Vera Holtz não sabia ao certo como o diretor Rodrigo Portella reuniria tanta informação em cena quando foi convidada para encenar Ficções, mas aceitou de pronto. Afinal, criar um espetáculo a partir do livro Sapiens — Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari, seria certamente um desafio. O resultado rendeu. Com a peça, em cartaz a partir de amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Vera ganhou os prêmios Shell deste ano na categoria melhor atriz e o de Melhor Protagonista no 17ª Prêmio APTR, da Associação dos Produtores de Teatro.
Para dar conta da densidade do texto de Harari, Portella condensou a dramaturgia na ênfase dada pelo autor à capacidade da humanidade criar ficções de maneira a viver coletivamente. Religião, ideologias, dinheiro, leis, a ideia de nação, tudo isso são invenções humanas que possibilitam organizar o tecido social e viver em conjunto. "Acho sensacional trabalhar nesse enfoque da capacidade que o homem tem de criar e crer coletivamente. Toda a criação da humanidade está nessa capacidade", reflete Vera. "É uma obra reflexiva, divertida e que informa. Acho que a peça transcende o livro e humaniza, transforma em uma peça em que as pessoas se identificam com a obra, traz a obra para perto do público."
No palco, a atriz vive várias personagens em uma colagem que nada tem de cronológico. Para construir a dramaturgia, Portella trabalhou com Bianca Ramoneda, Milla Fernandez e Miwa Yanagizawa, que ajudaram, por meio de conversas, a balizar o texto. O diretor também queria que a narrativa fosse conduzida por uma mulher. "Acho que nós, mulheres, estamos num lugar de fala bem bacana hoje e Rodrigo está antenado nesse momento, para trazer a mulher para falar sobre o sapiens, ainda mais a mulher que traz a vida. A humanidade segue em frente porque alguém carrega no ventre o futuro humano e isso pode transformar tudo", diz a atriz.
A ideia de ficções que podem ser criadas e descriadas de acordo com as necessidades humanas de dar sentido e forma à existência também é uma metáfora para o próprio teatro. O diretor aproveitou essa cumplicidade com o palco para organizar a dramaturgia. Conectar as ficções da humanidade com o fazer teatral era uma das intenções. Portella também não queria uma peça que desse conta do livro, mas que instigasse na plateia as reflexões desencadeadas por Harari na obra.
Por isso, a música de Federico Puppi, que contracena com Vera, é fundamental. Também ganhador do APTR, o músico criou uma trilha sonora original executada no palco. "Tenho um papel híbrido na peça, meio músico, meio ator, tanto fisicamente quanto com a música, que também tem um papel de interação com a plateia. A música, nesse espetáculo, nasceu junto com os ensaios. A música cria uma outra linha dramática complementar à dramaturgia da palavra", explica Puppi. "A dramaturgia literária e a dramaturgia musical se completam, às vezes agem em contraponto, às vezes uma responde à outra, são duas linhas dramatúrgicas que correm ao longo da peça."
Boa parte da trilha é instrumental, mas algumas canções pontuam o espetáculo com letras que fazem parte do texto da peça e contribuem para a dramaturgia ao explicar alguns conceitos. "Uma é bem narrativa, uma historinha contada, e a outra exemplifica um conceito muito importante pra peça sobre o nosso ser animalesco", avisa Puppi. O nascimento da linguagem é abordado a partir de um improviso tocado pelo músico e por Vera Holtz.
Uma das questões propostas pela peça é pensar no lugar ao qual a humanidade chegou ao desenvolver as ficções que permitem as crenças de maneira geral. "A gente tem uma capacidade de moldar o mundo, mas isso não o transformou num homem feliz e nem o mundo num lugar melhor", aponta Vera. Essa seria uma maneira pessimista de encarar o desenvolvimento do ser humano, mas a atriz gosta de pensar também num invólucro otimista para a humanidade. "Evoluímos muito, estamos vivendo o melhor momento da humanidade. Essa questão do bem e do mal também é ficção, invenção, o que é certo e o que é errado, o que é o caminho do bem e do mal, isso também são ficções narrativas criadas pelo homem", repara.
Para ela, é fundamental não perder a perspectiva do sentido de cooperação. "Durante a peça, a gente fala muito nisso, sem a cooperação, não se sobrevive", diz. Essa preocupação se reflete na própria montagem: o espectador pode ver a operação de concretização do espetáculo ao vivo, com produtores que sobem em cena e os atores que interagem com o público. "É um momento de reflexão nesse sentido, quem sou eu, o que sei sobre mim, o que eu invento? Minha vida é uma paródia?", avisa Vera.