IMpacto das redes

Advogada defende envolvimento de sociedade civil no combate às fake news

Em entrevista para a série Impacto das Redes, a advogada Maria Eduarda Assis, especialista em segurança digital, fala sobre a importância da sociedade civil no combate à desinformação

Durante o ciclo da campanha eleitoral de 2022, o Instituto Igarapé fez um monitoramento semanal de diversas plataformas, entre elas Facebook, Instagram, TikTok, Twitter, Telegram e YouTube. Uma das intenções era identificar as principais narrativas difundidas no que chamam de "ecossistema on-line". O monitoramento identificou quatro linhas predominantes. A primeira foi a redução da confiança no sistema eleitoral. Um total de 32% do conteúdo monitorado buscava descredibilizar as estruturas eleitorais. Ataques às instituições democráticas veio em segundo lugar, seguido de narrativas de difamação e discurso de ódio contra adversários tendo Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro como alvos. A maioria associava Bolsonaro ao canibalismo e Lula à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Em quarto lugar, o instituto identificou a tentativa de influenciar apoiadores para moldar opiniões públicas envolvendo questões de gênero e política de drogas.

Além dessas quatro narrativas, o Igarapé identificou ainda que a esquerda até liderou algumas postagens em termos de quantidade, mas sempre ficou atrás em engajamento. No Facebook, a esquerda publicou 16% a mais do que a direita, mas o engajamento foi 40% a menos. "A esquerda é muito homogênea em termos de narrativa, falando só de política, enquanto a direita falava de coisa mais diversas", explica a advogada Maria Eduarda Assis, especialista em segurança digital e membro do Instituto Igarapé, um think and thank action que trabalha junto a governos, ao setor privado e à sociedade civil no desenvolvimento de pesquisas e parcerias capazes de impactar as políticas públicas e corporativas. A advogada esteve à frente da criação de um dos programas de trabalho da instituição, o Espaço Cívico, que produz podcasts e vídeos na tentativa de combater os arroubos de governantes autoritários que tentam reduzir a participação de cidadãos no processo democrático. O programa resultou no livro A defesa do espaço cívico, assinado por Ilona Szabó, uma das criadoras do Igarapé.

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O monitoramento realizado durante a campanha eleitoral trouxe ainda alguns resultados que apontam para o caminho seguido pela desinformação e o impacto gerado pelo acúmulo de fake news e sua distribuição massiva aos consumidores de conteúdo das plataformas on-line. Seguir esse caminho é importante para entender como a desinformação é fabricada e como pode ser contida. E há mecanismos que ajudam. "Uma coisa que notamos também foi um nível maior de responsabilização que a gente não viu em 2018. Principalmente no TSE. As empresas de tecnologia que falharam repetidamente no combate à desinformação foram obrigadas, por ordem judicial, a implementar políticas mais responsáveis. Isso acabou também sendo um fator que exacerbou a polarização política e alimentou as narrativas", explica Maria Eduarda, em entrevista ao Correio para a quinta reportagem da série Impacto nas redes.

A desinformação é disseminada nas plataformas de maneiras muito diferentes. No Twitter, por exemplo, os conteúdos são mais objetivos e rasos, enquanto ganham mais detalhamento e complexidade no YouTube. Outra constatação é que a fluidez entre os conteúdos dificulta a moderação. "Surgia desinformação no YouTube, mas quando tiravam, já estava circulando, migrando de uma plataforma para outra, replicando em larga escala", aponta Maria Eduarda. "A falta de regulação específica sobre o tema pode trazer um pouco de confusão e isso é um alerta importante, porque, se não tem regras e estratégias específicas, o judiciário tem que decidir. E isso é muito ruim porque não tem uma unificação, acaba sendo no varejo. E é pouco eficaz no fim das contas, porque tem uma dificuldade de monitoração imensa." Na entrevista, Maria Eduarda fala sobre a importância de união entre a sociedade civil e o governo para o combate às fake news, sobre os caminhos da desinformação on-line e sobre o impacto dessa disseminação no processo democrático e na deterioração do espaço cívico.

Entrevista: Maria Eduarda Assis

Como você avalia o tratamento dado à desinformação que inundou as redes durante as eleições?

Com certeza, a gente não conseguiu fazer frente às narrativas de forma mais completa, mas foi muito melhor do que vinha sendo nos últimos anos e isso por conta do trabalho colaborativo de interesses diferentes. Durante o período eleitoral, vimos muitos setores com interesses diferentes tendo que sentar à mesa para fazer parcerias e essas parcerias foram fundamentais para conter notícias falsas. O Igarapé participou do observatório de transparência das eleições e percebeu que as plataformas desenharam alternativas para combater a desinformação com o TSE e a sociedade civil. Se a gente conseguisse, pelo menos, preservar esse pacto para continuar construindo esse terreno em comum, enquanto sociedade civil conseguiríamos, juntos, fazer frente a esse desafio.

O PL das fake news seria um instrumento importante para a contenção e moderação desses conteúdos?

Acho que o ponto principal é regular esse tema, ter estratégias unificadas e regras claras para fazer frente a esse desafio. Uma regulação no sentido responsável é importante para tratar regras, limites e estratégias. Apoiamos que haja uma regulação. Com relação ao conteúdo, é muito importante ter o debate com a sociedade. Grande parte do sucesso das reações durante as eleições foi por conta de um esforço conjunto, então precisamos trazer todos os setores interessados para a mesa na hora de regular o tema. Uma parte muito importante é trazer a sociedade para a mesa para ver a quais consenso a gente consegue chegar.

Qual o papel das instituições democráticas no combate à desinformação?

Uma coisa que a gente bate na tecla é que a informação é muito importante quando se fala de instituições democráticas, mas o combate à desinformação não vai resolver o problema. Como revitalizar a confiança das pessoas na democracia.? Isso vai continuar com PL ou sem PL. Precisamos ter esses arranjos para nossa democracia fazer frente a esses desafios. A desinformação avançou por conta da desconfiança prévia. O Brasil é um dos países com pior nível de confiança na democracia da América Latina. Para além de apoiar uma regulação sobre o tema e que envolve diferentes atores, uma coisa que a gente defende é revitalizar a confiança nas instituições.

Como?

Outro produto muito interessante nesse tema é a agenda de proteção da democracia que a gente divide em alguns eixos importantes para avançar. Primeiro é o da participação da sociedade civil: como fazer com que as pessoas se engajem? Como restabelecer o funcionamento e participação de conselhos e políticas públicas que foram fechados, abrir mais espaços de diálogo, mais transparência para que a sociedade possa fiscalizar, barrar legislações que tentem limitar a participação da sociedade civil. Como alguns PLs que estão constantemente entrando na pauta do Congresso, como o da lei antiterrorismo, que, por ser muito ampla, pode restringir a liberdade de manifestação. Precisamos barrar essas legislações nocivas, tentar restabelecer o funcionamento mais inclusivo. O segundo eixo é o acesso à informação. Temos que proteger a Lei de Acesso à Informação (LAI) de forma integral, houve diversas tentativas de tentar minar a LAI nos últimos anos. Como frear medidas do governo que usam tecnologia para aumentar o controle e vigilância sobre a população? Como o caso do Pegasus, que é extremamente nocivo. Precisamos frear medidas de tecno autoritarismo. O eixo três é o combate à desinformação e ao discurso de ódio. Precisamos de propostas de responsabilização de autoridades públicas por disseminarem essas notícias, porque eles têm um poder de influência maior. Rechaçar discurso de ódio, incitação à violência, desrespeito às minorias por meio de mecanismos legais que já existem. O último eixo é a retomada democrática das instituições. Vários órgãos do poder público começaram a ser ocupados por pessoas que não tinham conhecimento técnico, mas alinhadas com o governo. Como retomar as instituições para que sirvam ao interesse público e não a uma agência governamental? E reafirmar a importância da separação entre os poderes, para que funcione o sistema de freios e contrapesos.

E qual o papel da tecnologia nesse combate? Ela pode ser uma aliada?

A tecnologia não é por si só boa ou ruim. Ela é instrumental. Sendo instrumental, ela vai ser o que a gente faz dela. Se a gente for olhar o copo meio cheio, com certeza ela trouxe possibilidade maior de participação social, a gente consegue se mobilizar mais rápido, consegue fiscalizar mais, se informar. Mas pelo copo meio vazio, é um poder de disseminação de discursos nocivos, que a gente chama de danos digitais, muito grande. E dentro desses danos digitais, a gente inclui a desinformação, o discurso de ódio, ataques cibernéticos, autoritarismo digital, aumento do vigilantismo. Isso acaba ampliando bastante o potencial nocivo de alguns ataques à democracia. O poder disseminador dessas narrativas é muito grande e um problema muito claro são as eco chambers, em que as pessoas encontram as pessoas que pensam de maneira similar a elas, se sentem pertencentes e isso é um sentimento muito importante pro ser humano, e uma vez nesse grupo em que se identificam, acabam se fechando numa bolha e compartilhando discursos com os quais concordam. Quando são colocados no mundo real, isso gera sentimento de ressentimento. A dinâmica das redes acaba aumentando essa dinâmica de se encontrar em grupos e se afastar do todo, estranhar a divergência, que é muito própria da democracia. Se a gente não consegue conversar com o divergente, não consegue avançar como sociedade. Além do potencial enorme dessas mensagens que engajam mais, que envolvem ódio, o ataque a outras pessoas, que acabam recebendo esse destaque. O ódio move muito mais que discursos moderados e isso complica muito nossa existência no mundo real, onde não temos como fugir das divergências.

E o que fazer com o sentimento de frustração com a democracia que acaba por unir muitas pessoas nessas bolhas?

Acho que esse sentimento não é só do Brasil, muitas pessoas vêm se sentindo assim em outros países, que também têm eleito líderes populistas por conta desse descontentamento. É multifatorial. Envolve crise política, econômica, a própria corrupção que acabou se tornando endêmica no Brasil, múltiplos fatores acabam fazendo com que as pessoas não se sintam representadas. Essa crise de representatividade vem um pouco desse distanciamento das pessoas da política, quando elas encaram a política como um lugar que não as representa e acabam se socorrendo em discursos rasos, simplistas, populistas, mas nos quais, de alguma forma, se sentem ouvidas. E muitos desses líderes contornam a imprensa e a mídia tradicional para falar com seus apoiadores de forma direta pelas redes sociais, onde a imprensa é atacada como não confiável, parcial. E as pessoas se sentem finalmente ouvidas.

Essa crise de representatividade tem um marco?

São várias insatisfações acumuladas em um período que, acredito, começou em 2013 com as manifestações. As pessoas vinham guardando há muito tempo esse sentimento e encontraram uma forma de canalizar esse sentimento de uma maneira não necessariamente democrática. O nível de pessoas no Brasil com tolerância a golpes é de 38%. É muito alto. O nível de brasileiros que aceitam um grau de relativização da democracia é de 82%. Vem muito dessa desconfiança em relação à classe política, grupos marginalizados que não têm suas demandas reconhecidas, tudo isso somado à recessão econômica, escândalo de corrupção, tudo isso culmina na crise de representatividade no Brasil e no mundo.

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