Jornal Correio Braziliense
Cinema

Diretor brasiliense Iberê Carvalho lança 'O homem cordial'

Há mais de 20 anos, com o curta Suicídio cidadão, o diretor de cinema brasiliense Iberê Carvalho já demonstrava a indignação que, vira e mexe, pauta as produções capazes de atravessarem fronteiras, por vezes, internacionais

Há mais de 20 anos, com o curta Suicídio cidadão, o diretor de cinema brasiliense Iberê Carvalho já demonstrava a indignação (no caso daquele curta em torno da corrupção) que, vira e mexe, pauta as produções capazes de atravessarem fronteiras, por vezes, internacionais. Com isso, atestam a qualidade da produção candanga. "O brasileiro gosta de se ver na tela e o mundo continua com muita curiosidade sobre nossas histórias. O sucesso de nossas produções nas plataformas de streaming é uma prova disso", comenta o diretor, que chega em dose dupla no cinema e na tevê, respectivamente, com o longa O homem cordial (em cartaz na cidade) e com a produção local Maria (atração recente na grade da TV Globo).

A perseguição sistematizada a um roqueiro, candidato a cancelamento e interpretado por Paulo Miklos, move a trama de O homem cordial (inspirado na hostilidade sofrida publicamente por Chico Buarque). Sem saber exatamente onde se meteu, ele tenta criar uma barreira às suspeitas (e consequente clima de linchamento) que recaem sob um jovem acusado de roubo, numa dura realidade paulistana.

Também de São Paulo vem o roteirista Gabriel Quadros, que responde pela escrita do próximo longa de Iberê Carvalho, entre vários outros projetos. Na trama de O menino que não existia, que terá produção da O2 Filmes (de Fernando Meirelles), um aspirante a funkeiro, em situação de rua, toma um celular de um integrante do governo federal, trazendo à tona um amontoado de informações de atos ilícitos.

Celebrado pela investida dramática num filme de 2015, que homenageia o próprio cinema, dado o tom nostálgico de O último cine drive-in, Iberê confidencia a guinada com a produção televisiva Maria. "Tem tom completamente diferente do que o de O homem cordial: é um filme para toda a família, de esperança, amor e sonho", observa. Maria, estrelado por Dhi Ribeiro, na trama, coloca uma agente de segurança do Mané Garrincha a buscar melhores oportunidades para a filha dela, Elza. Num contraponto, a atriz Roberta Estrela D´Alva (confira entrevista), atuante no hip-hop, entra em cena marcante de O homem cordial: ela vive, na trama, uma mãe metida em turbulenta situação, que dá impulso a todo o filme. 

O que levou você a, depois de investir numa história de fundo doce como O último cine drive-in, partir para um tratado tenso e ácido como o de O homem cordial?

Em 2016, após presenciar o golpe sem muito poder fazer, fui tomado por uma sensação de impotência e indignação. Queria poder debater e discutir a cultura do linchamento e refletir sobre um Brasil que não me orgulhava, mas que eu também faço parte. Fui tomado por uma sensação de urgência. Precisava botar para fora toda essa perplexidade. Ao mesmo tempo queria experimentar o gênero do thriller de suspense.

Você acredita que tenha conduzido um filme com atmosfera sensacionalista?

Não. O sensacionalismo pressupõe um descolamento da realidade. O homem cordial, na minha opinião, tem, sim, elementos capazes de causar impacto e de chocar o público, mas, infelizmente, esse impacto se dá justamente por retratar situações que se tornaram quase cotidianas nos últimos anos.

Como tem visto a difusão de fake news no cotidiano?

A questão das notícias falsas é o grande desafio do mundo atual. Vivemos a era da pós-verdade, onde o fato tem menos importância do que as narrativas sobre ele. Os países precisam incorporar novas legislações capazes de inibir o uso da mentira como instrumento de atuação política.

Qual foi a participação do corroteirista Pablo Stoll?

Pablo foi fundamental no processo. Veio dele a ideia de o filme se passar em uma única noite e de o protagonista ser um astro do rock que está tentando voltar a cena musical. Pablo é um grande roteirista que domina, sobretudo, a estrutura narrativa. Sem ele, O homem cordial não existiria. Eu gosto de trabalhar os roteiros em dupla e com o Pablo o processo foi de muito aprendizado e generosidade.

O que te levou a chamar o Paulo Miklos e o Thaíde para personagens tão centrais? Qual o tipo de engajamento de público visualizado com a adesão de ambos?

Poderia dizer que o roteiro foi escrito para o Paulo Miklos. Pensamos nele desde o início. Muito mais pelo seu trabalho no cinema, sobretudo em O invasor, de Beto Brant, do que pela sua história com a música. Já o Thaide veio depois. Era preciso um ator com carisma e com uma presença cênica capaz de mudar a trajetória do filme, depois que seu personagem surge na trama. Thaíde reúne tudo isso.

Como você percebe a sociedade brasileira: está algo abrandado em termos de racismo (elemento que não deixa de estar presente no teu filme)?

A sociedade brasileira é extremamente violenta. Somos um país com altos índices de feminicídio, violência contra a população LGBTQIA+, contra a população negra, periférica e indígena. A policia comete um verdadeiro extermínio dos jovens negros moradores das periferias. Negar ou tentar esconder isso é mais um instrumento de violência contra esses grupos. O homem cordial procura tratar o tema do racismo a partir de uma perspectiva de que todos, mesmo aqueles que se dizem não racistas, são responsáveis pela realidade em que vivemos.

O ódio segue alimentando as pessoas, mesmo passada a experiência da pandemia? Onde foi parar a momentânea solidariedade universal desenvolvida? O atual governo (no reflexo dele) te parece mais abrandado neste quesito?

Infelizmente a pandemia apenas acentuou as desigualdades que já existiam no mundo. No caso do Brasil, estamos vivendo um período de pós-trauma, tanto pelos mais de 600 mil mortos pela covid, como também pela institucionalização do negacionismo, da mentira e da violência. Felizmente, o Brasil escolheu não dar continuidade ao projeto fascista do governo passado mas, ainda temos muito trabalho pela frente para que consigamos superar esse momento sombrio que vivemos.

 

 

 

 

 

Reprodução - Pablo Stoll, roteirista de cinema.
 

 

Palavra de especialista

Trabalhar neste filme foi um desafio, especialmente porque sempre soubemos do que queríamos falar (crescimento de discurso de ódio na sociedade), mas havia de se encontrar a forma. Tanto que junto com Iberê escrevemos dois roteiros! Quando já tínhamos terminado aquele primeiro roteiro, surgiu o vídeo de Chico Buarque sendo hostilizado na saída de um restaurante. Ibere me enviou porque era claramente algo que tínhamos conversando e observando nos últimos meses trabalhando juntos.

Nessa época eu estava no Maranhão dando uma oficina de cinema gratuito. Eu ia ao Brasil com frequência e vi o crescimento da intolerância, sistematicamente. Quando vi o vídeo respondi: "Acho que aqui está o nosso filme. "Jogamos o outro fora e começamos a escrever um novo, baseado na noite de "homem cordial", à deriva, que demora a reconhecer o que se tornou sua cidade, seu país.

Uma viagem por um inferno em que ele é submerso e que se revela a ele abrangente e insondável. o roteiro fluiu, embora envolvesse maior pesquisa e mais discussões. Então o filme, graças a Ibere, cresceu a partir daí com planos de decisões que só um grande diretor pode tomar. É muito bonito fazer parte deste filme, mas acima de tudo, pensar que o inferno (ou pelo menos uma parte dele) não está mais tão presente.

Pablo Stoll, corroteirista de O homem cordial

 

Benjamim Figueiredo/CB/D.A Press - Roberta Estrela D´Alva
 


Duas perguntas // Roberta Estrela D´Alva, atriz

Existe cordialidade no brasileiro contemporâneo?

Talvez dialogue muito com o discurso do cidadão de bem. Tem uma cordialidade, que é paralela ao racismo. Tem algo disseminado no dia a dia de um racismo travestido. Há cordialidade para que? É para transformação social, é para que se percam privilégios? O que está em jogo, nesta cordialidade?

De certa maneira teu personagem apresenta, pela dor, um mundo ao personagem central...

Houve uma sincronia coincidente, quando eu fiz o filme. Naquele período, eu fazia um espetáculo de teatro chamado terror e miséria no terceiro milênio, baseado em Brecht — foi no antigo governo. Naquela montagem tinha a famosa cena das mães, no caixão. Pesquisei muito para o teatro as mães de maio, unidas depois dos crimes de 2006 onde houve uma chacina encoberta no Brasil. Isso gerou o movimento das mães que querem justiça para os seus filhos. Quando se fala do massacre da juventude negra: quando morreu um jovem, você está matando uma mãe também. Mata uma família e uma constelação de pessoas.

 

Quartinho Direções/Divulgação - Iberê Carvalho: olhar múltiplo, em projetos diferenciados
Benjamim Figueiredo/CB/D.A Press - Roberta Estrela D´Alva
Reprodução - Pablo Stoll, roteirista de cinema.