Foram quase três anos de trabalho até Clara Alvim e Maria Andrade conseguirem organizar a sequência de 300 cartas de Mário de Andrade Rodrigo M. F. de Andrade — Correspondência anotada. A compilação é uma espécie de atualização do trabalho feito pela pesquisadora Lélia Coelho Frota em 1985, quando publicou Cartas de trabalho, com a correspondência remetida por Mário a Rodrigo entre 1936 e 1945. Maria e Clara foram além: incorporaram as cartas de Rodrigo e ampliaram o período para 1928. A ideia era começar alguns anos antes da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), fundado por Rodrigo em 1937.
A troca de cartas é reveladora de um período rico e formativo das instituições culturais brasileiras. "Isso é um dos interesses maiores da correspondência entre os dois: ao mesmo tempo que falam de trabalho, abordam o contexto cultural do ponto de vista não apenas dos literatos amigos, os modernistas, como também de acontecimentos culturais e, mais do que tudo, a guerra", explica Clara Alvim, que é filha de Rodrigo e cuja familiaridade com a letra nem sempre legível do pai foi vital para esclarecer alguns pontos da correspondência.
Boa parte do material estava guardado no Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo (IEB/USP), que abriga o acervo do autor de Macunaíma. "Entretanto, como Mário de Andrade havia gravado que a correspondência para ele ficaria 50 anos presa, não se poderia ter acesso. Por isso a primeira edição, feita pela Lélia, foi unicamente com as cartas de trabalho de Mário para meu pai, sem as respostas. Há pouco tempo, minha sobrinha Maria de Andrade, que também é pesquisadora e editora, teve a ideia de editar e voltar a ver se conseguíamos as cartas de meu pai para Mário, e conseguimos", conta Clara. Algumas cartas avulsas também vieram da Casa de Rui Barbosa.
Entre as preciosidades contidas na missiva está a discussão para a criação do Sphan, que mais tarde se tornaria o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), processo no qual a participação de Mário de Andrade foi crucial. Quais eram os bens a serem tombados, como isso seria feito e como seria a formação dos técnicos que trabalhariam na instituição são algumas das preocupações presentes no primeiro bloco de cartas, que cobre de 1934 a 1945.
Nesses textos, é possível notar a preocupação preponderante de Mário com a preservação da cultura popular e a insistência de Rodrigo para a necessidade de um arcabouço legal para a proteção do patrimônio. "Do ponto de vista do meu pai, o importante era criar uma legislação capaz de proteger o patrimônio histórico e artístico contra o que se chamava 'o progresso'", conta Clara. "É uma legislação que até hoje serve e defende o patrimônio do capitalismo, que sempre prefere destruir as catedrais, não se importa que um templo de origem afro-brasileira caia com a chuva, o que importa é ganhar dinheiro, o 'progresso' não mudou. E naquele momento, estava começando muito fortemente."
A pedido do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, Mário de Andrade lançou a base para a criação do órgão enquanto dirigia o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Como o modernista não quis mudar-se para o Rio de Janeiro para conduzir o que viria a ser o Iphan, Rodrigo assumiu a instituição e fez do amigo um assistente técnico. O assunto ocupa boa parte das cartas trocadas entre 1936 e 1939. Os inventários e testamentos, o fichamento das obras e o que Mário chama de "destrinçamentos" são temas de reflexões até o início dos anos 1940, quando o escritor passa a se dedicar a uma monografia sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo, um estudo dos 12 quadros pintados pelo clérigo na igreja Matriz de Itú. Uma curiosidade contida nas cartas dessa época são os relatos de doenças de Mário, muito bem descritas e especificadas. A pesquisa se estende pela correspondência até 1943 e revela a paixão e o trabalho meticuloso feito pelo escritor tanto na criação do Iphan quanto na pesquisa sobre o padre Jesuíno.
Um desafio considerável enfrentado por Clara e Maria foi combinar as sequências corretas da correspondência. "Houve certa dificuldade de casar as cartas de um com as do outro, mas nem tanto, porque elas se sucediam com intervalos mínimos. Às vezes, uma chegava no dia seguinte da que a tinha provocado. Ficamos admiradas com a agilidade do correio de então", diz Clara. Maria de Andrade lembra que a transcrição também representou um desafio. Um pesquisador do IEB ajudou a digitalizar e transcrever o material, mas o olho treinado de Clara para a letra do pai ajudou a desvendar alguns nós da escrita. "Foi um processo lento, feito em partes, mas foi muito prazeroso também", conta Maria.
Os traços de personalidade de Mário e Rodrigo também são pontos de destaque do material. "As cartas mostram duas figuras bastante diferentes na personalidade, você vê pela forma da escrita. Eles têm essa diferença no tom, na forma de conversa, são muito amigos, muito atenciosos com todas as questões um do outro, tem uma atenção com círculo de amigos, você vê uma amizade muito próxima. Mas o Rodrigo é mais contido, com uma personalidade mais introvertida, e o Mário mais extrovertido, muito espirituoso na forma de falar, muito desenvolto na vivacidade das observações dele", analisa Maria, que é neta de Rodrigo. "Talvez o mais precioso mesmo seja ver o espírito de paixão pelo que eles fazem, uma dedicação muito viva pelo trabalho e pelo Brasil."
Correspondência anotada será tema de um evento hoje, às 17h, no auditório do Iphan. O presidente da instituição, Leandro Grass, se junta a Clara e Maria para refletir sobre o conteúdo das cartas. Participam também do evento a escritora Ligia Ferreira e a antropóloga Mariza Velozo, professora da Universidade de Brasília (UnB).
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