Foi nos anos de 1970 que o mundo passou a conhecer o rosto da verdadeira operária padrão da arte no cinema da França que ganhou o mundo: Isabelle Huppert. Hoje, septuagenária, ela traz na bagagem quase 150 participações em obras audiovisuais afora a presença no palco. Recentemente, na capital do Brasil, ganhou uma mostra dedicada a sua arte de interpretar, no Cine Brasília.
Concentrada em roteiros que redimensionam a condição feminina — a exemplo de Elle (2017), capaz de lhe render a indicação ao Oscar, depois da vitória, mesmo junto a colegas norte-americanas, do Globo de Ouro de melhor atriz. O filme, que trata de revide a estupro, se alinha à reflexão sobre aborto vista em Um assunto de mulheres (1988), com o qual a mesma intérprete de Madame Bovary venceu a Taça Volpi de atriz, no Festival de Veneza, feito repetido com Mulheres diabólicas (1995).
Dezessete anos depois de faturar o Leão de Ouro especial pelo conjunto da obra, em Veneza (2005), mais um recente prêmio honorário, com o Urso de Ouro, no Festival de Berlim. Na vitrine do cinema internacional, Cannes, Huppert se mostrou vencedora, por A professora de piano (2001) e Violette (1978).
Entre pontos filosóficos, lembranças de Godard e comentários sobre o novo filme, em cartaz em Brasília — Uma vida sem ele, Isabelle Huppert falou ao Correio, com exclusividade, sobre o compromisso com o cinema, junto a nomes femininos como Eva Ionesco, Catherine Breillat e Claire Denis. Dona de 16 indicações ao César (o prêmio máximo em cinema, na França), a diva ainda poderá ser vista em duas produções, prestes a chegarem na telona: uma de François Ozon, batizada de O crime é meu, e outra, A sindicalista, repleta de traços políticos. Em Brasília, outro filme, em que ela faz participação especial (EO), está em cartaz.
Entrevista: Isabelle Huppert
Quando encena um drama como o de Uma vida sem ele, há aproveitamento de fantasmas pessoais?
Num filme como este, a estrutura, a narrativa é tão incomum e tão poderosa que já te fornece as chaves para acessar a personagem. Se fosse algo desenhado em escala linear, seria diferente. Ainda que o filme não seja abstrato, é muito concreto, na verdade, é muito emocional o apelo dele. Há muita liberdade no modo de contar a história. Ele acessa a maneira como suas lembranças operam e como, na memória, você estabelece o passado. Segue tratando de como se pulam coisas e eventos, alguns naquele nível em que a mente se esforça para esquecer.
Que desafio enfrentou como protagonista?
Não é necessário ser muito precisa na descrição dos sentimentos, uma vez que é rara a estrutura do filme. Com o tempo, você acessa a dor e as emoções. Você não quer sentir e entregar o fim (de um filme), logo de partida, como diria Jean Renoir. Na arte de fazer cinema, o espectador conta com o fator surpresa (no desfecho). O final de Uma vida sem ele é muito pungente.
A sua personagem é muito intelectualizada. Num contraponto a ela, a religião é algo que te interesse? Pensa em ser capaz de influenciar opiniões do público, a partir de declarações públicas?
Realmente, eu não penso nisso. Eu realmente me engajo nos filmes, o resto (do que você diz) realmente não me interessa, não é meu foco. O que me interessa é a comunicação estabelecida, tal como fazemos neste momento, ao telefone. Eu guardo a minha inteireza e disposição para os filmes. Não me excedo nisso (na vida particular).
Sua personagem é uma editora influente, no novo filme. O que Isabelle Huppert anda lendo?
Acabei de concluir a leitura de um livro muito bom chamado Vie, vieillesse et mort d'une femme du peuple — um sucesso em Paris. Foi escrito pelo filósofo francês Didier Eribon. Ele trata da morte da mãe dele, e fala da problemática das partidas. Fala de se colocar as pessoas em asilos. É tão realista quanto filosófico o tratamento que ele dá aos assuntos. É muito interessante: fala da sua relação com a morte, com o que cultiva junto aos pais.
Você é um símbolo de feminismo, a exemplo da estrela Glenda Jackson, morta recentemente...
Meu Deus, eu não sabia. Você está me contando agora! Ela é um real símbolo (feminista). Você disse que ela tinha 87 anos? Morrer aos 87 creio ainda nova, para hoje em dia. As pessoas, a cada ano, vivem mais e mais. Tenho duas lembranças fortes com Glenda Jackson: uma no centenário de morte de Henrik Ibsen, na Noruega, em meados dos anos 2000. Acionaram atores de todo o mundo familiarizados com os textos de Ibsen, que foi meu caso foi com Uma casa de bonecas, e ainda Hedda Gabler (que Glenda fez no cinema). Outra vez, a vi em Nova York, interpretando Rei Lear (de Shakespeare): foi fantástico, ela era assombrosa.
Com a indicação ao Oscar, por Elle, você se estabeleceu, e intensificou a a visibilidade do feminismo. Como vê o emblema e ainda a evolução do movimento feminista?
Na minha jornada pessoal, de fato, não penso nisso. Desde o princípio do meu itinerário, eu era uma feminista, ainda que não soubesse. Nunca foi um tema, algo a ser calculado. Foi tudo muito natural. Agora entendo que há o movimento. É algo importante; uma pequena revolução. Mas há um longo percurso a ser percorrido. Claro, nos atemos ao cinema, mas observe ao redor do mundo: comumente, nos centros que vão mal economicamente — as mulheres sempre sofrem mais. Mas há algo sendo transformado.
Como se relaciona com o Brasil? Você veio para o Festival Varilux, não?
Estive muitas vezes no Rio de Janeiro. Fui duas vezes a São Paulo, movida pelo teatro, e de lá tenho as maiores lembranças. 4.48 Psychose e Quartett foram algumas peças que apresentei no Brasil. Fomos ainda a Porto Alegre e foi fantástico tudo. Tenho lembranças vívidas. E gostei de Búzios, além, claro, do Rio de Janeiro.
Muitas mulheres mulheres não querem tanto ter filhos, hoje em dia, não é verdade? Que conselho daria a elas?
Não tenho nada a recomendar na vida para ninguém (risos). Aliás, nunca, no cinema, interpretei mães muito legais. Sempre assumi o papel de mães estranhas. Tem a comédia, Copacabana, um filme engraçado, em que a personagem da minha filha mais velha, Lolita Chammah. Copacabana é de Marc Fitoussi, e era um filme engraçado demais. Interpretei uma uma mãe muito excêntrica, completamente amalucada, enquanto a filha dela seguia um padrão clássico de comportamento. Tudo que penso (como personagem), a todo momento, é ter bons momentos na terra dos cariocas.
Como alguém tão ativa conviveu com a pandemia?
Tive que fazer como qualquer pessoa no mundo: você simplesmente tem que aceitar. Não consegui ser nada original, diante das preocupações que eram comuns a todos. Num primeiro momento (alheia aos efeitos do corona), eu quase gostei do período. Gostei da abrupta mudança de ritmo. Na troca de costumes, havia achado quase interessante se obrigar à parada.
Como vê o embate entre cinema e streaming?
As pessoas estão retornando num crescente aos cinemas na França. A situação foi pesada durante a pandemia. Estive em recente festival na Coreia, e vejo que, por lá, a indústria (do cinema) se mostra abalada. Na França, as coisas parecem mais sob controle. Temos que encarar a competição junto ao streaming e os ganhos na sala de cinema. Sou otimista o suficiente para perceber que as pessoas têm o afã de frequentar os cinemas — do mesmo modo como eu sigo entusiasmada. Talvez, ok, nem todo mundo; mas eu, sim (risos). Ainda há muita esperança. Houve um período em que Jean-Luc Godard era muito pessimista. Ele propalava que o cinema iria morrer. Tudo depende de como você acorda no dia — tudo está dependente da visão. De verdade, não tenho uma boa resposta a isso tudo.
Você estará no drama político A sindicalista e já interpretou personagens densas, sem ignorar comédias leves e divertidas. Como você equilibra isso, num histórico de carreira?
Eu não meço isso, de verdade. Me restrinjo a batalhar por um bom personagem. Não penso: "Essa mulher (que interpretarei) tem que ser poderosa", ou algo assim. O propósito é ter um personagem como algo central. Não estar sob o jugo de um personagem masculino já é o suficiente. Não pretendo deformar as regras naturais de uma personagem. No que me toca, persigo ainda os mesmos desafios iniciais da minha carreira. Não quero me impor somente com a representação de mulheres triunfais. Quero dar vida a mulheres. Independentemente de serem vítimas ou não. Desde o começo da carreira, foi para isso que fui credenciada.
Há inúmeros diretores de primeira linha na sua carreira, de Godard a Claude Chabrol, passando por Michael Haneke, Curtis Hanson e Jerzy Skolimowski, e incluindo André Téchiné, François Ozon e Christophe Honoré, para citar alguns (risos)... Mulheres diretoras foram poucas? Qual o processo que mais te impressionou?
Não. Tive diretoras como Anne Fontaine, Eva Ionesco, Catherine Breillat e Mia Hansen-Love. Menos do que com homens, é verdade. Não posso me ater a destacar um diretor e um processo. Toda e qualquer experiência é muito preciosa. Não consigo idealizar uma lista com o primeiro, o segundo e assim por diante. Todo filme foi especial e valeu a pena de ter sido feito. Independentemente de se tratar de um diretor estabelecido ou novato. Sempre se trata de uma nova experiência. É uma eterna aventura. Sempre projeto a ideia de que estou fazendo o melhor filme do mundo.
De vez em quando, vemos você em ciclos de cinema, numa estatura de comunhão com divas como Isabelle Adjani, Juliette Bincohe e Catherine Deneuve... Vocês são próximas?
Não me vejo próxima a elas; nunca, de verdade. Isso que você diz é apenas uma fantasia. Em festivais, geralmente estamos com filmes e datas diferentes. E, não, não cultivamos nenhuma amizade.
O que faz Isabelle Huppert feliz?
Fazer filmes — isso é o que me deixa mais entusiasmada. É em algo muito simples a minha alegria. Acordar pela manhã, encontrar um grande diretor e ir realizando filmes.