceu Valença.

Caatinga

A riqueza da apuração impressiona desde as primeiras páginas. "Julio pesquisou desde a história do meu avô, que era cordelista", acrescenta o cantor, que relembra ao Correio momentos da infância. "Quando pequeno, ouvia os aboiadores no campo, eles correndo a cavalo e cantando no meio da caatinga; Julio também viu isso pessoalmente nas filmagens de Luneta do tempo. Ele conheceu a fundo a cidade de São Bento do Una, as casas onde morei... Conheceu meus parentes, que contaram causos sobre mim (risos), visitou o local onde era o Cine Teatro Rex — que hoje virou um mercado —, a feira da cidade. Foi a feira que me apresentou os sanfoneiros, os emboladores... Eu era menino, e via na feira o cego de rabeca; no Rex, ouvia as músicas de Luiz Gonzaga."

As memórias são-bentenses estão fortes em Alceu. "São Bento era uma cidade que tinha um nível de vida muito bom, porque era quase uma aldeia, como no livro Cem anos de solidão (de Gabriel García Márquez), porque lá não passava estrada, a gente tinha que ir para Belo Jardim (a 25km) pegar o trem, ou então para Garanhuns (a 54km). São Bento era uma cidade que criou uma cultura própria, uma quantidade de escritores per capita enorme. Foi no cinema de São Bento, o Cine Teatro Rex, que, ainda criança, cantei num festival de música. Perdi o festival, mas adorei a ribalta", confessa.

O trabalho do biógrafo segue para outras cidades onde a família Valença morou. "Julio foi para Garanhuns, viu o colégio que estudei e a estátua de Dom João Moura, onde eu meti o dedo no olho da estátua quando era pequeno (risos). Depois conheceu a Rua dos Palmares, no Recife, quando papai e nossa família se mudaram, depois que ele passou para o cargo de promotor. Como pesquisador, ouviu todos os meus parentes e amigos do Recife e os de Olinda. Ele foi narrando o livro ao longo do tempo de maneira natural, pois conhecia toda minha trajetória", reforça Alceu. Além de toda a pesquisa pessoal e afetiva, Julio e equipe fizeram um levantamento apurado nos principais jornais da época, como o Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio, no Recife.

Mas o que ficou, no Alceu de hoje, daquele menino nascido em São Bento do Una, que amava o circo e o cinema? "No meu filme Luneta do tempo retrato toda essa memória. Quando criança, em São Bento, tinha vontade de fugir com o circo. Ia lá de tarde, via os meninos daquelas famílias e queria ser igual a eles. Sou um circense até hoje, vivo na estrada, não há um local onde eu paro muito tempo. Está tudo presente na minha vida. Eu me inspirei na cultura do agreste e do sertão profundo, me inspirei no Recife, que é a coisa mais litorânea, que é o carnaval, o frevo que passava em minha rua, o maracatu de origem mais africana, os blocos indígenas de lá, os caboclinhos, tudo isso está marcado na minha alma, na minha memória e está tudo na minha obra", diz. "No São João, sou baião, xote, xaxado, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Quando chega o carnaval, sou Nelson Ferreira, sou maracatu, frevo, Capiba..."

Alceu é também cosmopolita, estudou nos Estados Unidos, viveu em Paris e em outras grandes cidades, sem nunca perder a elegância de um autêntico nordestino. Ele está voltando para Europa, onde cumprirá uma agenda cheia de shows a partir de setembro. "Anote aí, o xote, o xaxado e o baião estão tomando conta do mundo! Há dezenas de festivais de forró pela Europa. As pessoas de lá conhecem tudo da cultura brasileira, todas as músicas, Sabe por quê? Por causa da internet, que leva a música do Nordeste para o planeta."

Panteras Negras

Um dos momentos tensos na biografia foi a prisão do ainda estudante de direito Alceu. "Nós éramos de um diretório universitário contra a ditadura. Queriam nos intimidar", relata (confira trechos do livro). Outro evento relevante foi a visita clandestina à sede dos Panteras Negras, nos Estados Unidos. "Foi em Boston. Passei num concurso para estudantes de todo o Brasil para fazer um curso nos EUA, inclusive tinha um aluno de Brasília, Maerle Ferreira Lima, sociólogo que virou professor da Universidade de Brasília (UnB). E parte desse grupo foi nessa visita. "Fomos escondidos para conhecer (a sede), um dos integrantes dos Panteras gostava de citar a filósofa socialista e escritora Angela Davis para destacar que o preconceito contra os negros americanos era muito mais por uma questão econômica. Isso ficou na minha cabeça. É racial, mas econômico."

A biografia destaca nomes fundamentais para carreira de Alceu, como as parcerias com Geraldo Azevedo, Lula Côrtes, Paulo Rafael e Zé Ramalho. Nos anos 1970, Alceu era conhecido por emplacar duas obras-primas da MPB. Os discos Vivo! (1976) e Espelho cristalino (1977). Mas com Coração bobo (1980) a carreira se agigantou. "Foi no Festival Abertura que apareci para valer. Depois fui morar em Paris e, na volta, assinei contrato com a gravadora Ariola e com o disco Coração bobo, o sucesso veio, foi um pipoco!

Duas perguntas para Julio Moura

Como foi o processo de pesquisa para a preparação da biografia?

Eu pensava em fazer uma biografia de Alceu desde que comecei a trabalhar com ele, no início de 2009. Além de sempre ter alimentado a ideia de escrever um livro sobre um grande nome da música brasileira, percebi uma lacuna sobre a geração surgida no Nordeste na década de 1970, e alimentei a expectativa de ajudar a preenchê-la ao longo desse tempo. Claro que esta vivência foi decisiva, mas o livro não se compõe apenas dela. Tive acesso a uma robusta pesquisa que reuniu artigos, entrevistas e críticas veiculadas desde a década de 1970 na imprensa brasileira, e mesmo internacional. Procurei contemplar ambas as perspectivas — vivência pessoal e distanciamento histórico — na elaboração do conceito e da narrativa do livro.

Quais momentos na trajetória de Alceu você define como marcantes no livro?

Por sua personalidade forte, suas opiniões contundentes, a defesa intransigente de sua identidade e, a partir dela, a disposição de partir para o bom combate por suas convicções, a recusa sistemática em submeter-se às imposições do mercado, ele teve diversos momentos de tensão com gravadoras. Envolveu-se com a política (participou intensamente do movimento pelas Diretas Já, nos anos 1980, esforçou-se por mobilizar a classe pela criação de um partido da MPB), com o esporte (jogou basquete pelo Náutico e pela seleção pernambucana antes de trilhar a carreira artística), fez cinema, jornalismo, literatura. Encontrou-se com os panteras negras nos EUA, estava no palco quando uma das bombas explodiu no Riocentro durante o governo militar, dentre outros episódios.

TRECHOS

O concurso de cantores

O doidinho de dona Adelma foi inscrito no concurso pela tia Ademilda. Acompanhado por consagrados músicos locais, entre os quais tio Rinaldo no violão, apresentou para o distinto público do Cine Rex a marcha carnavalesca É frevo, meu bem, de autoria do maior compositor do gênero, Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba. Para surpresa de doutor Décio e dona Adelma, Alceu foi calorosamente aplaudido pelo auditório.

O rei Luiz Gonzaga

A fidelidade aos fundamentos ensinados pelo Rei do Baião permanecia soberana: "Eu gostava mesmo era de Luiz Gonzaga. Era um universo muito mais próximo àquele que me formou. Luiz parecia com os caras que tocavam xotes e toadas nas feiras da minha infância, foi capaz de representar como ninguém a cultura musical do Agreste e do Sertão.  Sempre me identifiquei profundamente com aqueles aspectos, estão todos em meu inconsciente. Luiz Gonzaga é a síntese de tudo aquilo. É como se ele fosse o meu avô".

Carnaval no Recife

Já nos primeiros carnavais no Recife, a folia cativou o menino. A Rua dos Palmares era passagem obrigatória dos blocos de frevo, maracatu e caboclinhos, e o guri seguia atrás das agremiações, entre os oitis, mangueiras e pés de sapoti ao longo da via sem calçamento: "Eu desconhecia a existência dos blocos. Como eles passavam sempre perto de casa, apelidei Palmares de rua carnavalódroma", recorda.

O violão aos 16 anos

Alceu arregalou os olhos quando Adelma puxou-o pela mão diante da Rei da Voz. A Rua da Concórdia reúne, ainda hoje, diversas lojas de instrumentos musicais no coração do Recife. Adelma indicou o interior do estabelecimento: "Escolha seu instrumento". Sem pensar duas vezes, adentrou como um Veloz HP. Apontou para o vendedor, antes que a mãe mudasse de ideia: "Eu quero aquele ali". Com receio de extrapolar a planilha financeira da família, e temendo alguma reação contrariada de Décio, indicou um modesto cavaquinho. A mãe interveio: "Meu filho, este é muito pequeno. Você merece um violão de verdade". Incrédulo, Alceu saiu da loja com o violão nas costas.

Estudante de direito

Na eleição para o Diretório Acadêmico de 1968, Alceu apoiou o candidato José Thomaz Nonô, que disputava a simpatia dos alunos voto a voto com outro postulante, ligado à ala conservadora da universidade. Alceu circulava pela política estudantil, mas evitava cerrar fileiras em qualquer frente. Admirava a figura revolucionária de Che Guevara, sem aderir aos anseios utópicos de colegas que chegavam a vislumbrar uma guerrilha a partir dos lajedos do Agreste pernambucano. "Aqui não tem pra onde correr, não tem Sierra Maestra em São Bento do Una", resignava-se. (...)

O cortejo (de estudantes) seguiu pela Rua Sete de Setembro até as imediações da Praça Adolfo Cirne, próxima ao pátio da Faculdade de Direito, onde todos eles estudavam. Quando o grupo caiu em si, viu-se cercado por dezenas de homens fardados, armados até o coturno. "Todos presos", determinou o policial que comandava o flagrante. "Desordem pública e roubo de mesa. Vamos para o distrito." O sexteto foi colocado no porta-malas de uma viatura fechada e conduzido ao bunker do Departamento de Ordem Pública e Social, o famigerado Dops.

Em Harvard

Entre julho e setembro de 1969, Alceu reciclou vivências e conhecimentos no curso sociologia e desenvolvimento econômico na América Latina, na Universidade de Harvard. De sua turma na Faculdade de Direito foram selecionados, entre outros, o futuro advogado e escritor José Paulo Cavalcanti. (...) Hospedado no alojamento da universidade, o melhor momento do dia era o final da tarde de verão, quando Alceu levava um violão que conseguira emprestado até a Harvard Square, a poucos metros do campus. Tocava na rua. Entre velhos baiões de Luiz Gonzaga, como Asa branca, Sabiá ou Juazeiro, e o moderno frevo-canção Aquela rosa, dos futuros parceiros Geraldo Azevedo e Carlos Fernando, aos poucos o trovador chamava a atenção dos passantes. Reconhecia rostos que voltavam diariamente, achava graça quando jovens gringos timidamente tentavam se requebrar em algum número de Jackson do Pandeiro.

Pelas ruas que andei — Uma biografia de Alceu Valença

De Julio Moura, Cepe Editora e Relicário Produções Culturais e Editoriais. 592 páginas. Preço: R$ 70

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  •  Crédito: Editora CEPE/Divulgação.  Pelas ruas que andei, de Alceu Valenca.
    Crédito: Editora CEPE/Divulgação. Pelas ruas que andei, de Alceu Valenca. Foto: Editora CEPE/Divulgação
  •  Crédito: Pércio Leandro/Divulgação. Julio Moura
    Crédito: Pércio Leandro/Divulgação. Julio Moura Foto: Pércio Leandro/Divulgação
  • Crédito: Leo Aversa/Divulgação. Alceu Valença
    Crédito: Leo Aversa/Divulgação. Alceu Valença Foto: Leo Aversa/Divulgação

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