Lisboa — Foi aos 12 anos que o menino José Pedro Gil, hoje um prestigiado músico e cantor português, teve o primeiro contato com a música brasileira, da qual, ressalte-se, nunca mais se desgrudou. O pai dele, arquiteto, escritor e exímio pianista, lhe fez um desafio: que ele tocasse, no violão, "Garota de Ipanema", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. O garoto, que havia se matriculado em um curso para aprender a dedilhar o instrumento musical, não pensou duas vezes. Afinal, se cumprisse a missão, embolsaria 5 contos, hoje equivalentes a 25 euros (R$ 140). Foram 15 dias de intensos estudos, mas ele não só tocou a canção como, a partir dali, passou a ser um voraz consumidor da arte produzida no Brasil.
"Desse momento em diante, minha relação com a música brasileira nunca mais parou. Foi uma ligação visceral", afirma Zé Pedro, como é chamado pelos amigos. Entre um gole e outro de água, à mesa de um pequeno e charmoso restaurante de alimentação natural em Alfama, bairro histórico de Lisboa, ele enfatiza: "A música brasileira é a melhor do mundo. É a mais rica do ponto de vista rítmico, a mais prodigiosa do ponto de vista harmônico e a mais espantosa do ponto de vista da contaminação das emissões". Ainda menino, conta, ficava se perguntando se, um dia, seria capaz de fazer algo parecido com o disco "O poeta e o vilão", gravado em apenas quatro horas, em Milão, por Vinícius e Toquinho. "Agarrava aquele disco que, na minha opinião, era o retrato da perfeição", acrescenta.
Quarenta anos depois daquele encontro fulminante, foi a vez de José Pedro Gil, 52, se impor um próprio desafio: reunir, em um disco, o repertório de Chico Buarque de Holanda, mas cantado com o sotaque do português de Portugal. "Era algo que eu desejava fazer há tempos. Mas devo admitir que foi um sofrimento chegar às canções que integram o disco. A obra de Chico é vastíssima e riquíssima", diz. "Recentemente, fui a São Paulo assistir ao novo show de Chico com a Mônica Salmaso. A cada música, me dava um mal-estar, pois queria que estivesse no meu disco", lembra. Mas, passado o martírio da escolha das canções, tem a certeza de que o trabalho final que está prestes a ser lançado é tocante.
"O disco é bastante intimista, para que as palavras se sobressaiam", afirma o cantor. Todo o trabalho de produção foi feito pelo pianista brasileiro Nelson Ayres, que Zé Pedro define como genial. "Ele toca de uma forma que coloca as palavras na cara das pessoas. Foi isso que me motivou a trabalhar com ele, a respeitar o piano, os arranjos" ressalta. Ele conta que o álbum só sairá em vinil em Portugal, bem no estilo tradicional. "Tem o lado tátil, que gosto muito, e o disco será acompanhado com todas as letras das músicas." No Brasil, o lançamento ficará por conta da Biscoito Fino. O álbum, intitulado "Trocando em miúdos ", tem como primeira música de trabalho "Mar e lua".
Estrago da política
Com sólida formação técnica e uma carreira que começou ainda quando estava estudando violão no conservatório, o artista diz não conhecer muito bem a atual geração de músicos brasileiros. "Dos artistas mais recentes, o único que realmente me chamou a atenção foi Lenine, que tem um trabalho prodigioso", afirma. "Mas sou velho, sempre me apego aos cantores e compositores que marcaram a minha vida. Mesmo acompanhando o trabalho deles, sempre há algo por descobrir", emenda. Há ainda outro limitador quando se trata da nova geração: "Vejo que os músicos atuais se afastaram da palavra, que é o que mais admiro nas canções brasileiras. As músicas, se posso dizer assim, estão mais ligadas ao físico. Não me encontro nisso". Ele reforça, porém, toda a admiração pela riqueza da musicalidade no Brasil, com uma diversidade sem parâmetro no mundo.
Para Zé Pedro, parte da atual produção musical brasileira é reflexo dos últimos quatro anos, quando o "país mergulhou no obscurantismo" do governo de Jair Bolsonaro. "A política se reflete absurdamente na produção musical. Eu acreditava que, pela sua grandeza, isso não ocorreria no Brasil. Mas percebi que, desta vez, houve um movimento para estrangular a produção cultural brasileira, que, para mim, é um dos maiores ativos do país", afirma. Ele acredita que os novos ventos que estão soprando Brasil e tenderão a resgatar a força da cultura, seja na música e na literatura, seja no teatro e no cinema.
Esse período de retrocessos no Brasil remete o cantor à sua infância. Portugal estava dominado pela ditadura sangrenta de António Salazar. Havia músicas que só eram ouvidas por pessoas de direita, defensoras do ditador. "Infelizmente, naquela altura, o fado ficou atrelado a esse grupo. Hoje, isso está superado, e o ritmo tradicional de Portugal foi resgatado pelas novas gerações", conta. O proletariado e os que combatiam a ditadura, por sua vez, optavam por escutar canções mais intervencionistas, da quais o maior expoente foi o compositor Zeca Afonso, que morreu amargurado aos 56 anos.
Em 2015, quando decidiu voltar aos palcos, depois de anos produzindo outros artistas, Zé Pedro se reencontrou com Zeca Afonso por meio do show e do disco "Outro tempo". Ele convidou Mônica Salmaso para cantar duas músicas. "Não tenho dúvidas de que ela é, atualmente, a melhor cantora viva do Brasil", sentencia. Dois anos depois, inspirado em Mônica, que havia feito um disco só com músicas de Vinícius para celebrar os 100 anos de nascimento dele, o português mesclou dois mestres, Zeca Afonso e o autor de Garota da Ipanema, no espetáculo Estrada branca, gravado ao vivo e transformado em disco.
Jovem sonhador
O Chico que permeou toda a carreira de Zé Pedro, quando esteve em Portugal, em abril deste ano, para receber o Prêmio Camões, pelo qual esperou por quatro anos, já que Bolsonaro não quis assinar o diploma, fez uma homenagem a Zeca Afonso. O brasileiro citou um trecho de uma de suas composições, "Maninha", que, segundo Zé Pedro, era um dos temas nos dias que se seguiram à Revolução dos Cravos: "Se lembra do futuro que a gente combinou, e eu era tão criança, e ainda sou, querendo acreditar que o dia vai raiar só porque uma cantiga anunciou".
O português não esconde a emoção ao citar esse trecho da música. E, acredita que, ao gravar as canções de Chico, está acertando as contas com aquele jovem sonhador que tinha na cabeceira um álbum duplo do compositor brasileiro intitulado "A arte de Chico Buarque". "São músicas que estão dentro de mim. Chico sempre esteve na minha cabeça e na de muita gente. Já tinha pensado em visitar o patrimônio enorme desse artista brasileiro antes de eu lançar 'Estrada branca'. Agora, chegou a hora", diz.